14/10/2022 05h01 Atualizado há 4 horas
Bancos centrais em todos os cantos do globo, com raríssimas exceções, estão subindo os juros. Nosso BC, que começou a elevar os juros mais cedo, parece já ter encerrado, pelo menos por ora, o ciclo de aperto. A taxa Selic em 13,75% configura claramente instância restritiva de política monetária, o que ainda está por ocorrer em muitos países.
À medida que os juros sobem, são duas as principais consequências. A primeira é o desaquecimento das economias, o que é necessário para baixar a inflação, em alta também quase em toda parte. Baixar a inflação é o objetivo principal do aperto monetário global. Infelizmente, a alta dos juros pode ter uma segunda consequência: crises financeiras.
A prevalência de juros muito baixos (negativos, em muitos países), durante muitos anos, criou muitas fragilidades financeiras. Administradores de recursos, como fundos de investimento e fundos de pensão, passaram a procurar estratégias para rentabilizar seus investimentos acima das baixíssimas taxas de juros prevalentes desde a grande crise financeira internacional de 2008. Normalmente, tais estratégias envolvem alguma forma de alavancagem, ou seja, tomar dinheiro emprestado a juro baixo para aplicar a taxas mais elevadas.
Quanto maior a alavancagem, maior a rentabilidade. Se a estratégia der certo, claro. Quando dá errado, a grande alavancagem costuma pôr em risco as instituições que recorrem a tal estratégia. E, como o passivo de uma instituição financeira costuma ser o ativo de outra, a quebra de algumas delas pode deflagrar uma crise muito maior, envolvendo muitas instituições financeiras. É a temida crise sistêmica, como a que ocorreu em 2008. Atualmente, a maior parte das estratégias de investimento envolvendo alavancagem é feita via derivativos financeiros (futuros, forwards, opções etc).
Um exemplo do risco que corre o sistema financeiro internacional vem se materializando nas últimas semanas no Reino Unido, provocando a alta dos juros longos e a depreciação da libra esterlina. O início da crise ocorreu com a divulgação de um orçamento francamente deficitário por parte da nova primeira-ministra, Liz Truss, e seu ministro da economia (Chancellor of the Exchequer), Kwasi Kwarteng, no final de setembro, alegando que os gastos adicionais e os cortes de impostos ajudariam a reativar a economia.
Imediatamente, a libra esterlina depreciou e a estrutura a termo empinou, com o aumento dos juros longos (o que equivale à queda de preço dos títulos longos, as gilts). A crise no mercado das gilts piorou devido a uma fragilidade financeira, envolvendo os fundos de pensão de benefícios definidos.
Tais fundos têm como característica terem passivos longos previamente conhecidos, que são as aposentadorias a serem pagas no futuro. A avaliação da solvência desses fundos é feita via a apuração do valor presente dos seus passivos e ativos. Como os passivos são fixos, quando a taxa de juros longa sobe, o valor presente dos passivos cai, o que melhora a situação patrimonial de tais fundos. Assim, como podem ter tais fundos iniciado a crise atual?
A razão está na taxa de juros muito baixa desde a crise de 2008. Quando os juros caíam, o valor presente dos passivos longos subia, o que afetava negativamente o patrimônio atuarial dos fundos. Assim, para se protegerem de tais variações de juros, muitos fundos contrataram um seguro contra quedas dos juros. Tal estratégia de imunização do portfolio é conhecida como Liability-Driven Investment, ou LDI. Basicamente, tratava-se de usar contratos forward de juros para que o valor presente do patrimônio dos fundos de benefícios definidos não variasse com os juros. Quando os juros caíam, tais derivativos proviam ganhos aos fundos, imunizando o portfolio.
Mas, agora, quando os juros subiram muito rápido e fortemente na esteira da divulgação do orçamento deficitário da nova primeira-ministra, tais contratos de derivativos tornaram-se deficitários. Isso acarretou grandes chamadas de margem (uma precaução exigida pelas contrapartes para garantir o pagamento) que obrigaram os fundos a liquidarem seus ativos mais líquidos, majoritariamente títulos longos, o que agravou ainda mais a queda de preço desses papéis. O quadro piorou ainda mais devido a outras estratégias de alavancagem que visavam aumentar a rentabilidade dos fundos, não somente imunizá-los contra a variação dos juros.
Para debelar a crise, o Banco da Inglaterra viu-se obrigado a reverter temporariamente a recém-iniciada venda dos títulos longos (QT, quantitative tightening). O QT é parte da estratégia de contração monetária, ao lado do aumento dos juros, para o combate da inflação, ora já em dois dígitos. A situação está ainda indefinida. Ainda não está claro se a intervenção do Banco da Inglaterra conseguiu estabilizar o mercado.
O problema de fundo é macroeconômico. O orçamento deficitário, advindo em parte dos subsídios requeridos para a manutenção de um preço teto para a energia, requer aumento maior da dívida pública. Ao mesmo tempo, o Banco da Inglaterra havia anunciado que também venderia paulatinamente os títulos da dívida britânica que havia comprado anteriormente (o QT).
Essas duas pressões vendedoras fizeram com que o preço dos títulos caísse (ou que a taxa de juros subisse). Esta foi a origem do problema e ainda é a principal causa da crise atual no mercado de gilts. Como vimos, fragilidades financeiras potencializaram a crise, ao forçarem os fundos de pensão a vender rapidamente suas gilts para atender as chamadas de margens. É muito provável que ocorram situações semelhantes em outros países e mercados, à medida que o aperto monetário continue ao redor do globo.
Esta semana, foi concedido o Prêmio Nobel de Economia a três pesquisadores que trouxeram bancos para o centro dos modelos macroeconômicos, enfatizando a importância da higidez do sistema financeiro para a ausência de crises e para o crescimento econômico. No mundo de hoje, as fragilidades apontadas nos modelos desenvolvidos há quatro décadas pelos pesquisadores premiados migraram dos bancos para outras instituições financeiras, sobretudo os administradores de recursos de terceiros. Como nada é estanque no mundo das finanças, essas novas fragilidades representam grande ameaça à economia mundial. O Nobel não poderia ter sido mais oportuno
Fonte: Valor Econômico

