Virologista Maurício Lacerda Nogueira diz que atual epidemia ainda deve piorar nos próximos dois meses, mas que novas tecnologias prometem uma nova abordagem dentro de poucos anos
Por Marcos de Moura e Souza — De São Paulo
08/02/2024 05h00 Atualizado há 5 horasPresentear matéria
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O médico virologista Maurício Lacerda Nogueira estuda dengue há quase duas décadas e diz que a epidemia pela qual o Brasil passa atualmente deve piorar ainda mais nos próximos meses. Nas primeiras semanas deste ano, o país viu uma explosão de casos.
Os números impressionam. Em 2023, foram registrados 20.614 casos da doença durante a última semana de janeiro. Neste ano, no mesmo período, 114.636.
Nogueira é professor do Departamento de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e professor adjunto da Universidade do Texas, em Galveston. E também preside o Comitê Americano de Arboviroses da Sociedade Americana de Medicina Tropical.
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Apesar do momento atual preocupante, Nogueira diz que o cenário para a dengue no Brasil e no mundo está perto de entrar numa nova fase. O motivo é a chegada de vacinas e de pesquisas sobre medicamentos e de tecnologias reduzir a capacidade do mosquito transmitir o vírus. Dentro de cinco anos, a expectativa, diz ele, é que não haja mais epidemias de dengue como as que ocorrem de tempos em vários países desde que a doença ressurgiu nos anos 70 e 80. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Até quando vai essa fase de aumento de casos de dengue?
Maurício Lacerda Nogueira: Historicamente vai até meados de abril, quando começam as frentes frias. É isso o que a gente espera ver neste ano também.
Valor: Nesta temporada, a alta no número de casos de dengue tem chamado atenção não apenas no Brasil, mas em diversos países pelo mundo, em especial nas Américas. Por que neste ano o número de casos tem sido tão alto?
Nogueira: Temos uma dispersão pelo mundo cada vez maior do mosquito. Os dois mosquitos, o Aedes aegypti e o Aedes albopictus – ambos transmitem dengue, zica e chikungunya – são de clima tropical, sendo que o segundo ainda consegue viver no clima mais temperado. O fato é que esses mosquitos estão ampliando o seu espaço e o que estamos vendo é a transmissão de dengue em lugares onde não havia transmissão tinha muito tempo. Por exemplo, casos na França.
Valor: Nas Américas, em especial, o mosquito já estava presente. O que mudou então?
Nogueira: Temos este ano o fenômeno El Niño, a temperatura está mais alta do que a média e quanto mais quente mais rápido mosquito se reproduz. Além disso, nessa época chove muito. E água é onde o mosquito se reproduz. E isso é só uma peça da equação. Existe uma outra peça da equação que é o vírus. A cada quatro ou cinco anos aproximadamente há uma epidemia de dengue nos lugares do mundo onde dengue circula e quando muda o sorotipo – ou quando muda a variante – também costuma surgir uma epidemia. Portanto, o que está acontecendo no Brasil este ano é uma soma de várias situações.
Temos uma variante do dengue 2 chamada de cosmopolita, que não existia nas Américas e que veio da Ásia. E mesmo na variante de dengue 2 que já circulava houve uma mudança de linhagem, ou seja, tem um vírus um pouco diferente que aquele que se via três ou quatro anos atrás. Houve também a introdução de dengue 3. E tem ainda a dengue 4. Então existem vários vírus novos num ambiente onde há mosquito disponível e uma população suscetível porque já faz quatro ou cinco anos que não existe o número de casos como agora. Normalmente, quem pega dengue fica protegido de outras dengues por mais ou menos um ano. Mas quatro a cinco anos é o intervalo entre epidemias – como a estamos vivendo agora.
Valor: Além da dengue, casos de chikungunya também chamam atenção?
Nogueira: Em alguns lugares do interior de São Paulo, por exemplo, há também epidemia de chikungunya, que, clinicamente, se parece com dengue. Isso significa que pode ser que muitos dos casos que são relatados como dengue sejam, na verdade, chikungunya. As duas doenças são graves. As duas podem levar a óbito. Quando se trata rapidamente pacientes com dengue com reposição de fluidos bem no início da doença a mortalidade cai de forma bem significativa. A Organização Mundial da Saúde recomenda que todo paciente com suspeita de ter dengue ou chikungunya – em lugares onde existem os dois vírus – que se trate como dengue. Só que isso pode levar com que se inflacione o número de casos de dengue e se subestime número de casos de chikungunya.
Dengue continuará existindo, mas não será tão frequente e terá menos casos graves”
— Maurício Nogueira
Valor: A disparada no número de casos de dengue vai causar um impacto no sistema de saúde?
Nogueira: Esse é um ponto que preocupa porque historicamente a cada epidemia que nós temos o número de casos graves aumenta. E aumento de casos graves significa aumento de internações, aumento da ocupação de leitos hospitalares e aumento da pressão nas redes hospitalares, que sempre estão sob pressão. Então, há necessidade de planejamento. A área de saúde tem de ser proativa e se preparar porque os próximos dois meses devem ser muito piores do que o que estamos vendo agora.
