Desenvolvida internamente, plataforma Hstory reúne dados críticos do paciente e, em minutos, fornece relatório analítico ao médico
PorJoão Luiz Rosa , Valor — São Paulo
Dias atrás, um paciente do cirurgião Sidney Klajner ficou intrigado durante a consulta. Antes de falar qualquer coisa sobre seu histórico de saúde, o médico passou a descrever os problemas médicos pelos quais ele já passara, além de detalhes de diagnósticos e cirurgias. “Ele me perguntou como eu sabia tanto sem ter falado nada”, conta Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein e especialista em aparelho digestivo e coloproctologia. A resposta? Inteligência artificial generativa.
O uso da IA na saúde não é novidade, mas até agora se concentrou na área de gestão, com algoritmos usados para melhorar processos internos e tornar essas instituições mais eficientes. Agora, no entanto, a inteligência artificial começa a chegar ao consultório, com mudanças na dinâmica entre médico e paciente.
O Einstein está lançando uma plataforma de IA batizada de Hstory, concebida e desenvolvida internamente, que varre os prontuários médicos, extrai os dados mais relevantes e os apresenta, em minutos, na forma de um relatório analítico. A ordem pode ser cronológica, com dados de todos os eventos, independentemente da especialidade médica, ou por órgão do corpo humano.
Com o Hstory, o Einstein é o primeiro hospital do país a lançar uma plataforma que combina IA e Big Data no atendimento direto ao paciente, e um dos poucos no mundo até agora. A Escola de Medicina da Universidade Stanford, primeira instituição a lançar um sistema com essas características, o fez em janeiro.
“Faltava engajar o profissional de saúde, cuja formação geralmente é muito tradicional”, diz Klajner. Sob esse pano de fundo, muitos médicos acabam vendo a tecnologia com desconfiança. Ao mostrar que a IA pode proporcionar vantagens também no atendimento, a expectativa é vencer a resistência do profissional de saúde e sedimentar o caminho da inovação. “De adversário, o médico passa a ser um aliado”, afirma o presidente do Einstein.
Faltava engajar o profissional de saúde, cuja formação geralmente é muito tradicional
— Sidney Klajner
Economia de tempo é a principal vantagem do Hstory. Para traçar um diagnóstico confiável, o médico precisa fazer longas entrevistas com o paciente e consultar sistemas diferentes para obter resultados de exames e outros dados críticos. Ao automatizar esse trabalho, o médico pode reorientar o tempo disponível para outros aspectos durante a consulta. Klajner conta ter feito uma simulação com seu próprio prontuário médico. Com o Hstory, economizou 20 minutos.
A nova plataforma do Einstein é resultado de um plano de investimento de longo prazo. Os esforços tiveram início em 2016, quando diretores da instituição viajaram para os Estados Unidos com o objetivo de acompanhar as experiências de outros hospitais e conceber um projeto próprio. Se seguiu a criação de uma área de Big Data, que ganhou peso com o passar do tempo. De seis pessoas no início, a equipe cresceu para cerca de cem atualmente.
Fazer as perguntas certas é um passo importante para escolher o caminho a seguir, diz Klajner. Uma das perguntas que os médicos do Einstein se faziam é por que muitos pacientes voltavam a ser internados algum tempo depois de receber alta.
O hospital criou um algoritmo para identificar se o paciente seguia a dieta e tomava a medicação em casa, entre outras variáveis, o que ajudou a melhorar a identificar pontos frágeis e melhorar os procedimentos de alta, diz o neurorradiologista Edson Amaro Junior, responsável pela área de Big Data do Einstein.
O algoritmo aumentou em quatro vezes as chances de identificar pessoas com alto risco de readmissão no intervalo de 30 dias e levou ao reforço das ações preventivas entre esses pacientes. Também abriu espaço para mais 34 cirurgias mensais de curta duração ao racionalizar o uso de leitos e salas cirúrgicas. Outro efeito foi a redução de 20% do chamado “tempo de escritório” — gasto com medidas burocráticas — das equipes de enfermagem. Por mês, foram liberadas 83 horas de trabalho desses profissionais, segundo o hospital.
O Einstein já criou mais de cem algoritmos de Big Data, sendo 20 de predição. Atualmente, 49 sistemas usam inteligência artificial em 16 áreas da instituição. Desse total, 18 sistemas estão em uso e os demais em fase de teste.
O Hstory já está disponível a todos os médicos que têm acesso ao sistema de prontuário eletrônico do Einstein. São cerca de 3 mil profissionais, incluindo os que atendem no Hospital Municipal Vila Santa Catarina, que é público, com administração do Einstein em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS).
A despeito dos rápidos avanços da IA na medicina, a tecnologia não vai substituir o trabalho do médico em decisões vitais como escolha do tratamento, prescrição de medicamentos ou indicação de cirurgias, afirma Klajner. “Essa prática não será substituída. A inteligência artificial não fará nada disso.”
O futuro da IA na saúde reserva desafios estratégicos que empresas, governos e agências regulatórias terão de superar. É o caso da interoperabilidade dos sistemas digitais das instituições, o que permitiria criar o prontuário eletrônico único. Quando o paciente chegasse a um hospital, mesmo que pela primeira vez, o médico teria acesso integral a seu histórico, com dados de todos os hospitais e clínicas pelas quais ele já passou.
Chegar a esse patamar, no entanto, depende do investimento de hospitais públicos e privados em Big Data e segurança digital e de definições como a criação de padrões tecnológicos comuns. Outro ponto é quem financiaria a infraestrutura eventualmente necessária para estabelecer essa conexão. “Israel conta com o prontuário único há anos, mas tem 9,5 milhões de habitantes e não 200 milhões como o Brasil”, diz Klajner. “O futuro tem de ser almejado o tempo todo.”
Fonte: Valor Econômico