O Wegovy, da Novo Nordisk, usa um hormônio para regular a fome. É altamente efetivo, mas será que é mal usado?
Por Hannah Kuchler, Financial Times
15/07/2022 09h20 Atualizado há 2 horas
No verão de 2018, ao sair do consultório de seu médico, Lisa Robillard caminhou pelo longo corredor de um complexo médico no subúrbio da Virgínia. Ela acabava de ter uma consulta com mais um médico que não tinha como recomendar nada além de “dieta e exercícios” após ela contar a luta de toda sua vida para perder peso. Robillard tinha 11 anos quando participou de sua primeira reunião do Vigilantes do Peso ao lado de integrantes da família, que comemoravam o cumprimento das metas de dieta saindo para tomar sorvete. Tempos depois, quando seu primeiro noivo a pediu em casamento, o anel foi condicionado a que ela emagrecesse o equivalente a vários tamanhos de roupa. Ela emagreceu, mas, quando eles se separaram, o peso voltou. Depois de 40 anos de “ioiô”, ela já não tinha mais ânimo.
Então, Robillard viu de relance uma placa pendurada em uma das portas ao longo do corredor: “Dificuldade para perder peso? Você não precisa fazer isso sozinho”. Do lado de dentro, ela descobriu uma clínica um tanto sombria, com cadeiras de vinil envelhecidas e paredes todas pintadas de bege, longe do que se imaginaria como o berço de algum remédio milagroso. Ela também descobriu, no entanto, que um número cada vez maior de cientistas acredita que a obesidade é uma doença, e não simplesmente o resultado de hábitos não saudáveis e que, para pessoas com obesidade grave, mudanças no estilo de vida nunca serão totalmente eficazes. Ela acabou participando de um teste que a clínica realizava para um novo medicamento chamado Wegovy. “Gostaria de ter sabido antes que não se tratava de apenas falta de força de vontade”, diz Robillard, agora com 55 anos. “Os muitos dólares gastos em [reuniões] para perder peso, os anos em que fiquei me martirizando, os anos de ódio a mim mesma. Gostaria de ter sabido que não era minha culpa.”
O Wegovy, produzido pelo laboratório farmacêutico dinamarquês Novo Nordisk, é o primeiro do que já vem se configurando como uma nova geração de tratamentos para a obesidade, que usam um hormônio para regular o apetite. (Seu nome é resultado de um processo burocrático e nebuloso, que incluiu autoridades reguladoras do setor farmacêutico e marqueteiros da empresa.) O paciente médio no estudo do qual Robillard participou perdeu 15% do peso corporal, cerca de três vezes mais do que com medicamentos anteriores. Cerca de 35% deles perderam quase tanto quanto perderiam após uma cirurgia de perda de peso. Robillard emagreceu quase 26 quilos. A Agência de Remédios e Alimentos dos EUA (FDA, na sigla em inglês) deu aprovação para uso geral do Wegovy em junho de 2021.
O Wegovy chega ao mercado em meio a uma crise mundial de obesidade. Projeta-se que quase metade dos americanos terá obesidade em 2030, segundo um estudo de Harvard, o que pode vir ser a causa de até 18% dos gastos com saúde, para o tratamento de problemas relacionados, desde doenças cardíacas e derrames até a osteoartrite. As taxas mundiais de obesidade triplicaram desde 1975, com o número de adultos chegando a 650 milhões em 2016, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2019, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) declarou que os planos dos países desenvolvidos para enfrentar o problema estavam em grande parte fracassando. E a pandemia da covid-19 apenas colocou em mais evidência que a obesidade aumenta o risco das pessoas diante de doenças contagiosas.
