Empresas ocidentais vêm protegendo lentamente suas operações na China contra as crescentes tensões geopolíticas e comerciais entre Pequim e o Ocidente, enquanto os governos ocidentais defendem a redução da exposição a riscos.
A abordagem, conhecida como “de-risking”, tem substituído a opção mais radical de “descasamento” como palavra diplomática do ano e é um sinal de que o Ocidente procura um caminho menos antagônico para suas relações com a China. As empresas, porém, ainda não formularam estratégias claras para dar mais consistência a essa abordagem, segundo analistas.
Enquanto um pequeno número de empresas, como a fabricante de brinquedos americana Hasbro, anunciou planos de deixar de produzir totalmente na China, a grande maioria ainda estuda opções, que vão desde desinvestimentos parciais até adiar decisões de investimento e procurar modos de tornar suas operações na China à prova de choques, fazendo-as com que atendam só o mercado chinês.
“A Europa ainda está pensando o que significa de-risking e como implementar isso na prática”, disse Agathe Demarais, pesquisadora sênior de políticas do centro de estudos European Council on Foreign Relations. “Nos últimos 12 meses, houve muito mais discussão no setor privado sobre estratégias para incentivar a produção local como forma de reduzir riscos, mas leva vários anos para que esse investimento dê resultados.”
Os lockdowns da pandemia em Pequim e a invasão da Ucrânia por Moscou intensificaram o senso de urgência, em meio aos temores dos líderes ocidentais quanto ao controle de cadeias de abastecimento cruciais pela China, à possibilidade de confronto em Taiwan e à hostilidade no comércio exterior entre Washington e Pequim. Nesta segunda-feira, o comissário de Comércio da União Europeia, Valdis Dombrovskis, se reuniria com autoridades chinesas para discutir o déficit comercial cada vez maior dos europeus com a China e a investigação da UE contra subsídios à importação de veículos elétricos.
Começam a emergir sinais de mudanças de longo prazo na produção. Um relatório deste ano da Câmara de Comércio Europeia na China revelou que 11% das empresas europeias pesquisadas já haviam realocado investimentos para fora da China, enquanto 22% estudavam essa mudança ou já haviam se decidido por ela. Pela primeira vez desde 2016, menos da metade dos entrevistados tinha planos de expandir suas operações na China no ano da pesquisa.
A Câmara de Comércio Americana na China constatou que 12% das empresas americanas consultadas consideram realocar fornecedores para fora da China e que outras 12% já o estão fazendo.
“A maioria das empresas não tem alternativa à China”, disse Trey McArver, da consultoria Trivium China, mas “elas precisam encontrar estratégias para operar num ambiente de risco muito maior”.
Apple e Intel alocaram investimentos futuros a outros países, como a Índia e nações do Sudeste Asiático, ao mesmo tempo em que mantiveram suas fábricas na China, uma estratégia de proteção conhecida como “China mais um”.
No entanto, a estratégia mais contemplada é “China para a China”, em que as operações na China são reorganizadas para produzir bens só para o consumo chinês.
O laboratório farmacêutico anglo-sueco AstraZeneca está elaborando planos para desmembrar sua unidade na China e registrar as ações na Bolsa de Valores de Hong Kong, em parte para protegê-la contra medidas de órgãos reguladores chineses contra empresas estrangeiras. As diretrizes governamentais para os departamentos de compras requerem que órgãos estatais, como hospitais, comprem cada vez mais de marcas chinesas.
A estratégia “China para a China” também envolve ter cadeias de abastecimento formadas por fornecedores locais. Em maio, o laboratório farmacêutico alemão Merck comunicou que expandiria suas cadeias de abastecimento na China para reduzir a dependência de matérias-primas de fora da China, principalmente dos EUA, que estão vulneráveis a sanções.
A associação setorial VDMA, de fabricantes alemãs de maquinário, informou que cerca de 35% de seus membros estão procurando fornecedores alternativos que possam atender tanto aos mercados dos EUA quanto da China com produtos “neutros”, sem componentes chineses ou americanos.
A Volkswagen, que obtém cerca de metade dos lucros na China, anunciou 4 bilhões de euros em investimentos no país nos últimos 12 meses. Isso dará “mais autonomia e poderes do que nunca para a tomada de decisão na China”, disse Ralf Brandstätter, que é membro do conselho de administração da empresa e trabalha em Pequim. A unidade chinesa está “gradualmente se tornando uma segunda sede” para o grupo, acrescentou Brandstätter recentemente.
Como os EUA, Holanda e Japão impuseram sanções à exportação aos chineses de equipamentos usados na fabricação de chips de alta tecnologia, alguns clientes na China agora querem produtos sem componentes estrangeiros, como forma de se protegerem contra medidas adicionais, de acordo com executivos.
Em 2021, a STMicroelectronics separou suas operações de vendas e marketing na China do restante de sua divisão da Ásia-Pacífico, assim como as estruturas responsáveis por folhas de pagamento, gestão de pessoal e balanços financeiros, segundo duas fontes.
Um dos objetivos da decisão é facilitar a possibilidade de a empresa separar sua unidade na China, caso seja necessário, segundo as fontes. A reorganização foi projetada “para equilibrar melhor nosso foco e suporte ao cliente”, de acordo com a STMicroelectronics.
A preocupação em ter contratações locais já havia na pandemia, já que a política chinesa de tolerância zero à covid-19 impediu que multinacionais enviassem expatriados para suas operações na China. Para alguns executivos estrangeiros que estão na China há muito tempo, a vida no país também se tornou mais difícil.
“O sentimento antiestrangeiro é o pior dos últimos 30 anos em que estive na China”, disse um executivo europeu da área de tecnologia que está fazendo planos para sair do país. “Vejo constantemente esse sentimento nas notícias, nos comentários em mídias sociais, ao conversar com pessoas e clientes. Não posso fechar os ouvidos a isso.”
Firmas de consultorias como a McKinsey e o Boston Consulting Group estão entre as empresas que vêm separando seus sistemas de tecnologia da informação na China. Isso é resultado das leis chinesas cada vez mais rigorosas contra a espionagem e de proteção de dados, que exigem a aprovação regulatória para a transferência de grandes quantidades de dados para fora da China.
“O ‘risco’ está vindo de várias direções”, disse Samm Sacks, especialista em política global de cibersegurança do Paul Tsai China Center, da Faculdade de Direito de Yale. Ela citou as “incertezas do novo regime de dados de Pequim, mas também [o risco] como resposta às tensões entre EUA e China, assim como ao planejamento de contingência para a crise em Taiwan”.
Para adequar-se tanto às leis chinesas quanto à preocupação das matrizes com o roubo de seus dados, as empresas passaram a criar sistemas de tecnologia da informação específicos para a China — o que muitas vezes impede as equipes de diferentes países de usarem a mesma plataforma para trabalharem juntas.
“A China está sendo tratada cada vez mais como um mercado especial, inclusive na hospedagem de dados, na exportação de dados e na exposição [a risco] dos executivos visitantes – incluindo os dispositivos que levam com eles”, disse Duncan Clark, chefe da firma consultoria BDA China.
“Se a China for um silo”, acrescentou o executivo de tecnologia europeu, “fica muito mais fácil controlar o que entra e o que sai: você só precisa controlar algumas portas no silo”.
(Colaborou Andrew Edgecliffe-Johnson, de Nova York)
Fonte: Valor Econômico

