Por Alex Ribeiro — De São Paulo
17/01/2023 05h00 Atualizado há 7 horas
O economista José Roberto Mendonça de Barros afirma que o pacote fiscal anunciado pela equipe econômica é “positivo, bem-vindo e saudável”. Mas representa o primeiro passo. Será preciso avançar no corte de gastos, e não apenas no aumento de receitas. Também é necessário apresentar uma regra que sirva como a nova âncora fiscal do país, além de encaminhar a proposta de reforma tributária.
“Os ministros da Fazenda [Fernando Haddad] e do Planejamento [Simone Tebet] assumiram explicitamente a ideia, que é muito bem-vinda, de que vão tentar manter o déficit [primário] entre 0,5% e 1% do PIB”, afirma Mendonça de Barros, sócio da consultoria MB Associados e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo FHC. “Se tivesse saído, na partida, sem a PEC da Transição com aquela ambição, não teria tido esse estresse todo.”
Ele diz, em entrevista ao Valor, que o governo Lula começa com uma verdadeira “herança maldita”: uma inflação maior que 9% no bolso de grande parte da população, bem acima do índice oficial, de 5,8% de 2022. O índice cheio ficou menor devido aos cortes de impostos, que, no entanto, não beneficiam quem não anda de carro e paga a tarifa social de energia elétrica.
“Essa herança é complicada”, sustenta, e “aumenta o risco de uma dificuldade entre a área da Fazenda e o Banco Central”. Segundo ele, cria dificuldades para tomar medidas de equacionamento fiscal, como o fim da isenção de impostos federais sobre a gasolina. De outro lado, deixa o Banco Central sob pressão.
Para Mendonça de Barros, o governo Lula deverá enfrentar um cenário econômico muito complicado no curto prazo, com a desaceleração da economia mundial e uma provável queda dos preços de commodities. Mas ele vê oportunidades, graças a duas grandes tendências. Uma delas é a realocação de fábricas da China para outras partes do mundo, um reflexo das tensões geopolíticas com os Estados Unidos. A outra é a descarbonização da economia mundial.
“Não vai ser fácil”, afirma. “Se começar a querer trazer cadáveres da política industrial, do tipo construir refinaria, programa naval, fábrica de chips, aí eu acho que fica realmente complicado.”
Mendonça de Barros conversou com o Valor duas vezes, uma antes e outra depois do anúncio do pacote fiscal do governo. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Valor: Qual é a sua avaliação dos primeiros dias do governo Lula?
Jose Roberto Mendonça de Barros: O governo Lula enfrenta um desafio enorme, pela situação econômica internacional e pela herança recebida do governo anterior. Eu trabalhei no governo Fernando Henrique Cardoso, que deixou uma herança bendita, que foi taxada injustamente de maldita. Não era, foi uma herança bendita, inclusive pela civilidade da transição. Acredito que, agora, o governo deve estar vendo o que é uma herança, de verdade, complicada.
Valor: Como o sr. está vendo o ambiente internacional?
Mendonça de Barros: É o cenário mais complicado das últimas décadas. Temos uma desaceleração forte do crescimento global. É uma rara combinação de choques não econômicos com choques econômicos, igualmente significativos. Cronologicamente, começou com a covid, um choque de oferta enorme no auge da globalização. Foi uma pressão inflacionária sancionada no mundo ocidental, inclusive no Brasil, com uma expansão fiscal e creditícia sem precedentes. Essa resposta ocorreu por razões compreensíveis, mas produziu um choque de demanda. Veio a inflação, não tem como escapar.
Valor: Isso ainda reverbera em 2023?