Apesar da enorme necessidade, muitos grandes laboratórios farmacêuticos se abstiveram de desenvolver drogas para a perda de peso, em parte porque o segmento é marcado por um longo histórico de charlatanismo e de sustos relacionados à segurança. De 1930 a 1960, a indústria farmacêutica despejou dinheiro no desenvolvimento de pílulas dietéticas baseadas em anfetaminas. Elas acabaram caindo em desuso em razão do alto poder viciante e dos efeitos colaterais nocivos. Na década de 1990, o chamado “fen-phen” – uma combinação de fenfluramina e fentermina – tornou-se tão popular que clínicas de perda de peso pipocaram pelos Estados Unidos apenas para prescrevê-lo, embora alguns pacientes que tomavam o coquetel tivessem apresentado episódios maníacos. Posteriormente, o tratamento foi retirado do mercado depois de um estudo ter mostrado que cerca de 35% dos pacientes podiam sofrer de defeitos nas válvulas cardíacas. Ainda em 2020, as autoridades reguladoras dos EUA decretaram a retirada do mercado do medicamento para perda de peso Belviq, por preocupações de aumento no risco de câncer. Para os mais desesperados, a cirurgia se tornou uma opção popular, embora cara, e acompanhada de seus próprios riscos e restrições.
Talvez não seja de surpreender, portanto, que existam tantos adeptos do Wegovy – uma injeção semanal autoadministrada pelos pacientes por meio de um pequeno dispositivo que lembra um pouco a uma “caneta” EpiPen, de adrenalina autoinjetável. São pacientes como Robillard, por exemplo. Embora seu trabalho diário ainda seja em um sindicato, ela agora também trabalha meio período como porta-voz da Novo Nordisk, proferindo palestras motivacionais. Também houve manifestações de apoio, não pagas, de celebridades, como o investidor de capital de risco Marc Andreessen, dizendo que a droga mudou completamente sua relação com a comida, e Elon Musk, que citou o medicamento no Twitter.
A Novo Nordisk recentemente mais que dobrou sua projeção de vendas de remédios contra a obesidade para US$ 3,7 bilhões em 2025. O preço de suas ações valorizou-se 26% nos últimos 12 meses. Ainda assim, para que a empresa consiga popularizar o Wegovy, ela precisa convencer os médicos a prescrevê-lo e as operadoras de planos de saúde e governos a pagar por ele. Também precisa persuadir os pacientes a aceitar alguns efeitos colaterais desagradáveis. E, então, ainda resta o pequeno problema de derrubar séculos de suposições (que se revelaram imprecisas) também embutidas na raiz latina da palavra obesidade, que relaciona a gordura ao ato de comer.
Desde a segunda metade do século XX, os mais ricos têm maior propensão a ser magros, uma vantagem de ter melhor acesso à assistência médica e a alimentos saudáveis e de ter mais tempo livre para se exercitar. Ao longo da maior parte da história humana, contudo, o que reinava era a escassez, de forma que a gordura era motivo de ostentação para os ricos. O excesso corporal era prova de uma mesa farta e, talvez, até de genes que protegeriam a prole em tempos de fome.
A história da obesidade, porém, sempre foi complicada. O preço que ela cobra estava claro para os antigos gregos. Hipócrates ressaltava que “a corpulência não é apenas uma doença em si, mas o prenúncio de outras”. Então, o cristianismo chegou e associou o apetite a pecados capitais, como a gula e a preguiça. No inferno de Dante, as almas dos viciados em comida são açoitados por uma chuva de neve e granizo, representando o dano que o excesso de complacência causa a si mesmo e aos outros.
Os cientistas da Novo Nordisk, por sua vez, veem a obesidade como uma doença há 25 anos. Trata-se de um laboratório farmacêutico incomum. Com sede bem próxima a Copenhague e quase um século de idade, é controlado por uma fundação beneficente que investe em pesquisa científica, startups e projetos humanitários. Em receita, é a 17ª maior empresa farmacêutica do mundo, tendo contabilizado vendas de cerca de US$ 20 bilhões em 2021.
Os funcionários gostam de dizer que a Novo Nordisk nasceu de uma história de amor. Seu fundador saiu à procura de insulina para a esposa, diabética, e a trouxe para ela do Canadá à Dinamarca, para depois erigir a empresa. Assim, seus cientistas prestaram atenção especial em 1987, quando três equipes separadas de pesquisadores acadêmicos – em Copenhague, Boston e Londres – descobriram simultaneamente o efeito de um hormônio conhecido como GLP-1 na insulina. Quando comemos, as células do intestino delgado secretam GLP-1, causando a liberação de insulina, que por sua vez atenua as oscilações nos níveis de açúcar no sangue.
