Por Lu Aiko Otta, Jéssica Sant’Ana e Guilherme Pimenta — De Brasília
02/10/2023 05h02 Atualizado há 5 horas
O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou em entrevista exclusiva ao Valor que é importante distinguir a meta do resultado primário efetivo que será observado em 2024. A meta é um objetivo arrojado a ser perseguido, disse. O resultado, se vier dentro da banda estabelecida no novo arcabouço fiscal ou, ao menos, melhor do que as expectativas de mercado, já será positivo para o processo de recuperação fiscal em curso.
“É um compromisso nosso de virar o barco o quanto antes. Por isso, essa discussão do zero, ela é simbólica para nós, porque nós queremos mirar e vamos continuar mirando. Mas não significa – muito longe disso – que não há um processo de recuperação fiscal em curso se não for exatamente esse valor”, disse. “É importante distinguir: uma coisa é o resultado efetivo, outra é a meta que você vai buscar”, completou.
Ele afirmou que é importante estabelecer metas altas. Caso contrário, elas se tornam um piso. Ceron avalia que o governo tem “condições factíveis” de entregar um resultado primário em 2024 “bem melhor” do que o que está na mediana de expectativas do mercado, que é de déficit de 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo o último Boletim Focus, do Banco Central.
Sobre alteração de meta, o secretário disse que não está em discussão, mas fez uma ressalva: na equipe econômica. “Nós vamos buscar, independente que qual seja a meta formal, buscar o resultado zero, o equilíbrio das contas.”
Devemos resolver neste ano. É o ano para arrumar a casa, senão a gente vai voltar a ter ‘esqueleto’”
A proposta apresentada na semana passada para “despedalar” os precatórios gerou polêmica entre especialistas e não é consenso nem mesmo dentro do Executivo (ver Planejamento vê precatório como despesa primária, mas fora do teto). Para Ceron, foi a oportunidade de “colocar o bode na sala” e provocar o debate sobre um problema grave. Ele considera que adiar pagamento de precatórios corresponde a um “empréstimo compulsório” ou uma “moratória parcial”.
No governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foram aprovadas duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que estabeleceram um limite para pagamentos de precatórios a cada ano. A quitação dos valores acima desse limite foi empurrada para 2027, criando uma “bola de neve” que pode alcançar até R$ 250 bilhões de impacto primário.
Na semana passada, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) propôs ao Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito de duas ações que discutem a constitucionalidade das PECs. A ideia da Fazenda é permitir que o Executivo quite o estoque já acumulado, que chega a R$ 95 bilhões, fora do limite de despesas, com a abertura de crédito extraordinário. Para o futuro, a proposta é pagar apenas o principal dos precatórios como despesa primária e o restante, como despesa financeira.
“O governo está se posicionando de forma muito forte no Judiciário contra esse assunto de não pagar obrigação em dia”, defendeu. “Se não colocarmos esse problema na luz do sol, quando chegarmos lá na frente será a nossa responsabilidade.”
Nos posicionamos ante o Judiciário e criamos uma saída que nos parece razoável. Ela é perfeita? Não”
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Na sua avaliação, por que o déficit zero é tão questionado pelo mercado e pelos especialistas? Por que não convence?
Rogério Ceron: Tem preocupações que são legítimas. Para atingir esses resultados, dependemos de medidas que estão em discussão no Congresso. Muitos analistas têm ceticismo sobre algumas. Isso é natural. A parte de transações, uma parte dos analistas acha que os julgamentos no Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais] não serão tantos, que a celeridade nos julgamentos não se transforma em receitas imediatamente. [O contribuinte] pode transacionar, vai parcelar em cinco, dez anos. Teria de ser um montante bem maior de julgamentos do Carf para dar esse impacto financeiro em 2024. São dúvidas legítimas. É natural fazer contas conservadoras.
Valor: E a meta de zerar o déficit em 2024 é ambiciosa.
Ceron: Nunca escondemos isso, que de fato são metas arrojadas. Estamos buscando uma aceleração no processo de ajuste fiscal porque isso é bom para o país. Quanto mais perto chegarmos desse objetivo, é melhor. Sabemos que o mercado está com projeção diferente. O que é uma janela de oportunidade: um desempenho melhor que esse será melhor do que a média das expectativas. Haverá impacto positivo se atingirmos resultados melhores do que os que estão na mediana das expectativas. É importante distinguir: uma coisa é o resultado efetivo, outra é a meta que você vai buscar. Algumas pessoas podem dizer: “Se o mercado está estimando 0,8%, 0,9% [de déficit em proporção do PIB], para que buscar um resultado mais arrojado?” Primeiro, porque, para o país, quanto antes a gente equilibrar as contas, melhor. Segundo, é que se você mirar no [déficit de] 0,8% do PIB, corre o risco de gerar [déficit de] 1,2% do PIB, na prática. Tem mais desafios no percurso de qualquer execução de uma meta. Surge um desastre aqui, acolá. É importante distinguir o que é meta do que é resultado. Não dá para comparar a expectativa do mercado com a meta que a gente vai perseguir.
