A postura do Executivo de não se comprometer com um ajuste fiscal que dê perspectiva de estabilização do endividamento empurra o Banco Central para uma saia-justa de não poder perseguir apenas o cumprimento da meta de inflação, avalia o economista-chefe da Genial Investimentos, José Márcio Camargo. Em sua opinião, os investidores perderam fé na capacidade do arcabouço fiscal cumprir a promessa de cumprir superávits primários e, na ausência deles, olham cada vez mais a dinâmica da proporção dívida/PIB, que deve ter crescido quatro pontos percentuais em 2024 mesmo com o cumprimento das metas previstas e deve avançar na mesma proporção até 2026.
O mesmo cenário deverá começar a fazer o BC, espremido entre essas duas forças, a considerar uma postura mais leniente e promover, em algum momento do ano, uma flexibilização dos juros mesmo diante de uma inflação que acelera, com o objetivo de reduzir os juros reais e conter uma dinâmica explosiva da dívida.
A Genial espera uma inflação de 5,7% em 2025 e 7,2% em 2026. Obviamente, tal postura da autoridade monetária implica perda de credibilidade, mas é uma tentativa de evitar um cenário grave de dominância fiscal, segundo ele. “O grande perigo é o BC perder o controle desse processo, ver a inflação acelerar mais do que ele está esperando. É um risco real e é preciso muito cuidado para que isso não aconteça.”
Todos os sinais são de deterioração do cenário inflacionário nos próximos anos”
Para o professor aposentado da PUC-Rio, a única forma de reverter esse processo seria através de um pacote fiscal agressivo, que gerasse um superávit da ordem de 2% do PIB. “Não precisa ser para agora, mas algo que dê perspectiva de redução da dívida lá na frente”, ressalta. O problema, em sua opinião, é que uma medida do tipo necessariamente implica corte de despesas sociais, rubrica que mais cresce e chega hoje a 65% do Orçamento. “A questão é que não acreditamos que este governo vá fazer isso. E, para evitar a dominância fiscal, o BC vai adotar essa postura intermediária.”
Confira os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: Qual a sua perspectiva para o Brasil neste ano?
José Márcio Camargo: A nossa avaliação é que existe uma perda de credibilidade generalizada na política fiscal – na política monetária também, mas vamos nos concentrar aqui no fiscal. Existe um consenso sobre a falta de capacidade do arcabouço fiscal de estabilizar a dívida como proporção do PIB e da capacidade do governo de gerar uma meta de superávit primário como está inscrito no arcabouço. Por isso, criou-se uma situação na qual os investidores simplesmente não acreditam que a relação dívida-PIB vai estabilizar. É isso que vai gerar um comportamento explosivo da dívida. Como você não acredita na queda da dívida como proporção do PIB, os investidores passam a demandar taxas de juros cada vez mais altas para financiar os déficits fiscais, e isso tende a gerar uma piora no cenário fiscal, uma pressão, uma pressão de desvalorização cambial e, por fim, pressão inflacionária.
Valor: Como está o cenário do sr. para a inflação neste e no próximo ano?
Camargo: A gente espera que o IPCA termine em 5,7% em 2025 e em 7,2% em 2026. Mesmo com a aprovação do pacote de gastos, o cenário é de que a política fiscal seguirá expansionista. Além disso, o câmbio piorou muito no fim de 2024, e a perspectiva é que siga desvalorizado. Projetamos dólar em R$ 6,50 no fim de 2025 e R$ 7,20 no fim de 2026. Por fim, os preços de serviços estão numa trajetória de aceleração, exatamente porque a atividade está muito apertada, o hiato do produto segue crescendo de forma importante. Ou seja, todos os sinais são de deterioração do cenário inflacionário nos próximos anos.
Valor: Por que 2026 vai ser pior que 2025 para a inflação? É o câmbio?
Camargo: Houve uma política fiscal expansionista que levou o PIB a rodar acima do potencial, gerou um aperto importante sobre o mercado de trabalho e uma pressão sobre os salários, principalmente do setor de serviços. Essa combinação acaba gerando uma pressão meio que permanente. Claro, o impulso fiscal está arrefecendo e ficará negativo em 2025. Mas voltará a acelerar em 2026 porque é ano de eleição.
Valor: O ciclo de altas da Selic não deveria impedir esse processo?
Camargo: A nossa avaliação é que o BC não vai elevar a taxa de juros em nível suficiente para jogar inflação para a meta, vai ser um pouco conivente porque, para chegar à meta com essa política fiscal, a taxa final é muito alta. Nós projetamos que a Selic vá chegar a 15% no fim desse ciclo e baixar a 13,5% em 2026.
Valor: O BC vai cortar a Selic mesmo com a inflação reacelerando no ano que vem?