Na época, os cientistas viam o hormônio como promissor para ajudar os diabéticos a restaurar a produção normal de insulina. Nos anos 90, enquanto faziam experimentos para criar um novo medicamento à base de GLP-1, os cientistas de laboratório da Novo Nordisk perceberam que seus camundongos e ratos começaram a perder peso. O efeito do hormônio no cérebro, descobriram, reduzia o apetite e criava uma sensação de saciedade. Foi exatamente assim que funcionou para Robillard em 2018; ela sentiu a mente libertar-se de sua obsessão por comer.
Peter Kurtzhals fala comigo pelo Zoom, em uma sala de conferências na sede dinamarquesa da empresa. Cientista sênior na Novo Nordisk, ele tem todo o jeito sério de um pesquisador, mas se ilumina ao descrever por que os acadêmicos que descobriram o hormônio deveriam ser considerados para o prêmio Nobel. Ele diz que o GLP-1 pode ser o equivalente farmacêutico a um canivete suíço, já que a Novo Nordisk também testa drogas baseadas no hormônio para tratar doenças renais, uma doença hepática cada vez mais frequente conhecida como NASH e até a doença de Alzheimer. “É meio que incrível, filosoficamente, que tenhamos um hormônio natural que pode ser usado farmacologicamente em diversas doenças”, diz.
Esse hormônio natural tem um defeito: é tão instável que dura poucos minutos no organismo. Em 2005, uma empresa de biotecnologia de San Diego comercializou uma droga baseada em um hormônio similar, produzido no veneno de um lagarto, o monstro-de-gila, que durava várias horas, em vez de minutos. Os cientistas da Novo Nordisk trabalharam durante anos para criar uma versão estável do GLP-1 que pudesse ser usada como medicamento.
Testar em animais as drogas que tinham mais potencial mostrou ser problemático: uma dose que mantinha um porco saciado podia não funcionar em seres humanos. Além disso, é especialmente difícil rastrear efeitos colaterais relevantes. “É difícil perguntar a um cachorro ou um porco se eles sentem náuseas”, diz Kurtzhals.
Em 2009, a Novo Nordisk obteve aprovação para seu primeiro tratamento à base de GLP-1, um medicamento diário chamado Saxenda. No entanto, a perda de peso de 5% que trazia aos pacientes não foi suficiente para torná-lo um sucesso de público. Os cientistas da empresa pesquisaram centenas de drogas até encontrarem a semaglutida, batizada com a marca Wegovy quando foi aprovada nos EUA em 2021.
O Wegovy é muito semelhante ao Saxenda. Ambos são 90% iguais ao GLP-1 natural, mas devido a uma cadeia lateral química diferente, o Wegovy pode ser tomado semanalmente. (A empresa não sabe exatamente por que a droga se mostrou tão mais eficaz, mas estudos em animais sugerem que ela é distribuída de forma diferente no cérebro.) Quando ensaios clínicos iniciais do Wegovy mostraram a força do medicamento, a sensação foi de que era “bom demais para ser verdade”, segundo Kurtzhals. Depois, a fase final dos ensaios confirmou a impressionante perda de peso, e a equipe celebrou. “Eles se sentiam como se tivessem conquistado uma medalha olímpica”, conta.
Enquanto isso, há um mistério fundamental sobre a obesidade ainda por ser resolvido pelos cientistas. Até que o façam, os pacientes precisarão usar o medicamento a vida inteira. Os especialistas concordam cada vez mais que a descrição de Robillard a seu médico na Virgínia sobre o vaivém de seu peso como um “cabo de guerra” é algo literal para muita gente. Uma vez que se torna obeso, o corpo humano tende a se esforçar para recuperar o peso maior anterior. Os cientistas não entendem completamente o porquê, ou como fazer isso parar. Muitos especulam que nossos cérebros não se ajustaram a viver em tempos de fartura. “Houve uma tendência de seleção em relação às pessoas que conseguiam proteger melhor o peso corporal em tempos de fome”, diz Kurtzhals. “Mas agora não temos escassez de comida.”
