O relatório do comitê independente contratado pela Americanas para investigar a fraude contábil de R$ 25 bilhões na varejista aprofunda o que já se sabe sobre o caso e avança em novos pontos. O material foi entregue à empresa em julho e deve ajudar nas investigações policiais, que até agora apontam um esquema de maquiagem de balanços promovido pela antiga diretoria da empresa, revelado em janeiro do ano passado.
Veja a seguir os principais pontos do relatório, obtido pelo Valor:
Risco Sacado
Risco sacado é uma linha usada no varejo para financiar o pagamento a fornecedores. Nela, o banco faz o desconto da duplicata antes do prazo, com um abatimento em relação ao valor de face, e, quando chega o vencimento, a empresa paga a instituição financeira.
Em algumas condições, ela pode ser contabilizada na conta de fornecedores do balanço, mas em outras precisa ser reconhecida como dívida — algo que a varejista não fazia.
Segundo o comitê, as operações podiam variar quanto a prazos, incluíam títulos vencidos e a vencer, e algumas podiam implicar o pagamento de despesas financeiras, enquanto outras podiam gerar receitas financeiras.
Essas receitas eram geradas quando as instituições financeiras pagavam um “prêmio” à varejista, numa espécie de comissão pela indicação do cliente.
As despesas financeiras ocorriam quando a Americanas reembolsava os fornecedores cujo pagamento foi antecipado com desconto. De acordo com o relatório, há indicação de que R$ 3,4 bilhões em despesas deixaram de ser apropriadas nos balanços, enquanto R$ 290 milhões em receitas financeiras foram contabilizados.
VPC
Peça central na fraude, os contratos de verba de propaganda cooperada (VPC) são acertados entre varejistas e fornecedores para promover determinados produtos nas lojas. Em geral, o varejista abate esse valor do total que tem a pagar pelos itens.
Só que a Americanas forjava contratos de VPC para reduzir a conta de fornecedores, de forma que não ficasse evidente que tinha um problema de caixa.
O comitê independente detectou operações de VPC fictícias, que ou não foram pagas por fornecedores ou não foram abatidas dos valores pagos a fornecedores. A empresa chegou a falsificar assinaturas para simular contratos.
“Uma parte substancial desses lançamentos de VPC aparentemente não tinha lastro em negociação com fornecedores ou subsídio documental que suportasse os respectivos lançamentos”, diz o relatório.
A equipe de investigação notou que os contratos “bons” eram chamados de VPC A, enquanto os “ruins” eram os VPC B — em algumas ocasiões citados como cartas fake, acordos comerciais 2, cartas ruins, cartas B, cartas gerenciais, cartas extraordinárias ou simplesmente B.
Do ponto de vista contábil, o uso desse expediente resultou em subavaliação dos custos e despesas divulgados nas demonstrações de resultados, já que eram abatidos artificialmente pelas operações de VPC B.
No balanço patrimonial, a conta de fornecedores no passivo era reduzida artificialmente por lançamentos a débito de VPC B.
As demonstrações financeiras eram feitas a partir de informações que rodavam nos sistemas usados pela companhia — Oracle, no caso da B2W e SAP no caso das lojas físicas.
Com base nesse retrato, estimavam-se os valores de VPC B que deveriam ser lançados de forma que a margem bruta ficasse compatível com o que havia sido orçado.
A estimativa do comitê é que, no fim de setembro de 2022, no último balanço antes da revelação da fraude, o resultado da Americanas (em contas de custos/despesas) e o patrimônio líquido estariam subavaliados em cerca de R$ 18,837 bilhões, e a conta de fornecedores estava subavaliada em aproximadamente R$ 11,983 bilhões.
Relação com bancos
A investigação do comitê mostra como executivos da Americanas discutiram com funcionários de bancos a redação ideal das cartas de circularização que as auditorias pedem para confirmar algumas operações.
No relatório, aparecem diversos diálogos em que a empresa pede para ocultar dos documentos as operações de risco sacado, com a concordância de algumas instituições financeiras.
Aparecem casos em que o funcionário do banco sugere como deveria ser feito o pedido para que a informação pudesse não aparecer.
O relatório também traz o caso da oferta subsequente de ações que a Lojas Americanas fez em 2017, quando captou R$ 2,4 bilhões.
Segundo documentos encontrados, a redação do memorando da operação foi negociada de forma que as operações de risco sacado não aparecessem com esse nome, que chegou a ser usado na minuta do documento.
Relação com auditorias
Sempre os primeiros a ser acusados em casos de suspeitas de fraude, os auditores não saem com a imagem comprometida das revelações, mas ficam dúvidas se eles não poderiam ter feitou um pouco mais.
O comitê concluiu que a diretoria da Americanas tomou medidas para ocultar dos auditores as operações com fornecedores que poderiam levantar dúvidas sobre os números das demonstrações financeiras e que levaram ao rombo bilionário nas contas da varejista.
O relatório mostra momentos de tensão nas interações entre diretoria e auditores, que reclamam de demora no fornecimento de informações, dados incompletos e dificuldades em agendar reuniões. PwC e KPMG sabiam que havia problemas de controles internos, e alertaram a gestão para isso.
No entanto, não chegaram a dar o alarme externo. Todos os pareceres que acompanham os balanços do período saíram sem ressalva.
Venda de ações
As vendas de ações da Americanas por executivos da empresa no segundo semestre de 2022 chamaram a atenção do conselho de administração, que fez questionamentos a respeito do assunto ao então CEO, Miguel Gutierrez.
Em reunião do comitê de gente realizada em 7 de novembro daquele ano, os diretores justificaram as negociações alegando que haviam se alavancado e precisaram vender os papéis para fazer frente a chamadas de margem.
De acordo com investigação da Polícia Federal, foram negociados R$ 287 milhões em papéis da companhia por executivos da Americanas.
O documento do comitê independente mostra diálogo entre ex-diretores da empresa dizendo que gostariam de vender papéis antes da divulgação de resultados do terceiro trimestre de 2022 — quando os números ruins do setor começaram a aparecer.
Fim de 2022
O comitê independente apresenta evidências de que, na segunda metade de 2022, os executivos da Americanas começam a ficar mais preocupados com a situação financeira da empresa.
A questão é que, dali a alguns meses, no início de 2023, Sérgio Rial assumiria a presidência da rede no lugar de Miguel Gutierrez, e ficaria mais difícil esconder o rombo.
Diálogos mostram uma tentativa — ainda que pouco enfática — de ir desfazendo o esquema. Ao mesmo tempo, há conversas em que os então executivos discutem como justificariam os números da empresa para o futuro CEO.
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Comitê independente foi contratado para investigar a fraude contábil de R$ 25 bilhões na Americanas — Foto: Mônica Zarattini/EstadãoFonte: Valor Econômico