Mendonça de Barros: Sim, reverbera. Os bancos centrais demoraram a responder. O Brasil foi primeiro, mas depois de ficar muito tempo atrás da curva. O banco central americano ficou um ano atrás da curva. Só agora, nos últimos seis ou oito meses, é que a taxa de juros começou a ser alta o suficiente para derrubar a demanda e para trazer a inflação para baixo. Não acabou isso. A discussão de conjuntura é sobre até onde vai o Fed, se na reunião de fevereiro sobe 0,25 ponto percentual ou 0,5 ponto. Nós, na MB Associados, achamos que vai a 5% ou 5,25% ao ano, pelo menos. Tem chão para andar.
Valor: No passado, os ciclos de aperto monetário nos pegavam na taxa de câmbio. Qual vai ser o canal que vai nos atingir?
Mendonça de Barros: Foi num momento diferente para nós. É sempre interessante comparar com a Argentina. Há dez anos, nos descolamos da Argentina porque temos reservas internacionais muito grandes. Na Argentina, até hoje, o dólar é da mão para a boca. Dá um choque no exterior, a inflação explode. Aqui no Brasil, não mais. O aumento de preços de commodities pegou o Brasil numa situação muito positiva para aumentar exportações. Isso foi percebido de forma muito forte no ano passado, na medida em que o PIB foi sistematicamente maior do que se projetava inicialmente.
Valor: Essa tendência se mantém neste ano que está começando?
Mendonça de Barros: Nosso cenário é que, depois que passar março, o fim do inverno no hemisfério Norte, os preços de commodities vão cair. A demanda finalmente começa a cair no mundo inteiro, com o efeito da taxa de juros nos Estados Unidos e na Europa. A China não têm inflação como problema, mas tem o desastre da covid. Tem projeções de PIB global menores de 3%, o que é muito baixo. A absorção vai ser menor, e os preços de commodities tendem a cair. Será a partir de março, primeiro, pela [redução da] demanda sazonal de petróleo, embora a temperatura esteja mais alta do que o usual. Nos alimentos, o equilíbrio entre oferta e demanda depende da safra da América Latina.
Valor: Por que essa dependência?
Mendonça de Barros: Temos o segundo choque não econômico em 2022: o mundo viveu o ano mais quente da história. O calor foi tão grande que quebrou um pouco da safra no hemisfério Norte. E, na Ucrânia, tem a guerra, que é o terceiro choque não econômico. Não foi ruim a safra, mas faz com que o estoque na virada do ano passado para este ano seja relativamente baixo. Do que depende do plantio no Brasil, não vai ter problema, porque plantou-se para colher uma safra recorde. Entretanto, é mais um ano de La Niña, que provoca uma primavera chuvosa. Chove bem no Norte e Nordeste, mas falta chuva no Rio Grande do Sul. Na Argentina, o clima está um desastre, já perderam um pedaço da safra, especialmente trigo. A safra do Brasil vai ser muito boa, mas pode ter um pouco de quebra, como teve ano passado. Então, neste ano vamos deixar de ter esse grande empuxo de renda. Nos dois últimos anos, se recolheu muito imposto por causa das commodities mais caras.
Valor: Como as coisas evoluem no médio e longo prazos?
Mendonça de Barros: Há uma disputa geopolítica entre China e Estados Unidos, com muitas consequências, e uma delas é o uso da política comercial como arma. Estou falando de chips, da proibição de exportações diretas e indiretas de empresas americanas. Temos a covid na China. Está levando empresas que não dependem do mercado chinês ao chamado reshoring. Uma parte da produção vai para o sul da Ásia, uma parte para o México, para a própria Europa Oriental. Temos que ficar de olho, especialmente a indústria brasileira. E a outra coisa é a transição energética, que corre em paralelo. A transição energética vive um momento paradoxal. A Europa e boa parte dos países do mundo voltaram para trás na energia, porque estão usando o carvão, estão usando o que têm na mão. Mas está levando a ter mais certeza ainda de que tem que avançar na transição energética. Isso nos coloca numa boa posição, se soubermos aproveitar.
Valor: E como fica a economia doméstica?