Quando um paciente deixa de tomar o Wegovy, seu apetite retorna em questão de semanas e ela volta a ganhar peso. No estudo organizado pela médica de Robillard, Domenica Rubino, os pacientes que deixaram a droga recuperaram 7% do peso. “Costumávamos achar que é o comportamento que determina a situação de peso, mas agora achamos que é a situação de peso que, na verdade, determina o comportamento”, diz Rubino. É possível que existam até efeitos colaterais piores com o uso do medicamento. Menos de uma semana depois de Robillard ter deixado de injetá-lo, no fim dos ensaios em novembro de 2019, ela começou a ter ataques de pânico. “Cada circuito [interno] começou a pensar sobre o desejo [de comida]”, diz. Ela voltou a ganhar 4,5 quilos.
No longo prazo, a ambição da Novo Nordisk é curar a obesidade descobrindo como impedir que as pessoas recuperem o peso perdido. Até lá, Kurtzhals acredita que as pessoas deveriam pensar em tratar a obesidade como tratam outras doenças crônicas. “Por alguma razão, muita gente tem mais facilidade em entender que a medicação deles para a pressão arterial é para usar a vida toda do que em entender que seu tratamento da obesidade também é para a vida toda”, diz. Parte do motivo pode ser a etiqueta de preço. Em contraste com os remédios genéricos para pressão arterial, que agora custam US$ 10 por mês, o preço de tabela por mês do Wegovy nos EUA gira em torno a US$ 1,35 mil.
Intuitivamente, muitos pacientes sabem que a obesidade é uma doença, e alguns já estavam preparados para o Wegovy depois de sua aprovação nos EUA. Na semana seguinte, Kimberley Shoaf, professora de saúde pública na Universidade de Utah, visitou seu médico e descobriu que ela não era a primeira paciente da clínica a pedir o Wegovy. Com medo da cirurgia que, até então, via como única alternativa, ela pressionou para que lhe dessem a receita. Nos últimos 11 meses, ela perdeu quase 32 quilos, o equivalente a mais de 20% de seu peso, e ainda vem perdendo meio quilo por semana. Agora, ela consegue caminhar por mais tempo, sua pressão arterial diminuiu e ela tem a esperança de, em breve, ver a condição de “pré-diabética” apagada de seus registros médicos. “Sinto-me mais jovem, apesar de ter completado 60 anos”, diz.
É por resultados como esse que ela está disposta a tolerar os consideráveis efeitos colaterais do Wegovy. No começo, ela vomitava toda semana depois de tomar a injeção. Agora, sofre de constipação. Efeitos colaterais parecidos foram relatados nos ensaios clínicos e na enciclopédia on-line drug.com, na qual os pacientes elogiam de forma unânime a perda de peso resultante, mas frequentemente se queixam de um constante “enjoo matinal”. O remédio também vem com um aviso de que pode aumentar o risco de câncer de tiroide, embora até agora isso só tenha se dado em animais em laboratório.
Enquanto começa com pacientes bem informados a respeito do remédio, como Shoaf e Andreessen, o próximo desafio da Novo Nordisk é atrair pessoas obesas que nunca procuram tratamento. É aí que entra Queen Latifah. O laboratório farmacêutico está pagando à atriz para encabeçar uma campanha, que não exibe marcas, chamada “It’s Bigger Than Me” (é maior do que eu, em inglês). Em vídeos on-line, por exemplo, Latifah interpreta uma médica de pronto-socorro dando lições de moral enquanto um paciente obeso é trazido em uma maca sofrendo de “estigma”. Ela não fala em nenhum momento explicitamente o nome do medicamento. Em eventos ao vivo com especialistas em Nova York, Los Angeles e Houston, a Novo Nordisk espera que Latifah tenha sucesso em aumentar a demanda. Uma mulher negra famosa, espera a empresa, terá apelo em quatro entre cada cinco mulheres negras que são obesas.
