O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por maioria de votos, a omissão do Congresso Nacional para regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, previsto pela Constituição Federal de 1988. Porém, ao contrário de outros casos julgados, não impôs prazo para a instituição do tributo. A decisão seria uma “advertência institucional”, segundo afirmou o ministro Alexandre de Moraes, que presidiu a sessão de ontem.
O precedente, segundo especialistas, é importante por fomentar o debate em torno da instituição do imposto sobre grandes fortunas e mostrar que o Judiciário busca se alinhar ao Executivo no que se refere à justiça tributária. Estudo sobre o assunto divulgado no ano passado, na Fundação Getulio Vargas (FGV), mostra que mais de 50 projetos de lei complementar, ora de iniciativa do Senado, ora de iniciativa da Câmara dos Deputados, foram apresentados, no intervalo entre os anos de 1989 e 2023, mas nenhum deles foi efetivamente aprovado.
“Já foram apresentados inúmeros projetos de lei sobre o assunto. E se nenhum foi aprovado é porque não há interesse”, afirma Gabriel Quintanilha, professor da FGV Direito Rio, acrescentando que a decisão dos ministros é contrária à própria jurisprudência do STF, que costuma entender que a inexistência de lei tributária equivale à opção legislativa legítima pela não instituição do tributo.
No Supremo, o tema foi julgado em ação de autoria do Psol, sob a alegação de que a Constituição Federal prevê sete impostos federais e, à exceção do que trata de grandes fortunas, todos os demais estão regulados (ADO 55). Para o partido, mais de três décadas depois, esse dispositivo constitucional “permanece letra morta”, por falta da lei complementar. O imposto, acrescenta, poderia arrecadar cerca de R$ 40 bilhões, ao incidir sobre fortunas acima de R$ 10 milhões.
Primeiro a votar, o ministro Flávio Dino afirmou que o tema desperta muita atenção, porque é o único dos tributos previstos na Constituição que jamais foi implementado. “Temos uma situação claramente de omissão constitucional”, afirmou.
O ministro citou supostos inconvenientes na instituição do imposto sobre grandes fortunas, como a técnica a ser empregada e se a cobrança levaria ao afastamento de capitais, mas disse que esse debate não cabe ao STF, mas ao Congresso. “Não há mais razoabilidade para a mora”, afirmou. O ministro propôs o prazo de 24 meses para a edição da lei sobre tributação de grandes fortunas.
A instituição de prazo, negada agora, já foi adotada em ao menos dois casos julgados neste ano. Em outubro, o STF deu prazo de 24 meses para a edição pelo Congresso de uma lei para proteger trabalhadores urbanos e rurais dos impactos da automação (ADO 73). Em maio, o prazo estabelecido foi de 180 dias para lei que defina como crime a retenção dolosa de salários (ADO 82).
Não foi fixado prazo no caso do imposto sobre grandes fortunas por maioria de votos. Os ministros consideraram que seria necessário realizar mais estudos sobre o tema para evitar eventual fuga de capitais.
Assim como Dino, o ministro Cristiano Zanin também considerou evidente a mora, mas divergiu na discussão sobre a imposição de prazo. “Se o Brasil criar esse imposto apenas aqui, teríamos a possibilidade de haver fuga de capital e patrimônio. Por isso que a instituição internacional desse imposto poderia ter um reflexo mais positivo”, afirmou.
No mesmo sentido, o ministro Kassio Nunes Marques destacou que há uma omissão, mas “cercada por muitas dificuldades”, e que a opção legislativa por vezes é uma omissão calculada por uma decisão política de não enfrentar o tema. Seguiram o mesmo entendimento os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. Na mesma linha foi o voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello (aposentado).
Moraes, que presidiu a sessão, afirmou que diversos países já aprovaram esse imposto, mas que a prática levou à fuga de capitais em alguns países como a França, o que exigiria um estudo mais complexo pelo Congresso para a criação do tributo.
O ministro Luiz Fux divergiu, negando o pedido do PSOL. “Temos que respeitar a opção política. Não é uma discricionariedade, é uma opção política do governo”, disse ele, criticando a opção da maioria por não impor um prazo. “Reconhecer o estado de omissão, e aí? Qual o resultado prático da decisão judicial?”, questionou Fux.
Para o ministro Flávio Dino, se o Congresso entender que não deve haver imposto sobre grandes fortunas, pode revogar a previsão constitucional. O que não é possível, acrescentou, é o “absurdo” de uma cláusula constitucional vigente sem eficácia por quase 40 anos. “Se o Congresso acha que não deve existir imposto sobre grandes fortunas no Brasil, revoga.”
Na sessão de ontem, os ministros afirmaram que existem pelo menos 30 projetos de lei sobre taxação de grandes fortunas parados no Congresso Nacional.
Sócio-fundador do escritório Guerzoni Advogados, Aurélio Longo Guerzoni entende que a ausência de fixação de prazo ao Congresso Nacional para a instituição do imposto evidencia a falta de efetividade da decisão. “Trata-se essencialmente de uma advertência institucional, que preserva a autonomia do Poder Legislativo para deliberar sobre o tema conforme a conveniência política do momento”, afirma.
O julgamento, segundo Letícia Schroeder Micchelucci, sócia do escritório Loeser Hadad Advogados, mostra que o Judiciário busca se alinhar ao Executivo no que se refere à justiça tributária. “Ainda que sem efeitos imediatos, a decisão reforça a tendência de recomposição da carga tributária, com possível deslocamento do peso sobre o consumo e produção para a renda e o patrimônio, o que pode redesenhar, a médio prazo, todas as atuais estratégias econômicas e financeiras dos contribuintes.”
Os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin não participaram da sessão. O ministro André Mendonça não votou porque entrou na vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que já havia votado no caso.
Fonte: Valor Econômico

