Por Larissa Garcia — De Brasília
06/06/2022 05h03 Atualizado há 4 horas
A pandemia de covid-19 alterou padrões econômicos e desenhou uma nova conjuntura global. A inflação, que tem se mostrado persistente, desafia os bancos centrais pelo mundo e tem gerado um debate sobre a eficácia dos instrumentos de política monetária mais utilizados.
Em meio a um ciclo agressivo de alta de juros, surgiram discussões entre economistas brasileiros sobre a efetividade do regime de metas para inflação no país – que, para alguns, é muito rígido e não funciona tão bem em ambiente de incerteza e volatilidade. A avaliação é que, pelas regras atuais, o Banco Central (BC) controla a inflação essencialmente por meio da demanda ao elevar a taxa básica de juros, a Selic. Quando o problema é de oferta, o sistema presume que a pressão é temporária e apenas os chamados efeitos secundários são combatidos com aperto monetário.
Parte dos analistas, contudo, não vê espaço para mudanças que não sejam pontuais, especialmente em cenário extremo. Para esses economistas, não há razão para alterar um sistema que foi bem-sucedido desde a sua implementação em virtude de um período de choques incomuns.
O tema está também na pauta de pesquisas do BC até 2024. O documento, publicado em janeiro, inclui potenciais aprimoramentos para o regime de metas de inflação e para seus modelos de projeção. “A agenda do BC tem uma linha completa e abrangente. Existem questões relevantes, como a potência da política monetária, a interação com a política fiscal, possível aumento de coeficientes, entre outros temas”, diz Marcelo Kfoury, professor de economia da FGV.
Nos últimos dois anos, além dos estímulos fiscais e monetários promovidos pelo governo para combater a crise sanitária, o país passou por diversos choques de custos, como a crise hídrica e, recentemente, a guerra entre Rússia e Ucrânia. Esses eventos levaram a uma alta generalizada de preços, com avanço de 10,06% no IPCA no ano passado, bem acima do teto da meta definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), de 3,75% com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.
Para este ano, é consenso no mercado e no BC que a inflação deve estourar o limite superior, fixado em 5% (meta de 3,5% com tolerância de 1,5 ponto), novamente. Até abril, o IPCA acumulado em 12 meses estava em 12,13% e ainda é incerto se o pico já foi atingido. Agora, a autoridade monetária já olha integralmente para 2023 no horizonte relevante, período para o qual o BC entende que a política monetária faz efeito. Há risco de entregar a inflação fora do intervalo por três anos seguidos, já que as expectativas para os próximos anos se mantêm em alta.
As metas são definidas para três anos-calendário à frente. Um dos argumentos de quem defende mudanças nas regras é que esse período é muito longo, então o BC precisa perseguir um alvo determinado em uma situação muito diferente. A meta de 2021, por exemplo, foi divulgada em 2018, antes da pandemia.
Para Tony Volpon, ex-diretor do BC, sócio e estrategista-chefe da Wealth High Governance (WHG), o regime tem lacunas. “O sistema de metas no Brasil, com ano-calendário e banda [intervalo de tolerância], se torna inadequado quando há choques de enormes proporções”, afirma. “Os choques são tão extremos que a inflação roda a dois dígitos. Se o BC age a ferro e fogo, para o ano-calendário de 2023, é preciso uma recessão muito grande para convergir a inflação para a meta, o que não é ótimo em relação à política monetária.”
Por sua vez, José Júlio Senna, diretor do centro de estudos monetários da FGV e ex-diretor do BC, contrapõe que “discussões sobre eventuais aprimoramentos do regime precisam deixar claro os ganhos efetivos potenciais que mudanças aqui ou ali poderiam de fato trazer”. O economista diz não ver “como a essência do regime possa ser melhorada a partir das ideias que há anos circulam em tom crítico”.
A economista-chefe do banco Inter, Rafaela Vitória, também defende que o regime seja mantido e diz achar cedo para apontar mudanças. “O sistema ainda é muito bom, apesar dos defeitos. A inflação não caiu porque o instrumento é inapropriado, mas porque vivemos um momento excepcional”, afirma. “As expectativas estão muito contaminadas pela inflação corrente, que está muito alta. O BC tem a seu favor um significativo aperto monetário com grande defasagem. O juro real ainda não ficou restritivo, a desaceleração no segundo semestre vai ser forte.”
Em sentido oposto, o economista do instituto Conhecimento Liberta André Luis Campedelli argumenta que faltam mecanismos para combater choques de oferta. “O sistema é baseado na teoria de que todo choque é de demanda e os de oferta são temporários. O regime só consegue ser efetivo no Brasil porque, quando o BC aumenta os juros, entram recursos estrangeiros no país e aprecia a moeda, então atua de maneira enganosa. Não é pela redução de demanda”, diz.
Na visão de José Francisco Lima Gonçalves, economista-chefe do banco Fator e professor da USP, a política monetária perde credibilidade em certa medida por não entregar o que propõe, que é inflação na meta, mas afirma que a meta não é factível. “O regime tem que ser suficientemente versátil para contemplar situações como a atual. O que está errado é o modelo e não a realidade”, opina.
Marco Caruso, economista-chefe do banco Original, afirma que alguns pontos dentro do regime podem ser discutidos, mas pondera que o sistema é consolidado e mudanças devem ser marginais. Além disso, diz, é normal que a política monetária perca potência em períodos de maior volatilidade. “O BC persegue a inflação 18 meses à frente, mas é cobrado pela inflação do ano-calendário fechado, talvez caiba mudança aí. O lado bom seria aumentar a transparência, o ruim é que a autoridade monetária nunca é cobrada de fato, mas é algo a se discutir.”
Fonte: Valor Econômico