Mendonça de Barros: A atividade está diminuindo, no último trimestre do ano passado vai ter uma atividade muito mais fraca do que os trimestres anteriores. O PIB de 2022 vai ser de 3%. Mas, se você olha para este ano, todo mundo trabalha com algo entre 0,5% e 1%. Nós temos 0,8%. Essas fontes de crescimento do passado estarão enfraquecidas, ou com um sinal ao contrário. O juro está muito alto, em 13,75%, e a injeção de renda vinda do exterior vai ser mais baixa. A demanda está começando a cair, a inadimplência está subindo. O setor de serviços, que foi o puxador da atividade, está começando a derrapar. A gente entra neste ano com o PIB em desaceleração, mas com a inflação preocupante.
Valor: A inflação pode complicar a vida do novo governo?
Mendonça de Barros: Essa é uma herança verdadeiramente maldita. Quando você olha a inflação cheia, ficou em 5,8% em 2022, mas a média dos núcleos de inflação está acima de 9%. Há dois grandes grupos de preços. Tem aqueles que receberam reduções de impostos. Para quem não teve incentivo tributário, a alta [de preços] é muito maior. A inflação de verdade, para quem não tem carro e paga a tarifa social de energia, está em 9%. É por isso, também, que a miséria aumenta. Essa herança é complicada. O ministro da Fazenda queria não renovar a isenções sobre combustíveis [a partir de 1º de janeiro], e a área política queria renovar, para evitar um choque de preço logo na chegada. A isenção tributária custa R$ 50 bilhões por ano. Correto estava o Ministério da Fazenda, que queria que voltasse logo a tributação.
Valor: Essa solução, tecnicamente correta, seria politicamente possível, com grupos radicais mobilizados nas ruas?
Mendonça de Barros: Reconheço que aumentar o preço do diesel na partida seria complicado, mas não da gasolina. A isenção à gasolina é um subsídio à classe média, prejudica o etanol, é anti-ambiental, além de responder por grande parte da arrecadação perdida. Dá para entender qual é a demanda do ponto de vista político, mas foi um erro. Daqui dois meses, quando for mexer com a tributação da gasolina, não sei se terá o mesmo problema ou não. Aqui, a inflação complica as coisas. A pior coisa dessa herança, na inflação, é essa assimetria que foi construída de forma totalmente artificial e populista. Isso aumenta o risco de uma dificuldade entre a área a da Fazenda e o Banco Central.
Valor: O que o sr. achou das medidas fiscais anunciadas pela equipe econômica?
Mendonça de Barros: A PEC de Transição, que leva a um déficit primário superior a 2% do PIB e forte crescimento da relação dívida/PIB, seria desestabilizadora. Os ministros da Fazenda e do Planejamento assumiram explicitamente a ideia, que é muito bem-vinda, de que vão tentar manter o déficit [primário] entre 0,5% e 1% do PIB. Por que isso é razoável? Todos os analistas, desde o ano passado, já achavam razoável um número entre R$ 80 bilhões e R$ 100 bilhões. Esse era o waiver, a licença para gastar, que daria alguma coisa entre 0,7% e 1% do PIB. Se tivesse saído, na partida, sem a PEC da Transição com aquela ambição, não teria tido esse estresse todo. Mas, então, é positivo, bem-vindo, saudável, mas é parcial.
Valor: Por quê?
Mendonça de Barros: Porque o que dá para botar alguma segurança são quatro itens ligados à arrecadação. O primeiro, o PIS Pasep, que tem autorização legal para legitimamente creditar como receita do governo. Isso dá uns R$ 23 bilhões. E depois, a expectativa de voltar o tributo da gasolina, que na estimativa colocada dá perto de R$ 29 bilhões. Isso já devia estar lá, mas foi postergado, por razões políticas. Se vier a partir de março, antes tarde do que nunca. Também é dinheiro mesmo a proposta relacionada à decisão do Supremo de não poder utilizar os créditos de ICMS na compra de insumos que é dinheiro mesmo. A estimativa é de R$ 30 bilhões, vamos admitir que está correto, os cálculos foram feitos pela Receita Federal Tem uma reestimativa de receita no Orçamento, que todo mundo imaginava que poderia ocorrer, porque a inflação será um pouco maior do que se imaginava inicialmente. Isso dá alguma coisa perto de R$ 20 bilhões, R$ 30 bilhões. Somando tudo, essa parte traz mesmo algo pelo menos como R$ 80 bilhões, R$ 90 bilhões, de arrecadação. É suficiente para trazer o déficit para baixo. Talvez seja um pouco maior do que 1% do PIB, mas já é um bom começo.