Quando falamos por videochamada, Latifah, que usa um vestido azul-escuro, está preparada. “Não se trata apenas de imagem”, diz ela. “Trata-se de ciência. Trata-se de genética. Trata-se de hormônios.” Ela conta que nem sabia que tinha um problema de peso até pedir a uma personal trainer para ajudá-la a perder mais de dez quilos para seu papel na comédia “A Casa Caiu”, de 2003. Latifah descreve como ela tomou suas medidas com uma fita: “Ela literalmente passou pelas minhas nádegas. Ela falou assim, ‘Você é obesa’. Nunca tinha ouvido esse termo aplicado a mim”, diz a atriz. “Então começamos um plano, e funcionou.”
Quando pergunto como era o plano, ela diz que era de dieta e exercícios, acrescentando: “Eu nunca fui muito […] do lado de medicina disso.” Ela se detém, talvez percebendo que isso pode não cair bem para os representantes de relações públicas sentados em silêncio na chamada. “Bem, deixe-me dizer desta forma […] Eu vi pessoas ficarem malucas numa onda de fen-phen como nunca vi na minha vida.” Inadvertidamente, Latifah pode ter tocado na questão que é o maior obstáculo do Wegovy: o estigma profundamente arraigado em torno aos tratamentos médicos dos problemas de peso.
Superar esse obstáculo é uma tarefa que cabe, em parte, a Vince Lamanna, o recém-indicado líder de vendas da Novo Nordisk nos EUA e uma espécie de anúncio ambulante do Wegovy. A impressão é que seu elegante terno xadrez, cinza e azul, não caberia nele antes de ele ter perdido quase 15 quilos, 15% de seu peso corporal, com o remédio. Ele diz que o medicamento é “muito difícil” vender, enquanto brinca com a caneta de injeção que carrega consigo para mostrar como o Wegovy é fácil de ser autoadministrado. “Ainda somos a única empresa fazendo-o, fazendo-o sozinha”, acrescenta.
Doug Langa, vice-presidente executivo da Novo Nordisk, passou 30 anos vendendo medicamentos contra praticamente todas as doenças. No entanto, ele nunca se deparou com uma tarefa como esta: uma doença em que apenas um em cada dez americanos procura tratamento. E quando o faz, encontra dificuldade para encontrar um médico que lhe dê ouvidos. “Este é, de longe, o mais desafiador, sem dúvida”, diz.
Em 72 horas depois da aprovação do Wegovy, a Novo Nordisk colocou os “pés na rua” e enviou o que chama de “educadores” a consultórios pelos EUA. Lamanna prevê que levará de dois a três anos para mudar a mentalidade dos médicos de atendimento primário. Endocrinologistas e especialistas em controle de peso costumam compreender que a dieta nem sempre consegue competir contra o ímpeto do corpo de voltar a um peso maior. Já se passaram quase dez anos desde que a Associação Médica Americana declarou pela primeira vez a obesidade como uma doença, mas o médico médio mal aprende a respeito disso nas faculdades de medicina. “A maior concepção equivocada é que se trata de calorias dentro e calorias fora. Ou seja, de quanto você se exercita e quanto você come”, explica Lamanna. Rubino, a médica que conduziu o estudo do Wegovy na Virgínia, acrescenta que os médicos de atendimento primário raramente entendem os papéis desempenhados pela nutrição e pela regulação hormonal, e que esse vácuo é ocupado pelo o estigma da sociedade contra os obesos.
Embora enviar representantes de vendas aos médicos seja prática normal na medicina americana, levar adiante uma reeducação completa traz à memória a forma como os fabricantes de opioides tentaram reclassificar a dor como um “quinto sinal vital”, para que os médicos achassem que precisavam usá-los no tratamento. Rubino, que foi paga pela Novo Nordisk para conduzir o ensaio, entende que as pessoas possam achar que o programa educador da empresa atua em interesse próprio. “Mas, até agora, acho que as pessoas vêm tentando ser muito cuidadosas em seu papel”, diz.
