O Brasil e demais países dos mercados emergentes podem ter um cenário mais desafiador para atrair investidores internacionais à medida que os Estados Unidos normalizam sua política monetária, avalia Gabriela Santos, estrategista-chefe do J.P. Morgan Asset. Segundo ela, pensando no longo prazo, o fato de o mercado mais seguro do mundo – o de Treasuries, os títulos do Tesouro americano – voltar a ter um juro real positivo aumenta a taxa mínima interessante para o investidor global aplicar em mercados de muito mais risco, como os emergentes, incluindo o Brasil.
“O investidor não olha somente o diferencial de juros absoluto, mas o risco que está tomando por isso. Tem que valer muito mais a pena agora do que na última década, quando os Treasuries ofereciam taxas de juros reais negativas. Depois de mais de dez anos, veja só, voltamos a conversar sobre renda fixa com o investidor americano”, afirmou Santos em entrevista ao Valor, durante rápida passagem pelo Brasil.
Valor: Do início do ano para cá, as expectativas de o Federal Reserve cortar os juros ficaram mais distantes. Você mudou suas projeções?
Gabriela Santos: O cenário não mudou tanto quanto a extrema precificação do mercado, que passou de projetar sete cortes este ano para uma provável nova alta nos juros. Para mim, o cenário mudou pouco, com a economia se mostrando um pouco mais resiliente, a inflação vai demorar um pouco mais para voltar à meta de 2%, os cortes de juros virão alguns meses depois. Não é uma mudança dramática no panorama. Ainda vemos a economia dos EUA crescendo ao redor de 2%, não teremos recessão, a inflação deve chegar perto dos 2% no fim do ano, com 4% de desemprego. O que mudou foi que agora esperamos dois cortes e não mais três, como no início do ano, e com o afrouxamento monetário começando possivelmente em setembro e não mais em maio ou junho. Foram mudanças muito mais na margem. O próprio Fed não deverá mudar muito suas projeções econômicas a serem divulgadas na reunião de junho e os ‘dots’ – as projeções individuais das autoridades sobre os rumos da taxa básica de juros do Fed – devem mostrar dois cortes ao invés de três.
Valor: Suas projeções foram mais conservadoras – de três cortes – quando alguns viam até sete no começo do ano, embalados por dados de um pouso suave…
Santos: Não podemos nos deixar levar por um único dado separadamente e não mudar nossa visão a partir de cada dado divulgado. Temos que construir um mosaico de dados e analisar as tendências, incluindo cada dado novo, mas o utilizando junto com os demais para construir uma foto robusta do cenário e aí tirar algumas conclusões. O que prejudica os retornos é olhar cada dado isoladamente. Estava claro que não teríamos sete cortes este ano. E é essa avaliação que o Fed vem fazendo. Eles querem construir essa foto, olhar as tendências de três, seis meses, para tirar uma conclusão firme.
Valor: Essa dependência de dados do Fed não cria volatilidade?
Santos: Sim, o problema de ser dependente demais de dados de alta frequência é que gera mais volatilidade, principalmente em juros, e pode levar ao risco do banco central estar atrasado aos fatos e não adiantado. Mas o fato de o Fed ter saído da dependência de modelos teóricos para a dependência de dados faz sentido à medida que ele está querendo entender como a economia está evoluindo nesse novo ciclo pós-pandemia. A gente ainda está descobrindo como será a economia agora. E, nesse sentido, os modelos econômicos nos servem até certo momento e é importante levar em conta os dados reais e não só a teoria.
Valor: A curva de juros se encontra invertida há muito tempo, com o curto prazo pagando mais que o longo. Ela deve voltar ao normal ainda neste ano?
Santos: Achamos que a ‘desinversão’ fica para 2025. No curto prazo, os juros irão cair de verdade quando o Fed cortar os juros. Temos um teto de 5% para o ‘yield’ [retorno] do Treasury de dez anos e um piso de 4%. Não achamos que os juros longos caiam muito. Então, à medida que os juros curtos recuam, a curva voltará ao normal. A questão é: como será esse normal?
Valor: Em que sentido?
Santos: Saímos de um período onde os juros de curto prazo eram zero e os de longo tinham dificuldade em se manter acima de 2%, ou seja, tínhamos juros reais negativos. Em um mundo com a política normalizada, acreditamos que os juros de curto prazo ficarão entre 3% e 3,5%, e os de longo, em torno de 4%, voltando a apresentar juros reais positivos, o que é muito importante para a estratégia de investimento. Teremos renda em renda fixa de novo! E sem ter que buscar riscos demais. Nesse novo ambiente, não é toda companhia que irá bem. Muitas só tiveram bons resultados porque o dinheiro estava de graça. Agora não, vai precisar de gestão ativa em seus investimentos. Voltaremos em parte ao mundo de investimentos que tínhamos antes da crise financeira, baseado em ‘valuations’, em fundamentos, e não em dinheiro buscando retorno adoidado com altos riscos porque os juros reais estavam negativos.
Valor: Isso pode ser ruim para os emergentes?
Santos: Será mais desafiador. Na última década, de juros reais negativos, investidores tinham que absorver muito risco para gerar retorno e renda. Por isso, aumentou o apetite por ‘carry trade’ de dívida emergente, buscando retorno que compensasse risco extra. Com o retorno dos juros reais positivos nos EUA, e em outros países desenvolvidos, terá que realmente valer a pena para o investidor tomar um risco extra em dívida emergente. Serão mais seletivos. Ainda vemos a dívida de toda América Latina, incluindo Brasil, como positiva porque os juros da região estão muito mais elevados que os EUA. Por isso que vemos vários bancos centrais prestando muita atenção no diferencial de juros com os EUA. Se cortar demais, vai afetar o fluxo de estrangeiros e afeta a moeda, como vimos especialmente em abril com todas as moedas da a América Latina.
Valor: O dólar se valorizou muito em abril…
Santos: Sim, cerca de 3%. Acredito que o potencial da Europa cortar os juros antes dos EUA esteve por trás desse fortalecimento. Antes, as políticas estavam em sincronia e agora começa uma divergência. O fato de o Fed ter o luxo de cortar mais devagar que a Europa provocou uma forte depreciação do euro e da libra, e outras moedas mundiais. O diferencial de juros aumentou muito a favor dos EUA em relação a outros países, o que fez o dólar subir. Acredito que continuará firme, mas não deve se valorizar muito mais. E o mercado vai começar a focar menos no diferencial de juros e focar mais no diferencial de crescimento econômico, que estava muito a favor dos EUA, mas agora está um pouco menos divergente, com a Europa voltando a crescer.
Valor: É possível a inflação dos EUA voltar para meta de 2%?
Santos: Acreditamos que chega perto dos 2%. Projetamos uma inflação média de 2,5% para os próximos 10 a 15 anos. É muito difícil criar um ciclo vicioso de inflação nos EUA. Não existe indexação de preços, de salários, de alugueis, então eles se ajustam. Outra coisa: o sindicato e o trabalhador não têm muito poder perto das empresas. Por outro lado, não temos mais austeridade fiscal, e gastos com infraestrutura, transição energética e a reorganização da cadeia de abastecimento podem ser inflacionários. Não é só produzir onde é mais barato, mas onde é mais seguro. Também existem forças desinflacionárias como a tecnologia sendo a principal por meio de inteligência artificial e automatização.
Valor: Que conselho você daria ao investidor brasileiro?
Santos: Diversifique. Porque os riscos existem. E, especialmente para o brasileiro, tenha uma alocação internacional para acessar temas como tecnologia e saúde, que não existem aqui e são abundantes nos mercados internacionais.
fonte: valor econômico