Valor: O senhor traça algum cenário sobre quantos novos casos serão registrados nos próximos dois meses?
Nogueira: Não acho que seja possível fazer a previsão até porque não podemos ver o Brasil um só. Eu estou aqui em São José do Rio Preto com uma epidemia de chikungunya e é completamente distinto do que está acontecendo no Rio de Janeiro, por exemplo, com a epidemia de dengue 2. São doenças transmitidas pelo mosquito, acontecem ao mesmo tempo e a gente tem a tendência de colocar como uma coisa só.
Valor: Além do impacto na rede de saúde, uma epidemia como essa pode provocar um impacto econômico?
Nogueira: Essa é outra questão que precisa ser olhada com muita atenção: qual é o impacto econômico e social de uma doença como essa, que possivelmente vai atingir milhões de pessoas? É uma doença que pressiona o sistema hospitalar, mas que também pressiona o sistema econômico em função dos quatro ou cinco dias que os trabalhadores precisam ficar afastados. Claro que comparado com o que a gente viveu na pandemia esse impacto é muito menor. De qualquer forma é preciso começar a mensurar esses impactos porque aí veremos que sairá muito mais barato investirmos em prevenção, em vacinas, em métodos diagnósticos precoces que diminuiriam o impacto provocado pela dengue.
Valor: Há quantos anos a dengue representa um desafio para autoridades de saúde?
Nogueira: A dengue foi reintroduzida no Brasil nos anos 80. Ela tinha sido de certa forma erradicada entre os anos 30, 40 e 50 durante a campanha de erradicação da febre amarela. A febre amarela urbana foi erradicada com a erradicação do Aedes aegypti. E com isso se errradicou a dengue também.
Valor: De que maneira foi feita essa erradicação naquela época?
Nogueira: Foi uma campanha de eliminação dos criadores em casa e de utilização de pesticidas altamente agressivos que hoje não seriam aceitos. O Aedes aegypti foi erradicado das Américas inteira com exceção da Venezuela e dos Estados Unidos. Isso se deu nos anos 50 e 60. Mas nos anos 70 já iniciou uma recolonização e a partir dos anos 80 tivemos reintroduções sucessivas de dengue. E hoje com o mundo globalizado, você sai de São Paulo e chega em Bancoc – só para citar uma cidade que também é endêmica para dengue – em 24 horas. Nós estamos recebendo vírus e mandando vírus para a Ásia o tempo inteiro.
Valor: De que forma?
Nogueira: Imagine uma pessoa que esteja em São Paulo e é picada em Guarulhos antes de embarcar. Quando chega a Bancoc começa a ter febre e lá é picada por mosquito que leva vírus levado por ela. E isso vice-versa. Lembrando que a dengue só é transmitida pelo mosquito e que o mosquito precisa picar uma pessoa e passar o vírus para outra. Não se trata de um processo mecânico. Ou seja, não é porque o mosquito encostou o bico de uma pessoa com vírus que ele transmitirá este vírus para outra pessoa. O vírus tem que se multiplicar no mosquito, o que demora uma semana ou dez dias.
Valor: Uma vez que o mundo passou a contar com uma vacina contra a dengue – por enquanto o Brasil tem disponível apenas uma, do laboratório Takeda – é possível imaginar que a doença esteja com os dias contados?
Nogueira: Não só vacina da Takeda, mas também a vacina do Butantan, vai causar o impacto significativo. No entanto precisamos também de outras ferramentas também. Diminuir a capacidade do mosquito transmitir a doença já existem abordagens para isso e termos medicamentos para tratarmos quem teve infecção apesar de tudo isso.
Valor: Por que apostar só em vacinas não é suficiente?
Nogueira: Porque nem todo mundo será vacinado e porque a eficácia da vacina não é 100% [para todas as variantes]. Então as vacinas vão diminuir o impacto de forma importante, mas não vão ser a solução, por si só, do problema. Nós vamos ter que trabalhar com outras ferramentas, como a diminuição da capacidade do vetor e para isso existe já os mosquitos infectados com uma bactéria chamada wolbachia que faz com que ele perca a capacidade de transmitir a dengue. É uma tecnologia nova que está em fase final de teste e que já tem mostrado resultados bastante promissores. E existem também remédios para dengue que estão em fase de desenvolvimento. Então quando se soma tudo, eu vejo um otimismo no futuro próximo na forma como a dengue será abordada.
Valor: O que deve mudar?
Nogueira: Eu imagino um futuro onde a dengue continuará existindo, mas que ela não será tão frequente e que o número de casos graves será menor e esses casos graves teremos condições de tratá-los porque teremos medicamentos que atualmente não existem.
Valor: Quando esse cenário da dengue deve se tornar realidade?
Nogueira: Eu acredito que por volta daqui a cinco anos a gente já tenha uma condição melhor.
Fonte: Valor Econômico