É improvável que a equipe de Lamanna continue sozinha em sua missão de disseminar a ideia. A Eli Lilly, rival de longa data da Novo Nordisk no tratamento do diabetes, publicou recentemente o que parecem ser resultados finais ainda melhores para seu medicamento contra a obesidade, o Tirzepatide. Mais de 65% dos participantes dos ensaios de seu tratamento à base de GLP-1 perderam 20% do peso corporal. A Pfizer também trabalha em um tratamento baseado no hormônio. A AstraZeneca e sua parceira Regeneron, assim como as startups Versanis e Gelesis,vêm adotando abordagens científicas diferentes para o mesmo problema. Todas esperam entrar – e expandir – o mercado de tratamentos para a obesidade, como o Wegovy. Se forem bem-sucedidas, haverá muito mais pregadores entre os laboratórios farmacêuticos para “converter” milhões ao uso dos tratamentos médicos.
Mesmo que a Novo Nordisk consiga convencer os médicos, ainda enfrentará um desafio maior, o de convencer quem reluta em pagar. Cerca de 80 milhões de americanos obesos não têm seguros de saúde que cubram o Wegovy. Embora esteja nas listas da maioria das seguradoras de medicamentos oficialmente cobertos, em geral está em alguma categoria de estilo de vida, ao lado de tratamentos para problemas como disfunção erétil. As firmas também colocam obstáculos, de forma que os pacientes precisam permissão antes de ganhar direito a recebê-lo. Um farmacêutico de Maryland me disse ter visto muitas receitas do Wegovy e que nenhuma voltou depois de enviada para aprovação.
Rubino diz ficar irritada ao ver os formulários nos quais se recorre contra a falta de aprovação para o uso por pacientes que, acredita ela, deveriam ser exceções, como um cuja medicação contra a bipolaridade o fez ganhar peso. Ela conta ter passado duas horas no telefone tentando obter a identificação correta do caso e o número de fax para enviar um recurso. Com frequência, os recursos são ignorados ou rejeitados sem motivo, acrescenta Rubino.
“É um sistema adotado basicamente para impedir que você seja persistente. E vou fazer isso pelos meus pacientes. Mas leva um tempo incrível”, diz. Rubino acredita que as seguradoras também estigmatizam a obesidade. “Durante muito tempo, a explicação sobre por que [os remédios] não eram cobertos era que eles não faziam com que se perdesse muito peso”, diz ela. “Agora, não sei qual é a desculpa.”
As principais firmas de seguro-saúde americanas, como Aetna, UnitedHealthcare e Cigna, não responderam aos pedidos para comentar suas decisões de cobertura. James Gelfand, que lidera a área de assuntos públicos na Erisa Industry Committee, associação que representa empregadores norte-americanos que financiam planos de saúde para os funcionários, diz que os medicamentos anteriores contra a obesidade eram tão ineficazes que não se precisava nem pensar duas vezes antes de recusar a cobertura. Hoje, cerca de metade de todos os empregadores nos EUA optaram por incluir o Wegovy em sua lista de medicamentos cobertos. Mas ainda podem restringi-lo a certos grupos de pacientes ou fazer com que aqueles que se qualificam enfrentem outros obstáculos.
O Wegovy pode ser diferente, mas Gelfand suspeita que os empregadores vão esperar para ter mais dados e, então, talvez, começar com os que tenham mais necessidade. Se os laboratórios farmacêuticos realmente quiserem que esses tratamentos sejam cobertos, Gelfand sugere que poderiam reduzir os preços. “As empresas farmacêuticas fazem uma dança delicada, tentam extrair o máximo de dinheiro possível dos terceiros que são responsáveis por pagar, sabendo que um paciente individual nunca terá meios para comprar o medicamento”, diz.
