Para o neurocientista, substâncias proibidas como maconha, LSD e MDMA podem ser aliadas no tratamento de transtornos psiquiátricos e males que afligem os idosos
Por Helena Celestino, para o Valor — Rio
26/10/2023 05h05 Atualizado há 5 horas
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2023/s/q/UAUa0CTj2anL8NBunMPg/83501938-soc-20-20sidarta-20ribeiro-20neurocientista-20especializado-20em-20sonhos-20e-20autor-20de-20o-20or-c3-a1culo-20da-20noite.jpg)
Ao andar pelo Leme numa manhã de sol, Sidarta Ribeiro parece um menino do Rio. De bermuda e camiseta sem manga, usa uma linguagem coloquial, quase um carioquês, ao decifrar os mistérios do cérebro nesta entrevista num bar vegetariano perto da praia.
O estilo descontraído do cientista, professor, doutor e escritor de 52 anos só torna mais imponente o seu currículo: neurocientista, mestre em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, PhD em neurofísica pela Universidade de Duke, fundador e vice-diretor do Instituto do Cérebro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E também contramestre de capoeira. “Daqui a uns dez anos, viro mestre”, costuma dizer com autoironia.
Expert em muitos assuntos, memória, sono e sonho foram os temas dos seus últimos dois livros — “O oráculo da noite” e “Sonho manifesto”, ambos editados pela Companhia das Letras. Agora, nessa temporada carioca de um ano, vem trabalhando com a Fiocruz e lança no próximo dia 7 “Flores do bem – A ciência e a história da libertação da maconha” (Fósforo Editora R$ 59,90) .
Nas suas pesquisas, Sidarta está desbravando mais uma fronteira científica. “Os psicodélicos e a cannabis são os mais interessantes do ponto de vista da saúde mental e do corpo biológico, porque são substâncias anti-inflamatórias, que promovem novas sinapses; são muito promissoras para a medicina, muito benignas. Estão entrando pela porta da frente da saúde” , diz.
Valor: A maioria dos países desenvolvidos já aprovou o uso medicinal da maconha e aqui isso avança lentamente. Por que é tudo tão demorado?
Sidarta Ribeiro: É um pouco como foi a Lei do Divórcio nos anos 70. A separação dos casais já acontecia desde que o mundo é mundo e, num certo momento, criou-se a Lei do Divórcio. O uso social da maconha está aí, estima-se que as associações (de pacientes e familiares que ganharam processos com base no direito à saúde) estejam provendo remédios para 100 mil pessoas no Brasil. A gente vê que a proibição está ruindo, não de uma vez só, ruindo em vários pedaços ao mesmo tempo, é um processo complexo. Se você olhar a lei, ela nunca proibiu uso medicinal e pesquisa sobre a maconha. No entanto, estão interditados. A discussão não é tanto sobre lei; é mais um pânico moral mesmo.
O senhor defende a liberação de todas as drogas…
Sidarta: Acho que precisamos legalizar e regulamentar todas as drogas. Não é só a minha posição; é também da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, da qual eu sou conselheiro atualmente. Todas elas são substâncias que podem fazer bem ou mal, dependendo do contexto, do tipo de uso, das dosagens, dos contaminantes, das interações, do tipo de risco. Se a gente não tiver um olhar sóbrio e científico para tudo isso, vai continuar o que temos hoje, um pânico moral. E tem uma discussão aí: o Estado pode cercear o uso de uma substância que faz bem para aquela pessoa? Se não é medicinal, é terapêutico ou recreativo e tudo pode fazer bem. Acho um pouco triste que o julgamento fique vinculado apenas à maconha, porque a questão é maior. Existe muito estigma em relação aos usuários de crack, uma droga que é um subproduto da cocaína. É uma substância muito danosa para o fígado, mas isso quer dizer que devemos cercear as pessoas, prender, torturar e até matar? Se a gente fosse proibir substâncias perigosas, a gasolina seria proibida, o veneno de rato também. Existe uma discussão “foucaultiana” [Michel Foucault, filósofo francês, 1926-1984] sobre a liberdade, quanto o Estado tem poder sobre a vida das pessoas. E uma mais pragmática de saúde pública: em nome de que a polícia mata uma criança indo para a escola? Para proteger o quê? As pessoas que fazem uso problemático das substâncias precisam de ajuda.