Valor: Significa que, se o resultado ficar abaixo da meta, não é um problema?
Ceron: Essa resposta é sempre complexa. Se você ficar no limite da banda, está cumprindo a regra do jogo exatamente como ela está posta. Sucesso, está cumprindo.
Valor: Será um resultado melhor do que o esperado pelo mercado também…
Ceron: Melhor do que do mercado. Isso é importante levar em consideração, mas não se pode partir desse ponto. Porque, senão, acaba virando um piso. Precisa saber trabalhar um pouco o que é a meta e o que vai acontecer na prática. Por mais que tenha desafios, há condições factíveis de entregar um resultado bem melhor do que o que está na mediana de expectativas do mercado. Por outro lado, o mundo tem dado uma sacudida nesses últimos 10, 15 dias e ninguém sabe o que vem pela frente.
Valor: Melhor do que o esperado pelo mercado, e não necessariamente zero?
Ceron: Vamos buscar o zero. Temos de perseguir esse alvo. Ainda que depois aconteça alguma coisa, quanto mais estiver centrado nele, melhor. Isso vale para tudo, até para a vida pessoal: tem de mirar alto para chegar mais próximo. Se mirar mediano, se tiver sucesso, será mediano. Então tem de ir um pouco mais arrojado mesmo.
Valor: Mas a meta é um alvo que não necessariamente precisa ser atingido?
Ceron: A meta de primário não é meta de primário faz muito tempo. Meta que, de partida, já foi cumprida, não é meta. Ao longo do tempo, foram feitas opções. Estabeleceu-se uma tentativa de limite rígido para despesas e abandonou-se a preocupação com o primário. Estamos nesse processo de trazer importância para a meta de primário.
Valor: Essa discussão de alterar a meta para 2024 como está? Já é pacífico no governo que não se mexe na meta?
Ceron: Não há discussão, na equipe econômica, sobre alteração de meta. Nós vamos continuar perseguindo o zero o tempo todo. E nesse conceito: se [o Congresso] não aprovar [as medidas que pretendem elevar as receitas], se faltar alguma coisa, vamos trabalhar para buscar alternativas. Na prática, qualquer resultado que for acima do que o mercado está prevendo é bom, mas a gente tem que mirar para que seja muito melhor do que o mercado espera. A reação seria muito positiva, haveria mais ancoragem para o processo de estabilização monetária. Por isso, nós vamos buscar, independente que qual seja a meta formal, buscar o resultado zero. É um compromisso nosso de virar o barco o quanto antes. Por isso, essa discussão do zero ela é simbólica para nós, porque nós queremos mirar e vamos continuar mirando. Mas não significa – muito longe disso – que não há um processo de recuperação fiscal em curso se não for exatamente esse valor.
Valor: Como o senhor responde à avaliação de parte dos especialistas que a solução proposta pelo governo para o problema dos precatórios é uma ‘contabilidade criativa’?
Ceron: Esse debate era previsível. O que eu acho mais importante é que foi colocada luz num problema grave. Temos que parar de fingir que não existe. Não quero de jeito nenhum chegar lá na frente e entregar R$ 300 bilhões [em estoque de precatórios] para alguém pagar. É um empréstimo compulsório, não tem outro nome para isso. É uma moratória parcial de uma obrigação líquida e certa, não tem por que não pagar. E hoje tem um problema de estatística. A dívida bruta brasileira, ela não tem quase 1 ponto percentual do PIB [por não registrar os precatórios]. Há vários caminhos para resolver isso. Tem uma discussão que está em curso no Judiciário e obviamente tem um caminho via Legislativo. O que fizemos nesse primeiro momento foi colocar o bode na sala e lançar luz na discussão.
Valor: O senhor comentou que são vários caminhos. Por que escolheu separar o principal como despesa primária e os juros como despesa financeira?
Ceron: Eu não consigo pensar mais que quatro caminhos. O primeiro é não faz nada, e a conta fica para 2027. Não queremos fazer isso de jeito nenhum. A segunda opção: a LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] dá suporte para que obrigações de precatórios vencidas e não pagas sejam consolidadas na dívida e, a partir disso, são despesas financeiras. Essa solução gera precedentes ruins, porque, se a obrigação vencida vira dívida, daqui a pouco se faz isso com outras despesas, como restos a pagar. Vira um problema. A terceira é manter como estão os registros e excluir [os precatórios] dos limites de gastos e da regra de primário. Automaticamente, a discussão seria: “Vocês estão abrindo caminho para voltar excluir investimento das metas”. Também é ruim, não é esse o intuito.
Valor: O que mais?