A Novo Nordisk também precisa convencer o Congresso americano a fazer com que o Medicare, seguro-saúde público do país para os idosos, cubra remédios contra a obesidade. Há dez anos, os parlamentares têm proposto o fim do veto que impede o Medicare de pagar tratamentos de obesidade, mas não está claro se ainda existe a vontade política para isso. A farmacêutica dinamarquesa poderia encontrar dificuldades em particular para ganhar votos dos políticos, já que a insulina, um de seus principais produtos, se tornou “símbolo” do aumento nos preços dos remédios, segundo Langa, da Novo Nordisk.
Neste ano, uma comissão parlamentar acusou a empresa de ter aumentado o preço da insulina 28 vezes desde 2001, em um total de 628%. A Novo Nordisk argumenta que, na verdade, seu preço líquido caiu e que o dinheiro dos aumentos vai para intermediários e seguradoras. Langa fala, meio brincando, que se você quiser vê-lo realmente estressado, é só assistir a um vídeo dele testemunhando no Congresso.
A perspectiva de perder a cobertura após os 65 anos preocupa os pacientes que sabem do risco de voltar a ganhar peso. Gwendolyn, uma musicista de 66 anos, perdeu mais de 35 quilos no teste do medicamento da Eli Lilly. Ela diz que costumava ser um “ataque cardíaco ambulante”, cujos problemas foram agravados quando ela ficou com chamada covid longa. Hoje ela sente que poderia continuar trabalhando por muitos anos. Mas se o Medicare não pagar, ela terá que conseguir o dinheiro e diz que até consideraria o uso intermitente do medicamento para economizar.
A Eli Lilly ainda não anunciou o preço de seu remédio contra a obesidade, mas deverá estar no mesmo patamar do Wegovy. Gwendolyn descreve como “muito assustador” o fato de que o medicamento possa custar tanto, embora ela entenda que os fabricantes de medicamentos queiram de volta o dinheiro investido nos ensaios clínicos, que custam uma “fortuna”. “Mas quando você percebe o grande número de pessoas que tomariam isso, imagino que eles poderiam ganhar dinheiro com a escala”, diz. “Acho que vai ser mais como um remédio especial, que as pessoas ricas vão tomar para ajudar a reduzir seu peso […] isso é meio triste.”
No Reino Unido, o Sistema Nacional de Saúde tem claro interesse em combater a obesidade, já que a ajudaria a economizar nos futuros custos médicos associados. Cerca de 28% dos adultos na Inglaterra eram obesos em 2019, quase o dobro de 1993 e uma das piores taxas da Europa. Em fevereiro, o Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Assistência (NICE) do Reino Unido divulgou orientações preliminares aconselhando que o Wegovy pode ser administrado nos pacientes com mais sobrepeso, com pelo menos uma condição relacionada à obesidade, juntamente com um plano de dieta e exercícios, mas apenas por dois anos.
Em razão de alguns problemas de produção o remédio ainda não está disponível. Quando estiver, os pacientes do Reino Unido poderão obtê-lo a um custo de 9,35 libras esterlinas (US$ 11,13). Quando houver mais doses disponíveis, a Novo Nordisk expandirá a promoção do produto pela Europa, onde algumas autoridades do setor saúde, como as da Irlanda, Holanda e Suíça, já cobrem o custo do Saxenda.
Mesmo que a Novo Nordisk e suas concorrentes consigam que os medicamentos sejam aceitos pelos que determinam o que vai ser coberto ou não, elas ainda enfrentarão oponentes que rejeitam a premissa de que a obesidade deva ser tratada com remédios. Defensores da “positividade corporal” e alguns especialistas em controle de peso acreditam que indicadores de saúde, como a pressão arterial ou o nível açúcar no sangue, são muito mais úteis do que o índice de massa corporal. A empresa espera convencer os mais céticos com um ensaio clínico, a ser divulgado ainda neste ano, que mostrará se o Wegovy reduz o risco de problemas cardíacos.
Marquisele Mercedes, doutoranda em saúde pública na Universidade Brown, não aguenta mais ouvir que o Wegovy é um “milagre”. Ela adverte que a droga pode realmente encorajar o “efeito sanfona”, o que é “incrivelmente perigosa”. Estudos mostram que perder e voltar a ganhar peso pode aumentar o risco de doenças como diabetes. “Tudo o que atribuímos à obesidade, como risco cardiovascular, diabetes, depressão, ansiedade […] na verdade, descobriu-se estar relacionado ao efeito sanfona”, explica.
