Em construção desde 2010 em Pernambuco, a estatal criada há 19 anos para coletar o plasma e produzir hemoderivados no Brasil ainda não entrou em pleno funcionamento
Por João Valadares, Valor — Brasília
O avanço no Congresso da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permite a coleta, processamento e comercialização de plasma sanguíneo no Brasil pela iniciativa privada reacendeu a cobrança pública para conclusão das instalações da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás). Em construção desde 2010 em Pernambuco, com investimento que já chega a R$ 1,08 bilhão e previsão de atingir R$ 1,4 bilhão, a estatal criada há 19 anos para coletar o plasma e produzir hemoderivados no Brasil ainda não entrou em pleno funcionamento.
Alvo de questionamentos no Tribunal de Contas da União (TCU) e na Justiça Federal no passado, a empresa planejada com objetivo de diminuir a dependência do país em relação ao mercado externo de hemoderivados não fabrica sequer, até agora, um único medicamento a partir do plasma. O governo federal promete, no entanto, que, paralelamente ao destravamento da construção da fábrica de hemoderivados, deve concluir ainda neste ano instalações para produção do chamado fator VII recombinante, medicamento obtido por engenharia genética destinado ao tratamento de hemofilia A no Brasil.
A estatal, que deveria ter sido concluída ainda em 2014 conforme previsão do governo em 2011, só deve passar a produzir parcialmente albumina e imunoglobulina, produtos mais críticos de atendimento ao SUS feitos a partir do processamento do plasma, em 2025. Existe a promessa de que, só em 2026, a fábrica funcione com sua capacidade total. Atualmente, o plasma coletado nos hemocentros públicos é remetido por meio de um contrato de transferência de tecnologia para unidades da empresa Octapharma na Áustria, Alemanha e França. A multinacional produz os medicamentos e vende ao Brasil.
Neste ano, a expectativa é de que a Hemobrás recolha mais de 150 mil litros de plasma para encaminhamento ao exterior. Quando estiver em pleno funcionamento, a estatal terá capacidade de processar até 650 mil litros de plasma anualmente. A baixa coleta atual se deve ao processo ainda em avanço de qualificação dos hemocentros.
O plasma coletado na rede privada é completamente descartado. O presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu de Almeida, diz que o desperdício é criminoso. “Depois de 19 anos, a Hemobrás ainda não consegue produzir. Temos que jogar no lixão tudo o que sobra no serviço privado”, diz.
Ele sustenta que a Hemobrás nunca entrou em contato para recolher o plasma do serviço privado. “Tem relatório do TCU mostrando isso. Foram jogados 2,7 milhões de doações no lixo. Agora, em 2020, começaram a coletar, em 2021, 2022, e ainda não conseguiram colher nem metade do plasma do serviço público”, aponta.
O representante do setor privado, que comemora o avanço da PEC no Senado, diz que, mesmo a Hemobrás coletando 650 mil litros por ano, não dará conta da necessidade de medicamentos que o Brasil tem. “Na função plena dela, vai atender 60% do mercado. O Brasil continua dependente de importação. A gente pode produzir isso aqui dentro”, alega. Segundo a ABBS, o Brasil importa R$ 1,5 bilhão em medicamentos à base de hemoderivados.
O diretor-presidente da Hemobrás, Antônio Edson de Souza Lucena, rebate as informações da ABBS e diz que não é verdade que a estatal não tenha capacidade de fazer a coleta atualmente. “Nós temos aí uma série de contatos feitos solicitando a qualificação [dos bancos de sangue privados] e temos negativa dele”, declara. A alegação é de que há uma resistência dos serviços de hemoterapia privados em disponibilizarem o plasma. A portaria número 1.710 do Ministério da Saúde regulamentou a coleta e gestão do plasma, que passou a ser de responsabilidade da Hemobrás desde outubro de 2020.
O Brasil, hoje, produz 500 mil litros de plasma a partir de 3,2 milhões de doações feitas no setor público. “E o setor privado? Ninguém sabe. É uma caixinha preta”, afirma Lucena. De acordo com ele, a empresa pública tem capacidade para processar todo o plasma brasileiro. A Hemobrás alega que contará com capacidade instalada para processar 650 mil litros por ano.
A partir daí, poderá produzir 10 toneladas por ano de albumina, usada no tratamento de queimaduras graves, sangramentos e infecções generalizadas. Esse quantitativo atenderia 100% da demanda do SUS. Já a imunoglobulina, usada no tratamento de erros inerentes da imunidade, infecções bacterianas e virais, serão duas toneladas anualmente. A produção também seria capaz de atender à demanda do SUS.
A assessoria de comunicação da estatal informou que, se necessário, o complexo fabril dispõe de toda infraestrutura de grande porte pronta para ampliar a produção, chegando ao processamento de até um milhão de litros de plasma. A demanda declarada atual do Sistema Único de Saúde (SUS) é de 800 mil litros por ano.
Obras interrompidas
Ocupando uma área de 48 mil metros quadrados, no município de Goiana, distante 63 quilômetros de Recife, a Hemobras teve suas obras interrompidas em 2016 depois de o TCU detectar irregularidades no contrato com a construtora vencedora da licitação. No ano anterior, a Polícia Federal havia iniciado investigações que apontaram desvios de recursos no processo de construção. Na época, a diretoria da estatal chegou a ser destituída por determinação da Justiça Federal.
Questionada pelo Valor, a assessoria de comunicação da Hemobrás disse que o atraso na obra se deu por um somatório de motivos. Entre as justificativas, há alegação de que a Hemobrás é uma indústria de alta complexidade e sua instalação foi um feito inédito no país. A estatal destaca que houve um cenário de restrições orçamentárias para investimentos públicos a partir de 2015.
Enquanto a estatal tenta começar a produzir medicamentos, a disputa no Senado pela aprovação da PEC do Plasma se intensifica. Governistas articulam mudanças no texto aprovado na CCJ do Senado. “Vamos analisar as emendas com cautela e ver as que possam contribuir, sem afetar o objetivo da PEC: tornar o país autossuficiente nos medicamentos feitos a partir do plasma”, diz a relatora da PEC, senadora Daniela Ribeiro (PSD-PB).
O senador Humberto Costa (PT), contrário à aprovação da matéria, ressalta que a Hemobrás vai desempenhar um papel fundamental na produção de hemoderivados para autossuficiência do país. “A Hemobrás não é um elefante branco”, alega.
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Fonte: Valor Econômico