Por Lucianne Carneiro, Valor — Rio de Janeiro
04/01/2024 05h14 · Atualizado há 5 horas
O terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não demonstrou a vibração e a inspiração do primeiro mandato nem conseguiu oferecer um ambiente de enfrentamento da pobreza e favorável ao investimento, embora a situação no país esteja melhor do que há alguns anos.
A avaliação é de Daron Acemoglu, professor do Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). O economista de 56 anos, que circulou na lista de possíveis vencedores do Prêmio Nobel de Economia em 2023, é co-autor dos livros “Por que as nações fracassam” — que estuda as razões que separam países prósperos dos pobres — e “Corredor estreito” — que trata dos diferenciais dos países que conquistam liberdade e democracia (os livros foram lançados no Brasil pela Intrínseca).
Ele responde com um “mais ou menos” ao ser perguntado sobre o primeiro ano do governo Lula, embora diga que o presidente foi “a pessoa certa no momento certo” para enfrentar o ex-presidente Jair Bolsonaro, classificado como uma “ameaça real” para a democracia brasileira.
Lula vive hoje “um tempo desafiador”, em que precisa retomar crescimento maior da economia brasileira, após dez anos de estagnação, na visão do economista. Neste contexto, faz referência ao novo livro dele, “Power and Progress”, na versão em inglês, escrito em coautoria com Simon Johnson.
A obra será lançada no Brasil no primeiro semestre de 2024 pela editora Objetiva e trata de como os avanços da tecnologia digital podem beneficiar apenas uma parte da população ou trazer prosperidade de forma mais ampla. O texto é construído a partir de uma ampla pesquisa histórica.
“Para países como o Brasil, com um problema real de pobreza, é importante que o crescimento econômico eleve os salários. E a melhor maneira de fazer isso é, simultaneamente, investir em um ambiente para os negócios e para os trabalhadores, em termos de educação e treinamento”, afirma.
O economista defende diferentes iniciativas para garantir que os avanços trazidos pela tecnologia — como a inteligência artificial — tragam ganhos de produtividade de forma ampla para a sociedade e isso passa, no momento, segundo ele, pela regulação da questão da propriedade dos dados, entre outros pontos: “A gente não dá dinheiro de graça para as companhias, por que daria dados?”, questiona. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: No livro, o senhor e Simon Johnson argumentam que a automação não leva necessariamente a mais prosperidade e produtividade. Por que isso ocorre?
Daron Acemoglu: Há uma crença geral de que inovações são quase automaticamente boas para a sociedade. Isso significaria, em termos práticos, que melhora as condições de vida da maioria da população, com aumento de eficiência e de salários. Algumas fazem isso diretamente, como no caso de antibióticos ou, indiretamente, com mais eficiência, que levaria a salários maiores. Mas discordamos disso: claro que os antibióticos são maravilhosos, mas a tecnologia científica também serve para produzir armas nucleares ou biológicas. Mais que isso, no processo de produção, não há efeito automático em salários: podem só aumentar o lucro ou o poder dos empresários. Então o tipo certo de tecnologia e de acerto institucional é a chave [para a prosperidade mais ampla].
Valor: Mesmo com os desafios, parece ainda haver esperança desse avanço de prosperidade…
Acemoglu: Sim, há esperança. Não sou um tecno-otimista, não acho que as mudanças tecnológicas vão automaticamente levar a benefícios e estou preocupado com a direção atual dessas mudanças. Por outro lado, reconheço muito claramente que há algumas mudanças tecnológicas impressionantes. Se usarmos na direção correta, podem ser benéficas para a democracia e para os trabalhadores. A questão é como transformar essa esperança em realidade e se está tarde demais. Definitivamente está muito tarde para intervir na escolha da direção da tecnologia e colocá-la sob controle democrático, mas não acho que é tarde demais. Inteligência artificial generativa, por exemplo, ainda é uma tecnologia muito nova e flexível: podemos usar mais para automação, para manipulação ou para coisas melhores.
Valor: E como garantir isso?
