Por Martin Wolf
25/05/2022 05h02 Atualizado há 6 horas
Haverá uma recessão nos Estados Unidos e em outras economias relevantes? Essas perguntas surgiram naturalmente entre os participantes da reunião deste ano do Fórum Econômico Mundial em Davos. Trata-se, no entanto, da pergunta errada, pelo menos para os Estados Unidos. A certa é se estamos caminhando para uma nova era de inflação mais alta e crescimento fraco, semelhante à estagflação da década de 1970. Se estivermos, o que isso pode significar?
São evidentes as semelhanças entre a atual elevação “surpresa” da inflação para níveis não observados em quatro décadas e a anterior, quando a inflação também se revelou uma surpresa para quase todo mundo, com exceção dos monetaristas. Aquela era também foi caracterizada pela guerra – a guerra do Yom Kippur de 1973 e a invasão do Irã pelo Iraque em 1980. Essas guerras geraram saltos dos preços do petróleo, que diminuíram as rendas reais. Os Estados Unidos e outras economias de alta renda vivenciaram quase uma década de inflação alta, crescimento instável e fragilidade das bolsas. Seguiu-se a isso uma acentuada desinflação sob a presidência de Paul Volcker no Federal Reserve e a guinada de Reagan e Thatcher na direção dos livres mercados.
A crença de que a inflação vai se extinguir com uma variação modesta nos juros e sem aumento do desemprego é otimista demais. Se esse quadro sombrio for correto, a inflação vai cair, mas talvez só para algo em torno de 4%. A inflação mais elevada será o novo normal
No momento, poucos preveem coisa semelhante. Mas um ano atrás poucos previam a atual alta da inflação. Agora, como na década de 1970, o aumento da inflação é responsabilizado pelos choques na ponta da oferta causados por acontecimentos imprevistos. Naquela época, como agora, isso era parte do quadro. Mas a demanda exagerada faz com que os choques na ponta da oferta se transformem em inflação sustentada. Isso leva à estagflação, na medida em que as pessoas perdem sua confiança em uma inflação estável e baixa e os BCs não têm a coragem suficiente para reabilitá-la.
No momento, os mercados não preveem qualquer resultado desse gênero. Houve, é verdade, uma queda das bolsas americanas. Mas, pelos padrões históricos, elas ainda estão muito caras: a relação preço-lucro ciclicamente corrigida de Robert Shiller, de Yale, ainda está nos níveis somente ultrapassados em 1929 e no fim da década de 1990. No máximo, esta é uma correção de excessos branda, necessária para a bolsa. Os mercados preveem que as taxas de juros de curto prazo permaneçam abaixo de 3%. As expectativas de inflação, reveladas pela discrepância entre os rendimentos dos títulos do Tesouro americano convencionais e os atrelados a índices, caíram um pouco recentemente, para 2,6%.
Diante do quadro total, o Fed deveria estar encantado. Movimentos nos mercados indicam que sua visão do futuro – uma desaceleração branda desencadeada por um aperto brando, que leva a uma desinflação rápida rumo à meta – é a convicção em amplos círculos. Apenas dois meses atrás, a mediana das previsões dos membros do conselho de diretores e dos presidentes regionais do Fed para 2023 apontavam para um crescimento do Produto Interno Bruto de 2,2%, uma queda do núcleo da inflação para 2,6%, 3,5% de desemprego e taxa do interbancário de 2,8%.
Isso é, sem tirar nem pôr, desinflação de fato, mas nada parecido com isso tende a ocorrer. A oferta dos Estados Unidos está limitada, acima de tudo, por um nível de emprego superelevado, como observei apenas duas semanas atrás. A média de crescimento de dois anos (que inclui 2020, o ano marcado pelo início da covid) foi de mais de 6%. No período de um ano encerrado no primeiro trimestre de 2022, a demanda nominal, na verdade, aumentou mais que 12%.
O crescimento da demanda nominal interna americana é, aritmeticamente, o produto da elevação da demanda por produtos e serviços reais e a alta de seus preços. No âmbito dessa relação causal, se a demanda nominal se expandir muito mais rapidamente do que a capacidade da produção real de acompanhá-la, a inflação é inevitável. No caso de uma economia tão grande como a dos Estados Unidos, a disparada da demanda nominal também afeta os preços do abastecimento de produtos vindos do exterior. O fato de autoridades de outros países terem seguido políticas semelhantes reforça essa tendência. Sim, a recessão induzida pela covid criou um desaquecimento significativo, mas não dessa extensão. O choque negativo da ponta da oferta causado pela guerra na Ucrânia agravou todo esse quadro.
Mas não podemos prever que essa acelerada elevação da demanda nominal arrefeça para o nível de cerca 4% compatível com um crescimento econômico e com uma inflação potenciais de 2% anuais cada um. A expansão da demanda nominal é, de longe, muito superior ao nível das taxas de juros. De fato, ela não apenas alcançou índices nunca vistos desde a década de 1970 como a discrepância entre seu nível atual e a taxa de juros de 10 anos é muito maior do que naquela época.
Por que é que pessoas que veem sua renda nominal crescer a essas taxas teriam medo de tomar polpudos empréstimos, a baixas taxas de juros, principalmente num momento em que muitas delas contam com balanços fortalecidos pelo respaldo que tiveram na era da covid? Não é muito mais plausível que o crescimento do crédito e, portanto, que a demanda nominal, permaneçam fortes? Pense no seguinte: mesmo se o crescimento anual da demanda nominal tivesse de despencar para 6%, isso implicaria em uma inflação de 4%, não de 2%.
A combinação de políticas fiscais e monetárias implementadas em 2020 e em 2021 provocou um incêndio inflacionário. A crença de que essas chamas vão se extinguir com uma variação modesta nas taxas de juros e sem um aumento do desemprego é otimista demais. Se esse quadro sombrio for correto, a inflação vai cair, mas talvez somente para algo em torno de 4%. A inflação mais elevada será o novo normal. O Fed terá, então, de entrar em campo novamente ou terá de abandonar sua meta, o que desestabilizará as expectativas e fará com que perca credibilidade. Esse será um ciclo de estagflação, uma decorrência da interação entre choques e erros cometidos pelas autoridades fiscais e monetárias.
Os desdobramentos políticos disso são perturbadores, principalmente diante da grande superoferta de populistas malucos. Mas as conclusões de política pública também são claras. Se a década de 1970 tem alguma coisa a nos ensinar, é que o período para sufocar um aumento da inflação é no seu início, quando as expectativas ainda estão do lado das autoridades. O Fed tem de reiterar que está determinado a reduzir o crescimento da demanda para taxas compatíveis com o crescimento potencial e com a meta de inflação americanos. E, mais, limitar-se a dizer isso não é suficiente. Ele tem de fazer isso também. (Tradução de Rachel Warszawski)
Martin Wolf é editor e principal analista econômico do Financial Times.
Fonte: FT / Valor Econômico