Valor: O que mais falta fazer?
Mendonça de Barros: Três coisas, que também estão explícitas nas falas dos ministros. Primeiro, revisão de despesas. A gente tem uma tradição de ser um pouco desconfiado de revisões de despesas porque, no passado, muitas vezes se prometeu e não aconteceu nada. Mas tudo indica que podem sair coisas, como a revisão do Cadastro Único. Houve tantas facilidades nesse período recente que tem mesmo como entregar alguma coisa de despesa. O segundo ponto complementar, até as pedras sabem, é a nova regra fiscal. Digamos, até abril tem que ter uma discussão, tem que mostrar qual é essa regra fiscal, que seja tecnicamente bem arrumada e crível. O terceiro ponto é a reforma tributária, do IVA especialmente. Isso sim, se isso fosse adiante, esse é um passo significativo na direção correta.
Valor: O ministro Haddad disse que o plano fiscal dele é uma carta para o BC. Já teria começado a tensão entre o BC e a Fazenda?
Mendonça de Barros: Está presente. As duas entidades têm o mesmo objetivo, mas vão ter que desenvolver uma forma de trabalhar de forma complementar. É a primeira vez que um novo governo eleito é instalado com o Banco Central independente por lei. Daí essa imagem das cartas, de um lado e do outro. Entendo isso como um aprendizado de convivência, numa situação institucional diferente, com uma situação da inflação complexa. Por isso que os mercados entenderam, ninguém ficou nervoso.
Valor: A reforma tributária seria uma forma de ajudar a reequilibrar as contas públicas?
Mendonça de Barros: Acho que [é importante] não tanto pelo impacto na arrecadação de curto prazo, mas sim na expectativa e na mensagem de médio prazo para a atração de investimentos. Este governo poderá ter uma combinação de duas coisas muito poderosas. Uma é a nova postura perante meio ambiente no Itamaraty. Se combinar isso com uma mensagem de avanço na reforma tributária, aí sim dá para dizer que a gente pode ter um aumento significativo dos investimentos. Mas aí tem que somar uma outra coisa que preocupa, além da parte fiscal, pela experiência do passado, que é que é a tal da política industrial. Se começar nesse momento, simultaneamente, querer trazer cadáveres da política industrial, do tipo construir refinaria, programa naval, fábrica de chips, aí eu acho que fica realmente complicado. Rever o marco do saneamento, rever coisas que nós avançamos.
Valor: Na primeira semana de governo, teve muita dúvida sobre qual vai ser a direção do governo Lula, com declarações conflitantes. Depois, houve uma tentativa de unificar a mensagem. Será um governo com uma linha unificada?
Mendonça de Barros: Não vai ter linha unificada. A própria montagem da equipe de governo não vai nessa direção. Você tem muitas pessoas de orientações diferentes. Pior ainda se a tendência de hegemonismo do PT se manifestar. Tem uma oportunidade enorme. Você veja que foi tão ruim o desempenho do governo anterior, em saúde, educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, relações exteriores, que isto é uma oportunidade extraordinária. Como me disse um grande operador do mercado financeiro, o mundo está doido para comprar o Brasil. Eles querem comprar o Brasil porque o mundo emergente está todo atrapalhado. Mas, pelo amor de Deus, precisa dar razão para que eles comprem mesmo.
Fonte: Valor Econômico