Acemoglu: No livro, sugerimos que historicamente esse tipo de redirecionamento [da tecnologia] é baseado em três pilares. O primeiro deles é mudar a narrativa, começar reconhecendo que podemos ter uma inteligência artificial pró-humana, pró-trabalhador, socialmente desejável e tecnicamente viável. Não devemos ouvir cada palavra que Elon Musk ou Sam Altman dizem e acreditar em cada palavra. É uma narrativa diferente sobre o que queremos dessas tecnologias e como podemos chegar lá. Outro ponto é que temos que construir as instituições que atuem como poder compensatório [que possa coibir o abuso de outro poder]. Parte do problema é que a indústria de tecnologia é tão poderosa que ninguém se levantou contra ela. Em algum momento, foi bom para os Estados Unidos, é um setor dinâmico da economia mesmo que tenha alimentado a desigualdade. E ainda assim não significa que não deva haver algum poder compensatório ou regulação ou voz dos trabalhadores nem supervisão da sociedade civil. E o terceiro aspecto é que precisamos construir políticas específicas para as mudanças tecnológicas, com subsídios para garantir a direção correta das tecnologias, pró-trabalhador, a criação de melhores mercados de dados de maneira que empresas de inteligência artificial não possam expropriar dados criativos de outras pessoas.
Valor: Como a tecnologia está minando a democracia?
Acemoglu: Antes de tudo, é inegável que, quando se trata de Instagram, TikTok ou Facebook, todos os sites de mídias sociais são baseados em um modelo que dá às pessoas um material carregado de emoção para que o usem cada vez mais e as empresas possam monetizar isso com anúncios digitais. Vimos o uso do Facebook e do Twitter nas eleições americanas e brasileiras. E estamos vendo o TikTok agora como uma grande influência na polarização observada no Oriente Médio. Nós sugerimos vários meios de mudar isso. Um deles é taxar os anúncios digitais. Uma outra maneira mais ampla é pensar sobre a propriedade dos dados e como eles devem ser usados e transacionados.
Valor: O que defende?
Acemoglu: O padrão hoje é não existir propriedade dos dados, a não ser que uma grande empresa tenha o direito autoral. As companhias tecnológicas podem expropriar, seja uma peça de arte ou um artigo de jornal. Isso gera muitas distorções na indústria de tecnologia, e é parte da razão pela qual as empresas podem monetizar a plataforma ao coletar grandes quantidades de dados e encontrar usos manipulativos de anúncios digitais. É também a razão pela qual conseguem crescer tão rapidamente ao alimentar grandes quantidades de dados em modelos de linguagem. Precisamos dar um passo para trás e pensar sobre quem tem a propriedade dos dados e quais são os parâmetros para que eles sejam usados, já que são um insumo importante para a tecnologia agora e por muitas décadas. É estranho que a gente dê esses dados de graça. A gente não dá dinheiro de graça para as companhias, por que daria dados? As pessoas criativas deveriam ter o direito de ter a propriedade sobre eles, o que ajudaria também em questões de privacidade. Isso passa por legislação. Idealmente deveria ser uma legislação internacional, mas o passo mais importante tem que vir dos Estados Unidos, que ainda estão atrás da União Europeia nesse aspecto.
Valor: O G-20 acaba de ser ampliado para incluir a China. Qual o risco?
Acemoglu: Pela minha lógica, é importante um mundo multipolar, não só para a questão da tecnologia como de maneira mais ampla, para o futuro da globalização. Precisamos de vozes que sejam diferentes de Estados Unidos e China, de vozes de países emergentes. Vimos, no contexto da pandemia, como a rivalidade China versus Estados Unidos não foi produtiva. A expansão do G-20 infelizmente dá mais voz à China, essencialmente tira poder de outros países, como Índia e Brasil, e os torna subservientes à China, o que não contribui para um mundo multipolar. Sou muito crítico das decisões que os Estados Unidos estão tomando, mas as da China são ainda piores.
Valor: Após quatro anos de Bolsonaro, como vê a democracia no Brasil hoje?