Ceron: A quarta opção é: tem uma mistura de juros que só tem nessa despesa, não tem em outra. Até agora, ninguém trouxe um argumento forte para eles [principal e juros dos precatórios] estarem juntos. O argumento mais forte foi: “A gente sempre fez assim”. Se o encargo for pago como despesa financeira, em 2027 é o fluxo normal, serão pagos R$ 70 bilhões de precatório. No cenário atual pago R$ 180 bilhões, mas deixo R$ 300 bilhões [para quitar em 2027]. Nossa solução não tem nenhum tipo de artifício.
Valor: Por que tem sido tão atacada, então?
Ceron: Criticar é fácil, faz parte do jogo. Mas eu gosto de fazer o debate para fora: qual a melhor solução? Eu estou aberto à melhor solução. Fizemos um posicionamento no Judiciário, não sei se [o Supremo Tribunal Federal] vai acatar ou não. É uma discussão. Mas a melhor parte dessa discussão é: o bode está na sala, vamos discutir como resolve isso.
Valor: Mas por que não enfrentar só o problema do estoque como crédito extraordinário? Por que mudar a sistemática para o futuro?
Ceron: Aí o que eu faço em 2025? Eu já quero resolver tudo. Mas também pode ser uma opção: quita o estoque, o que está vencido, ficaria para fora [da meta] para ficar neutro para 2024, vamos esperar 2025 e ver o que tem de precatório. Também é uma opção, mas essa segregação [proposta pelo governo] permite dizer: o problema está resolvido, não voltamos a discutir precatório. E agora o debate está aí. Poder ter soluções via Congresso, que antecipem solução via Judiciário. Todas as soluções têm nuances que precisam ser ponderadas. Não é um debate simples, mas o que eu tenho falado é: “Não seja tão superficial a ponto de dizer que é contabilidade criativa e acabou”. Vamos discutir qual a solução. E eu acho que devemos resolver neste ano. Este é o ano para arrumar a casa, senão a gente vai voltar a ter “esqueleto” nas contas públicas, como nos anos 1990. E o ideal é este ano para não misturar com 2024.
Valor: E sobre as críticas de levar a solução para o Judiciário em vez do Congresso?
Ceron: Há quem fale que a opção do Judiciário é ruim. Mas o Judiciário está discutindo o assunto. Precisamos nos posicionar. Não falamos que não se vai tentar um diálogo com o Congresso. Apenas nos posicionamos no Judiciário. Se essa não é a melhor solução, qual a outra melhor solução? Mas não vamos tirar do foco que precisa resolver.
Valor: Então se vier uma solução via Congresso não é problema?
Ceron: Claro que não, seria ótimo. Pode ter iniciativas do Legislativo. Não sei se necessariamente precisamos de uma PEC. Estou falando em tese, talvez outro ato normativo autorize limpar o estoque. Também é possível, estamos avaliando as opções. O que fizemos no Judiciário foi colocar uma opção, porque também o Judiciário sistematicamente considera o parcelamento de precatórios moratória.
Valor: Então vocês estão seguros de que, em havendo o julgamento, será decidido pela inconstitucionalidade?
Ceron: Olhando o precedente das últimas décadas, é provável que julgue inconstitucional [o parcelamento de precatórios]. E aí, o que acontece? Cria-se o caos no outro dia, surgem os meteoros da vida. Então, hoje já tem um caminho [proposto pelo governo]. Precisa ser esse? Pode ser outro. O governo está se posicionando de forma muito forte no Judiciário contra esse assunto de não pagar obrigação em dia. Agora, como saímos disso de forma organizada? Tem outras medidas que podem ser diferentes para resolver o problema. Mas o debate tem que acontecer agora. Se não colocarmos esse problema na luz do sol, quando chegarmos lá na frente será a nossa responsabilidade, entregaremos R$ 300 bilhões [em precatórios não pagos] para a próxima gestão. Eu não acho isso legítimo.
Valor: Por isso vocês anteciparam o envio da solução? Porque se falava em resolver essa questão até 2025.
Ceron: Eu acho que tem que resolver isso logo. Melhor limpar isso aqui porque uma hora [o STF] vai julgar, e se julgar no meio de 2024, é pior. Claro, o Judiciário é livre e julga quando bem entender, mas resolver este ano essa questão vai ser muito saudável para o país. Nós nos posicionamos perante o Judiciário e criamos uma saída organizada que nos parece razoável. Ela é perfeita? Não. Afeta série histórica. Mas vamos ficar em moratória por isso? O debate está posto.
Valor: O governo vetou um dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias para viabilizar o encontro de contas e quitar parte dos precatórios. Mas agora a Advocacia-Geral da União pediu para o Supremo declarar o encontro de contas inconstitucional. O veto ainda é necessário?
Ceron: A gente resolvendo esse problema [dos precatórios], esse assunto não teria mais relevância.
Fonte: Valor Econômico