Alguns críticos temem que a Novo Nordisk seja bem-sucedida até demais na “conversão” da comunidade médica. Os médicos muitas vezes encontram nos medicamentos – como antidepressivos receitados em excesso – uma muleta conveniente quando não têm o tempo ou a habilidade para explorar as raízes mais complexas de um problema. Krista Varady, professora de nutrição da Universidade de Illinois, relata uma experiência “reveladora” que teve em uma conferência de especialistas em diabetes que usaram GLP-1 por anos. Alguns disseram que, de imediato, colocaram 95% dos pacientes para usar o medicamento, sem esperar para ver se a dieta ou o exercício funcionariam. “Fiquei chocada”, diz. “Mas nosso sistema é pensado para tratar quem [já] está doente, não para fazer prevenção.”
Varady teme que se opte pelo mais fácil, medicar um mundo que ela descreve como “obesogênico” – um mundo propenso a causar obesidade. O Wegovy poderia se tornar um “emplastro” social, permitindo que as empresas de alimentos continuem vendendo péssima comida e as empresas farmacêuticas, lucrando com o emagrecimento das pessoas. Ela acredita que seria mais “humano” se os governos encontrassem maneiras de “ensinar as pessoas ou tributá-las”, como o imposto do Reino Unido sobre bebidas com açúcar.
Mercedes acredita que os esforços da Novo Nordisk para combater o estigma – a campanha Queen Latifah – poderiam, na verdade, acabar enraizando o preconceito existente. “Eles estão vendendo a você uma solução para a discriminação e o estigma que você enfrenta, oferecendo a você uma maneira de ficar menor”, diz. É “literalmente apenas publicidade”. “Estamos numa transição da narrativa do fracasso pessoal, da falta de força de vontade, da falta de autocontrole para essa narrativa que diz: ‘A obesidade é uma doença, você precisa de uma cura receitada’ […] para que possamos vender medicamentos para emagrecer”, diz Mercedes. “Eles vão acertar na mosca”.
A Novo Nordisk não acredita que se trate de uma questão binária, entre oferecer remédios ou mudar a sociedade. Impulsionada pelo enorme potencial de lucro, pode acabar sendo mais bem-sucedida do que os esforços incongruentes e mal financiados para lidar com as condições subjacentes que exacerbam a obesidade, como a saúde mental, a pobreza e a falta de acesso a alimentos nutritivos. Os cientistas da empresa vêm trabalhando em versões aprimoradas do Wegovy – incluindo uma pílula – e em combinações que eles esperam ser capazes de ajudar as pessoas a perder ainda mais peso.
Lisa Robillard sente que é uma das sortudas. Seu seguro cobre o Wegovy, então precisa pagar apenas US$ 40 por mês. Quando o medicamento foi aprovado, ela precisou ir a quatro ou cinco farmácias para encontrá-lo, mas agora conta com uma fonte de suprimento confiável. Seus joelhos e tornozelos não doem mais, ela parou de roncar e tem mais energia. Ela diz não ter problema nenhum em precisar tomar a droga para sempre. No entanto, ela se incomoda com as pessoas achando que se trata de uma solução rápida. Ela ressalta que precisa continuar se cuidando com o que come e se exercitando. “Não é como se você tomasse o remédio e depois pudesse comer torta e biscoitos o dia todo.”
(Tradução de Sabino Ahumada)1 de 1 Uma vez que se torna obeso, o corpo humano tende a se esforçar para recuperar o peso maior anterior. Os cientistas não entendem completamente o porquê, ou como fazer isso parar — Foto: EBC
Uma vez que se torna obeso, o corpo humano tende a se esforçar para recuperar o peso maior anterior. Os cientistas não entendem completamente o porquê, ou como fazer isso parar — Foto: EBC
Fonte: Valor Econômico