Acemoglu: A democracia no Brasil está numa posição muito melhor agora que há três ou quatro anos, no governo Bolsonaro. Eu estava mais otimista e esperançoso que o Brasil ia sobreviver, todas as vezes que visitei o Brasil senti uma real energia democrática no país, muito mais que em outros emergentes. Mas Bolsonaro foi uma ameaça real. Demonstrou desrespeito pelas instituições democráticas e uma retórica violenta. Lula não é um personagem perfeito, mas foi a pessoa certa no momento certo para enfrentar Bolsonaro. Só que o Brasil precisa de uma economia melhor, vem com desempenho inferior desde Fernando Henrique Cardoso e o primeiro mandato de Lula. É um tempo desafiador.
Valor: Qual é sua avaliação do primeiro ano deste mandato de Lula?
Acemoglu: É mais ou menos. Certamente é muito melhor que Bolsonaro, mas não tem a mesma vibração do primeiro mandato, que foi mais inspirador tanto em termos de enfrentamento da pobreza quanto de bom ambiente para o investimento. É um equilíbrio difícil, mas não estamos vendo a mesma coisa hoje.
Valor: Até que ponto programas de transferência de renda funcionam sozinhos para enfrentar a pobreza?
Acemoglu: É uma grande questão. Acho que o Bolsa Família é um programa muito bom, merecidamente bem celebrado. Esses programas são muito úteis principalmente quando alternativas não são tão eficientes. Mas não acho que seja o único instrumento a ser usado regularmente nem o único para redistribuição de recursos, especialmente em um país que requer um maior crescimento econômico. A educação brasileira melhorou, mas tem muito a avançar ainda em qualidade e quantidade. Novamente aqui vem a questão dos trabalhadores. Trabalhadores precisam de educação e treinamento.
Valor: E a economia brasileira tem condições de crescer mais?
Acemoglu: Antes da crise financeira, o Brasil era um dos países que mais cresciam na América Latina. E agora o crescimento está estagnado por dez anos. Sim, isso se deve em parte a condições macroeconômicas, mas parte disso é criar um melhor ambiente para os negócios, que gere investimento tanto em maquinário quanto nos trabalhadores. É preciso ter investimento nos trabalhadores, criar um ambiente pró-trabalhador, mas também um ambiente em que as companhias investem e são capazes de usar tecnologias da maneira correta. O estilo de Bolsonaro, que criou incentivos para algumas companhias, não foi muito bom para trabalhadores. Para países como o Brasil, com um problema real de pobreza, é importante que o crescimento econômico eleve os salários. E a melhor maneira de fazer isso é, simultaneamente, investir em um ambiente para os negócios e para os trabalhadores, em termos de educação e treinamento.
Valor: Ao falar de Bolsonaro, o senhor citou o risco para democracia brasileira. Ele ainda existe?
Acemoglu: Em uma democracia, as pessoas sempre devem estar vigilantes. Não há democracia em que as pessoas podem ir dormir e esperar que a democracia vá funcionar para sempre. É o mesmo nos Estados Unidos, no Reino Unido, na França ou no Brasil. Estaria muito mais preocupado com a Argentina.
Valor: Como vê Javier Milei?
Acemoglu: Esses são tempos confusos. Milei tem ideias loucas, é um autoritário, suas ideias econômicas são completamente confusas, e não está claro o que vai fazer. É um voto de protesto. Estou realmente preocupado. Um cenário bom seria aquele em que ele aponte conselheiros com iniciativas para reduzir desigualdades ou pelo menos mudanças de pequena escala, como as feitas no governo [Mauricio] Macri. O governo anterior foi um fracasso, mas não um desastre. Com Milei, um fracasso mas não um desastre seria até um bom resultado porque ele é perigoso.
Valor: A eleição de Milei pode influenciar outros países da região?
Acemoglu: Não acredito nisso. Há uma certa inclinação para o autoritarismo na América Latina. O pior caso é o México, onde [Andrés Manuel López Obrador] chegou ao poder como aliado dos menos privilegiados, mas virou autoritário. Mas o México era talvez uma das democracias mais fracas na América Latina, então não vejo essa influência. E espero que Brasil, Chile, Uruguai e Colômbia continuem a ser democracias. A democracia é realmente importante para o futuro da América Latina.
Fonte: Valor Econômico

