A temperatura subiu no fim de semana, depois que o governo decidiu avançar com sugestões do varejo de alimentos para reduzir a inflação.
Num movimento incomum entre empresários do setor, o acionista e executivo da Raia Drogasil, e da família fundadora da Raia, Eugênio De Zagottis, foi à rede social, na noite de sexta-feira (24), criticar a proposta da Abras, associação de supermercados. A entidade defende a liberação da venda de medicamentos sem prescrição médica nas cadeias de alimentos.
Minutos depois, João Galassi, presidente da Abras, tratou de defender a medida no “post”.
As posições de cada lado acabaram no centro das trocas de mensagens entre líderes dos dois setores, em grupos de WhatsApp no fim de semana.
O foco da divergência, raramente pública entre os varejistas, envolve uma agenda antiga dos supermercadistas, mas que está parada na Câmara dos Deputados há anos. A sugestão segue em paralelo a outras propostas em análise pelo governo, que teme perda de popularidade de Lula pela escalada da inflação pré-ano eleitoral.
Zagottis reproduziu o vídeo do médico Drauzio Varella, veiculado na sexta-feira, e que conta com apoio da Abrafarma, a associação das farmácias. Varella critica a comercialização de remédios sem prescrição fora das farmácias, pelo risco à saúde da população.
“Os supermercados que desejam já podem comercializar medicamentos, inclusive de prescrição, em suas farmácias próprias, que possuem farmacêuticos e atendem à legislação. Porém, várias redes de supermercados vêm fechando suas farmácias porque não conseguem ser competitivas, sobretudo em preços. Portanto, o argumento de que os supermercados contribuiriam para abaixar a inflação é falacioso e ilusório”, escreveu em seu perfil no LinkedIn.
O empresário diz que as farmácias possuem custos quase todos fixos, e se a venda de remédios sem receita cair, a perda terá que ser compensada nos medicamentos tarjados, que pesam mais no bolso das famílias. Ele diz que esses medicamentos e itens de perfumaria subsidiam aqueles com prescrição, que possuem margem menor.
Ainda escreve que uma das justificativas dos supermercados, para a liberação, a de que existe um atraso regulatório no Brasil e há o consumo desses remédios nos EUA, desconsidera o fato de que, lá, isso acontece não para reduzir preços. A ideia nos EUA seria estimular a venda dos produtos sem receita, em substituição aos medicamentos tarjados, estes custeados pelo governo, explica.
Pouco depois, Galassi responde, nos comentários, que muitos supermercados já operam farmácias e cumprem requisitos legais, mostrando a capacidade do setor de operar de forma responsável. Esses pontos funcionam como uma loja fora da área dos supermercados.
Galassi ainda diz que o ponto central da proposta é ampliar o acesso aos medicamentos isentos de prescrição, “com total conformidade regulatória e supervisão farmacêutica, beneficiando ainda mais os consumidores”.
“Vocês estão propondo farmacêutico fisicamente presente em período integral e supervisão da Anvisa/Covisa, com todas as licenças necessárias?”, rebate Zagottis.
Outros comentários de Galassi, que estavam no perfil, foram deletados, apurou o Valor, e mencionavam que a venda nos supermercados acontece em vários países, não só nos EUA, e que a entidade defende turnos de farmacêuticos por lojas, seguindo as regras da Anvisa.
“João, nada contra os supermercados venderem medicamentos. Vários já o fazem nas suas próprias farmácias, com farmacêuticos EM TEMPO INTEGRAL! Para os demais basta reabrir as centenas de farmácias de supermercados que foram fechadas nos últimos anos por não serem competitivas, em preços”, disse Zagottis.
O presidente da Abras, então, responde pedindo que as farmácias atualizem melhor o médico Drauzio Varella sobre detalhes da proposta da associação.
“Presumo que ele (Varella) a desconheça, com base no conteúdo apresentado em seu vídeo”. Procurado, o médico não se manifestou até o momento.
Na discussão, foi citada, inclusive, a fiscalização da Anvisa, a agência de vigilância sanitária, e os “marketplaces”, que segundo Zagottis, venderiam Ozempic na internet sem receita.
O temor das farmácias é que o tema evolua em regime de urgência na Câmara, por meio de algum dos 11 projetos de lei, caso cresça o apoio político à medida. Pelo lado dos supermercados, o receio é que o governo engavete a proposta, pela pressão política de variadas instâncias do setor de saúde.
Segundo o CEO de uma rede de varejo regional, as farmácias vão perder margem bruta, porque sabem que os supermercados vão reduzir preços, e por isso criticam a sugestão. Já para um diretor de uma cadeia de farmácias de São Paulo, não há como as redes de alimentos garantirem repasses aos preços ao longo do tempo, e, no fim das contas, devem absorver ganhos na própria margem.
“Vai ganhar o debate quem tiver mais influência política”, diz um consultor dos dois setores, que comentou sob anonimato.
Relatório do Itaú BBA, publicado na quinta-feira (23) projeta que a venda dos itens no varejo alimentar afetaria, em termos de nível de exposição, 15% das varejistas RD, Page Menos e Panvel.
Na quinta-feira, representantes da indústria de alimentos, supermercados e farmácias estiveram em ligações ou pelos corredores da Câmara, e trataram de expor suas posições a deputados da casa, onde a proposta deve ser votada, caso o governo avance mesmo com a medida.
O Valor apurou que as farmácias estiveram com Alexandre Padilha, ministro das Relações Institucionais, que teria manifestado apoio ao setor. E ainda pediram reunião com o ministro Rui Costa, da Casa Civil, para tentar reagir à proposta que está já sob discussão.
Fonte: Valor Econômico