Valor: Está havendo uma revolução científica sobre o uso de psicodélicos para tratamento de doenças?
Sidarta: Essa é uma supernovidade, mas ela é velha. Quem fez primeiro uso dos psicodélicos foram os indígenas na América do Sul, há mais de mil anos. Usavam, por exemplo, o MDMA (composto do ecstasy). A primeira renascença foi nos anos 50 e 60, quando a sociedade ocidental, universitária e acadêmica descobriu os cogumelos, a ayahuasca, o LSD e os cientistas fizeram pesquisas muito interessantes sobre isso. Muita gente critica essas pesquisas porque não tinham rigor estatístico — isso evoluiu de 1960 pra cá —, mas de qualquer forma as questões mais importantes foram todas tocadas: a ação delas sobre traumas, depressão, ansiedade, abuso de substâncias, tudo foi pesquisado nos anos 60 com resultados muito promissores. Mas todo o trabalho foi suprimido nos anos 70 quase completamente, e o retorno a essas pesquisas acontece agora, nos últimos dez anos.
Valor: E essas drogas proibidíssimas serão os remédios do futuro?
Sidarta: Os psicodélicos e a cannabis estão entrando pela porta da frente da saúde porque agora você tem uma base científica muito sólida, acumulada nos últimos dez anos, mostrando que de fato é muito melhor fazer uma psicoterapia assistida por psicodélicos, de baixíssimas doses mas muito eficazes, durante duas ou três sessões em 10 a 15 encontros. Isto tem um efeito mais profundo para mitigar a depressão, o desespero, a angústia do que tomar antidepressivo todo dia. A novidade para a ciência — não para os índios — é não trocar uma pílula por outra, não é trocar o Prozac pelo LSD, mas entender que tratamento não é a substância; a substância ajuda o tratamento, seja qual for. Do pajé ao divã, são inúmeras opções. Se colocar uma substância psicodélica na jogada, por alguns momentos vai estar muito mais aberta para se transformar. Seja qual for a terapia, ela vai receber um empurrão .
Isso leva a uma revolução na psiquiatria convencional?
Sidarta: A novidade não é dizer: olha, temos uma substância interessante agora. Não, é a abordagem que já mudou, porque nos últimos 40 anos o protocolo era “toma um remédio e vai pra casa, não encha a paciência”. Há exceções, mas o modelo padrão é a sessão de 15 minutos. Tem um jargão pra isso: doidão Aldol, doidinho, Prozac, ou seja, não há espaço para a subjetividade, não tem mais escuta. Isso é mais grave ainda porque há indicações de que esses antidepressivos, assim como os psicodélicos, são muito sensíveis ao setting [ambiente]. Se você tomar 100 mg de LSD, for para uma praia maravilhosa junto com amigos, é grande a possibilidade de ser ótimo. Se você tomar 100 mg de LSD e for para a cadeia, a chance de ser uma “bad trip” é de 100%. Isso a gente sabe, mas não sabíamos é que isso é verdade também para o Prozac. Pega um camundongo, dá Prozac para ele e bota num ambiente maneiro, ele fica muito feliz. Você pega a mesma variedade de camundongo e bota num ambiente adverso, depressivo, e dá Prozac, o efeito é pró-depressivo.
Valor: Isso pode provar que os antidepressivos foram superestimados?
Sidarta: Vamos transportar isso para os seres humanos. Imagina uma pessoa que mora mal, não tem saneamento básico, não tem relações boas em casa, tem mil problemas. Ela vai para o consultório e, na hora que ela quer falar, o médico diz, não fala nada e toma esse remédio. E ela toma e piora, porque está num setting inadequado. Se isso se cristalizar como sendo um fato — por enquanto é algo que está aparecendo na literatura —, se for um fato confirmado e acontecer assim com os seres humanos, significa que, nos últimos 40 anos, a indústria farmacêutica que “rachou” de ganhar dinheiro com antidepressivos, vai ter problemas. Vai ter gente processando essa indústria, assim como processaram a indústria do tabaco nos anos 70 e 80. É propaganda enganosa dizer que uma substância é antidepressiva, se o efeito dela depende do contexto.
