A imposição de tarifas de 50% pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros não apenas provocou alguma aversão a risco, como também reajustou a narrativa da corrida eleitoral do ano que vem. Se, antes, prevalecia a visão de uma possível mudança na condução da política econômica a partir de 2027, que poderia impulsionar os mercados domésticos, agora a crise político-comercial enfraquece esse cenário, com um aumento na popularidade do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Apesar desse ambiente no curto prazo, o chefe de pesquisa macroeconômica global da Ashmore, Gustavo Medeiros, avalia que ainda há entraves estruturais difíceis para o governo contornar.
Há algumas semanas, Medeiros apontava a perspectiva de mudança política como um dos principais gatilhos para sustentar a valorização das ações no Brasil, ainda que o cenário exigisse cautela. A carta enviada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, a Lula, porém, adicionou uma dose extra de incerteza ao quadro eleitoral brasileiro, refletindo-se, em alguma medida, nos mercados locais, especialmente na bolsa.
Desde 9 de julho, data do anúncio das alíquotas ao país, investidores estrangeiros já retiraram cerca de R$ 6,9 bilhões da B3, enquanto as posições vendidas no Ibovespa renovaram as máximas. Ao Valor, Medeiros afirma que a leitura do cenário ficou mais difícil, o que pode afastar os investidores dos ativos locais no curto prazo, mas que ele mantém o otimismo em relação ao mercado brasileiro. Veja, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Valor: O que vai ser mais importante para os mercados: as tarifas, se forem implementadas, ou esse “trade” eleitoral?
Gustavo Medeiros: O trade eleitoral. Um dos pontos que me deixava tranquilo em relação à tarifa sobre o Brasil é que a exposição efetiva aos Estados Unidos é pequena. A maioria dos produtos exportados são commodities, que são relativamente fáceis de mudar o destino. O problema é que a tarifa veio com um cunho claro político, foi uma ‘bola curva’, um negócio que é difícil de você prever. E isso afetou todo o meio campo de 2026 por conta de como os players se posicionaram, desde Lula a Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo].
Valor: Essa melhora da aprovação do presidente Lula, apontada por recentes pesquisas de opinião após o “tarifaço”, deve se sustentar até a eleição ou é algo passageiro?
Medeiros: Vai depender se as tarifas serão aplicadas e quem vai levar a culpa sobre quaisquer efeitos que vão trazer, além da reação dos políticos em si. Eu acho que é prematuro falar que Lula é o grande vencedor para 2026. Mas no momento ele está ganhando um bom impulso, retoma o controle sobre a narrativa. Ele estava com dificuldade em implementar qualquer tipo de política via Congresso. A queda do poder de compra, no ano passado, apesar de ter sido parcialmente revertida por conta do real se valorizando, o atingiu e, junto com alguns escândalos políticos, levou à queda da popularidade. E as tarifas o fizeram retomar a frente da narrativa. A população toda está indignada com essa tarifa, independentemente da sua opinião política.
Valor: E isso deve se sustentar?
Medeiros: A interpretação das pessoas e dos políticos pode mudar. Mas eu vejo basicamente três fatores principais para sair dessa crise. Primeiro, vindo dos EUA. Como alguns itens têm uma visibilidade grande na cesta do consumidor americano, culturalmente falando, pode haver a reversão total ou parcial de alguns deles. Outra questão é como a direita vai lidar com isso. Se o [ex-presidente Jair] Bolsonaro e o Tarcísio conseguirem uma interlocução razoável com os EUA e pedirem para reduzirem a tarifa, em uma conversa de bastidores, no sentido de “está me atrapalhando mais do que está ajudando”. E a terceira é o papel das multinacionais brasileiras, que serão interlocutores importantes.
Valor: Como o sr. vê o comportamento dos ativos brasileiros até o fim deste ano?
Medeiros: O dólar voltou a se valorizar um pouquinho nas últimas semanas. Isso não ajuda. Além disso, a história local fundamental piorou. É natural você ter um compasso mais de espera e um pouco mais de dificuldade de continuar performando por conta de um dos grandes catalisadores, que é a eleição, ficou bem mais incerto. Mas a gente está falando de curto prazo. No médio e longo prazos é mais complicado. É muita especulação. Há um cenário em que essa expectativa de recuperação do Lula está acontecendo e tem muito mais incerteza no ponto de vista dos fundamentos dos ativos brasileiros. Com isso, perde-se um pouco o entusiasmo de ter posição nos ativos brasileiros.
Valor: A avaliação da Ashmore de uma mudança no regime político na próxima eleição segue em vigor?
Medeiros: Eu acho que essa parte é muito incerta. Eu acho que essa tendência política que estávamos falando de 2026 é uma questão um pouco estrutural: a idade avançada do Lula, a perda de compra da população. São questões estruturais difíceis de serem revertidas. E o Lula dificilmente vai conseguir acertar todos os pontos e ser muito efetivo. O risco é que ele é um grande candidato, então, mesmo se ele chegar relativamente fraco em comparação às outras eleições nas quais ele ganhou, ele ainda é o Lula, é um cara difícil. A eleição no Brasil é uma das menos triviais da América Latina.
Valor: Depois de um 2024 muito negativo, a América Latina se tornou um destaque entre os emergentes neste ano. Qual foi a mudança mais significativa no cenário macroeconômico ou político que justifique esse movimento?
Medeiros: Eu acho que tiveram três mudanças bem importantes. A primeira foi em relação à performance do dólar em nível global, em que o excepcionalismo americano se inverteu. Os ativos americanos, que operavam com um prêmio em relação a outros ativos globais, agora não operam mais. O segundo ponto é que você tinha, no ano passado, um sentimento muito negativo, principalmente vindo de investidores locais, com a América Latina. Isso contagiou também o estrangeiro, principalmente no final do passado. E esse sentimento mudou a partir do começo deste ano, parcialmente por conta da resiliência econômica da América Latina, parcialmente por conta de mudanças de política monetária e pelo sentimento de uma antecipação da mudança política à frente. E, pelo terceiro ano seguido, as economias latino-americanas estão muito mais resilientes do que a expectativa, incluindo o Brasil.
Valor: A mudança política é um dos principais gatilhos para sustentar essa valorização das ações na América Latina?
Medeiros: Sem dúvida. Obviamente tem bastante incerteza. Há um ambiente global em que eleitores têm a intenção ou um desejo muito forte de mudança. E a mudança um pouco mais radical do que a normal. Isso foi refletido um pouco na eleição do [Javier] Milei [na Argentina] e na própria volta de Trump nos Estados Unidos. A gente vê isso também em países do leste europeu, onde a extrema-direita está performando melhor do que o esperado. E isso gera uma incerteza. A grande questão na América Latina não é se nós teremos uma transição dos regimes de esquerda para a direita, mas como será essa transição. O mercado financeiro é muito ruim em precificar nuances. Então, eu acho que essa tendência geral, por enquanto, é o manto mais importante.
Fonte: Valor Econômico