Camargo: O que nós acreditamos é que o BC vai flexibilizar a persecução da meta, vai ser conivente com uma inflação mais alta porque também vai levar em consideração a trajetória da relação dívida/PIB. Ao não elevar a Selic ao patamar necessário, ele permite uma redução dos juros reais e, consequentemente, uma redução do custo excessivo da dívida.
Valor: O cenário que descreve é de dominância fiscal?
Camargo: Ainda não. Dominância fiscal é quando o Banco Central aumenta a taxa de juros e mesmo assim os investidores demandam uma taxa maior para financiar a dívida, o que faz com que as projeções para a dívida como proporção do PIB piorem e levem a uma fuga de recursos da economia, com consequente desvalorização cambial e inflação. Em suma: quando qualquer alta de juros, em vez de reduzir a taxa de inflação, acaba aumentando. Mas este é o fim de um processo em que nós acreditamos estarmos no início. Um momento em que o BC começa a admitir que não consegue diminuir a inflação via política monetária, o que começa a contaminar as expectativas – já estamos vendo isso nas projeções para 2027. O BC vai adotar uma postura intermediária, no sentido de que vai aceitar mais inflação para atacar o crescimento da relação dívida/PIB. O grande perigo é a autoridade monetária perder o controle desse processo, ver a inflação acelerar mais do que ele está esperando. É um risco real e é preciso muito cuidado para que isso não aconteça.
Valor: E como comunicar um corte de juros em 2026 em meio a uma reaceleração da inflação?
Camargo: A forma com o BC vai comunicar isso é difícil dizer, talvez pegar carona em algum anúncio de ajuste fiscal. Hoje, os diretores são unânimes em dizer que não estão preocupados com a questão do endividamento, mas a nossa avaliação é que, ao longo do tempo, isso vai ficar mais patente nos discursos. A questão de fundo é que a dinâmica fiscal é quem domina este processo. É cada vez mais difícil fazer política monetária com o objetivo único de atingir a meta, cada vez mais custoso. A perda de credibilidade da política fiscal acaba minando a credibilidade da política monetária. A nossa estimativa é que a relação dívida/PIB saia de 77,5% em 2024 para 82,9% em 2025 e 85,9% em 2026. Isso mesmo com mais inflação e menos juros. É isso que vai definir o comportamento do BC.
Valor: O que achou do pacote fiscal proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso?
Camargo: A impressão que fica, quando você olha de fora, é que existe muita resistência dentro do Executivo a efetivamente fazer um programa que seja capaz de gerar uma situação na qual a dívida pare de crescer como proporção do PIB. Veja: temos uma crise fiscal, o ministro da Fazenda apresenta soluções e o presidente da República, em vez de decidir o que fazer, chama os ministros que serão negativamente afetados para negociar. Obviamente, o resultado final tinha que ser fraco. Só para dar um exemplo da diferença: em 2003, no primeiro mandato do presidente Lula, ele aprovou uma reforma da Previdência e expulsou cinco deputados que votaram contra. Desta vez, o presidente resolveu negociar antes com os ministros. É um sinal muito ruim, do meu ponto de vista, um sinal de incapacidade decisória do presidente. Quando você compara com o que ele fez lá atrás e agora, é uma diferença muito importante. Nunca estivemos otimistas com o pacote justamente por isso. E também por isso, fica difícil esperar um algo mais efetivo já no futuro próximo.
Valor: O que é necessário para recuperar a credibilidade fiscal?
Camargo: O governo teria que apresentar um projeto realmente forte de redução de gastos, de contenção de gasto público, algo da ordem de 2% do PIB. Fazer algo capaz de mostrar aos investidores que o déficit vai diminuir. Não precisa ser um ajuste para agora, mas algo que dê perspectiva de que redução da dívida lá na frente. É isso que faria cair os juros e também o custo da dívida, só que isso passa pela redução das despesas sociais. Mais de 65% do Orçamento do Brasil é desse tipo: aposentadorias, abono, transferências de renda. Qualquer programa realmente consistente precisaria tocar nesse ponto: as despesas sociais crescem, em termos reais, acima do PIB e das receitas. A questão é que não acreditamos que este governo vá fazer isso. E, para evitar a dominância fiscal, o BC vai adotar essa postura intermediária.
Valor: A atividade não deveria desacelerar mais com a alta de juros precificada?
Camargo: Vai acontecer uma diminuição do impulso fiscal em 2025, ele vai ficar negativo no ano contra ano, mas vai permanecer positivo em nível. É um dos fatores que vão ajudar o crescimento do PIB sair de 3,4% em 2024 para 2,4% neste ano. Além disso, o setor agrícola vai voltar a crescer e também tem o carrego estatístico de 202, que será alto. Para 2026, estamos com 1,8%, mas é possível que seja menos, depende bastante do que acontecerá com os juros. Se eles caírem como em nosso cenário, ajuda a atividade. Caso contrário, o PIB pode sentir mais.
Fonte: Valor Econômico