Valor: Mas como seria o tratamento com os alucinógenos?
Sidarta: Você é adulta, viveu uma série de experiências e tem uma configuração neural. Vamos dizer que uma parte dela não está legal, está doendo, precisa se transformar. Você tem de aprender alguma coisa para, se transformando, doer menos. A ideia é que você vai à terapia para tentar fazer isso. Encontrar uma maneira de se reconfigurar e reconfigurar a sua relação com o mundo. Você passa dez anos, no mesmo analista, tentando isso. Essa transformação exige que os neurônios se modifiquem: ou que novos apareçam — o que é difícil — ou que se reconectem numa remodelagem das sinapses. A ideia de usar os psicodélicos é para facilitar isso: durante algumas horas você tem alta plasticidade e seus neurônios farão novas conexões. Em geral, usa-se a psilocibina, com efeito mais rápido do que o LSD, que dura muitas horas. Usa-se também a ayahuasca e o MDMA no caso de trauma.
Valor: E quanto tempo duraria o efeito do alucinógeno?
Sidarta: Alguns vão durar 15 minutos, outros dez horas ou três dias. A evidência surgindo agora em camundongos — publicada recentemente num artigo muito interessante da “Neuroscience” [revista científica] — é que, quanto mais longa é essa experiência aguda, quanto mais tempo você está “high”, mais tempo você tem para se transformar depois da sessão. É o que a gente chama de período de integração, fundamental nas aplicações de psicodélicos. Se você pensar seu cérebro como uma xícara de barro, nas três ou quatro horas que você estiver sob o efeito da psilocibina, essa xícara ficará mole e você com seu psicanalista vai usar as mãos para transformá-la. Depois, esse barro ficará ainda meio mole por semanas, e é nesse período que você vai continuar pensando e se reformulando. O terapeuta pode estar junto ou não, depende da relação. Muita gente faz uma sessão com ayahuasca e sente-se como se tivesse tido dez anos de terapia numa noite.
Valor: O sr. acha que nos anos 60 e 70, quando os hippies e os movimentos da contracultura descobriram os psicodélicos, houve também um efeito terapêutico?
Sidarta: Quando os brancos descobriram os psicodélicos e se lambuzaram com eles, acho que muito pouca gente conseguiu atinar com essa prática terapêutica dos indígenas, pensar que precisaria estar sempre com uma pessoa para ajudar e orientar, sobretudo se era alguém iniciante. A galera não estava muito ligada em se transformar. No contexto recreativo, nos anos 70, muita gente teve grandes ganhos e se libertou de muita coisa, rompeu com amarras do capitalismo, da família, mas também muita gente se estrepou. Não sabia o que estava usando, não sabia a dose ou não se preocupou com o ambiente em que estava. Com isso, “bad trips” aconteceram, mas “bad trip” pode ser muito útil: num contexto xamânico tradicional, se você tomar uma “peia”, o jargão para dizer que você teve sofrimento psíquico, emocional e gastrointestinal, é considerado limpeza, lavagem. Sofrimento é visto como uma coisa muito ruim, a ser evitada a todo custo pelos brancos, mas não é assim nas comunidades ameríndias. Nelas, o sofrimento é parte do caminho para a cura, é uma outra lógica. A gente vive num mundo que evita toda a dor, mas produz muita dor.
Valor: O uso do MDMA e da psilocibina está para ser liberado pela agência reguladora dos EUA ainda em 2023…
Sidarta: É iminente, na Austrália e no [estado americano do] Oregon já legalizaram. As substâncias chamadas empatógenas, como o MDMA, dão um abraço na pessoa, ela vai ter uma experiência amorosa, sensitiva. Para alguém muito traumatizada, à beira do suicídio, isso é mágico. Ela está achando que não tem nada de bom no mundo para ela e, de repente, passa cinco a seis horas imersa em amor. Mesmo que no dia seguinte não sinta mais isso, é mágico. A ciência está tentando descobrir os contornos de um tratamento com MDMA; no momento não existe ainda um consenso, mas há um espaço enorme de experimentação, e entendo também que é artificial esse limiar entre o que é terapêutico e o que é recreativo. É um problema acreditarmos nessas repartições estanques que não vêm da ciência, mas da indústria. Eu diria que a experiência das pessoas e a experiência clínica estão à frente das pesquisas.
Valor: Numa das suas palestras, o sr. disse que a cannabis recupera a memória e propicia novas sinapses. Diria que todos acima de 60 anos devem usar cannabis?
Sidarta: “Todos” é uma palavra forte; quem tem psicose não deve usar THC, mas pode usar o cannabidiol, que é um antipsicótico — as duas substâncias têm efeitos quase opostos por causa da maneira como se conectam na proteína, no receptor. Uma criança com epilepsia precisa de óleo de cannabis, mas, a não ser em casos patológicos, maconha não é para jovens e é boa para adultos e idosos, porque vai aumentar a plasticidade do cérebro. O cérebro do jovem está cheio de plasticidade e pode aprender qualquer coisa — ele só não sabe muita coisa ainda, mas pode aprender. Não é todo jovem que se dá mal com a maconha, mas muitos se estrepam. Ao envelhecer, a plasticidade do cérebro vai diminuindo, dá para pensar na maconha como uma reposição hormonal. Algumas mulheres e homens não fazem? É isso que está surgindo agora. Um cientista importante nesse domínio é o André Zimmer: ele tem 20 anos de pesquisa em camundongos e constatou que se der THC para um jovem, ele fica um bobão; dá para um idoso, ele rejuvenesce. Foi feita pesquisa com humanos também, ela não avançou porque não havia interesse da indústria de dizer que maconha é um bom remédio porque ela não dá dinheiro e cresce em qualquer lugar. A maconha é multiuso, compete com Rivotril, com álcool, com tabaco, com analgésico. A indústria diz que maconha faz mal; para ela, bom seriam esses remédios à base de maconha que custam muito caro…
Valor: Muitos médicos se recusam a prescrever cannabis porque os efeitos não estariam suficientemente provados. O que o sr. diz?
Sidarta: O fato de não estar provado não quer dizer que não seja verdade, isso é uma confusão muito grande na conversa dos médicos. Eu digo isso à vontade porque sou biólogo. Quando a penicilina foi descoberta, em 1928, os caras, no início, não a utilizaram. Veio a Segunda Guerra Mundial [1939-1945] e rapidamente perceberam que a penicilina ia salvar muitas vidas. Não havia um ensaio randomizado, com mil pacientes etc. etc. Mas era guerra, e a resposta tinha de ser rápida. Foi aplicada para tratar inúmeras doenças.
As pessoas dizem que as evidências são variadas, e são mesmo, estão em níveis variados para epilepsia, Parkinson, Alzheimer, dor. Se você tem um câncer cerebral e um ensaio “in vitro” mostra que dá bom nesse caso, você não vai querer? Existe um discurso mais científico do que a ciência, e faz parecer que não existe conflito de interesses. No passado, estudos, feitos pelas próprias indústrias, garantiam que os antidepressivos tinham 80% de eficácia. Hoje a gente vê que a eficácia é perto do placebo. Então, o que existe é muito pânico moral.
Valor: Os psicodélicos estão abrindo uma nova fronteira na saúde?
Sidarta: Os psicodélicos são os mais interessantes do ponto de vista da saúde mental e do corpo biológico, porque são substâncias anti-inflamatórias, que promovem novas sinapses, são muito promissoras para a medicina, muito benignas. A ficha que está começando a cair é que o século XX cometeu dois grandes equívocos. Um foi fazer a proibição dessas substâncias, o que é mais tóxico do que as substâncias. E o segundo erro foi escolher as substâncias erradas para proibir. Escolheu as substâncias que promovem neurogênios e sinaptogênios. Se comparar com álcool, tabaco e antidepressivos, é claro que proibiram a substância errada.
Fonte: Valor Econômico