Quando a farmacêutica japonesa Eisai apresentou nesta semana dados confirmando que havia desenvolvido a primeira droga para retardar o declínio cognitivo em pacientes com Alzheimer, o público de uma conferência em San Francisco, nos Estados Unidos, explodiu em aplausos.
Entre os presentes estava Lars Lannfelt, cientista sueco pouco conhecido que inventou o medicamento inovador, chamado lecanemab, e ganhará uma fortuna se for aprovado e comercializado com sucesso.Medicamento apresentado esta semana pode retardar o declínio cognitivo em pacientes com Alzheimer – Adobe Stock
A BioArctic, empresa que ele fundou em 2003 com Pär Gellerfors, fechou um acordo de licenciamento da terapia com anticorpos monoclonais com a Eisai em 2007, dando-lhe direito a centenas de milhões de dólares em pagamentos únicos e royalties sobre as vendas de lecanemab.
Cerca de 55 milhões de pessoas vivem com demência em todo o mundo, e a doença de Alzheimer é responsável por até 70% desses casos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.
Analistas preveem que a droga poderá gerar vendas de até US$ 10 bilhões por ano, perspectiva que transformaria a BioArctic, assim como a Eisai e sua parceira na droga, a empresa de biotecnologia americana Biogen.
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“É bom ter dinheiro, mas não foi isso o que me motivou. Foram a ciência e a oportunidade de construir uma empresa sueca”, disse o empresário de 73 anos ao Financial Times.
“Queremos que a [BioArctic] seja uma empresa farmacêutica de pleno direito: essa é a nossa ambição.”
As ações da BioArctic, que tem apenas 75 funcionários, mais do que triplicaram de valor desde que a Eisai divulgou em setembro que o lecanemab diminuiu em 27% a taxa de declínio cognitivo em pacientes com Alzheimer em estágio inicial.Futebol ajuda a resgatar memórias perdidas com o mal de Alzheimer
A empresa listada em Estocolmo (Suécia) agora vale quase US$ 2 bilhões e está recrutando funcionários rapidamente, com a ambição de vender o medicamento nos países nórdicos, onde detém os direitos do lecanemab em cooperação com a Eisai.
O lecanemab poderá ser aprovado nos Estados Unidos já em janeiro, sob o processo de aprovação acelerada da Administração de Alimentos e Drogas (FDA). Mas obstáculos significativos permanecem, incluindo satisfazer as preocupações dos médicos sobre sua segurança e se os benefícios clínicos justificam os riscos causados pelos efeitos colaterais.
Os investidores também precisam ser convencidos de que a Eisai não repetirá os erros de sua parceira Biogen, cujas ações despencaram no ano passado após o lançamento malsucedido de um medicamento semelhante para Alzheimer, chamado aducanemab, que o grupo japonês também ajudou a desenvolver.
A Biogen inicialmente precificou o tratamento de um ano com aducanemab em US$ 56 mil, apesar das preocupações de alguns especialistas em saúde que alertaram que havia poucas evidências conclusivas de seus benefícios.
A apresentação desta semana de dados abrangentes sobre lecanemab na conferência sobre Testes Clínicos sobre Doença de Alzheimer, em San Francisco, juntamente com a publicação de um artigo revisado por pares no New England Journal of Medicine, foi um desenvolvimento positivo, disseram analistas.
“É uma cura? Não. Já chegamos lá? Não. Mas o conjunto de dados é claro e mostra um nítido benefício”, disse Evan Seigerman, analista da BMO Capital Markets.
“Com base nesses dados, estamos muito confiantes na aprovação do lecanemab e no eventual reembolso pelos Centros de Serviços Medicare e Medicaid (CMS)”, disse ele.
Uma decisão da CMS, agência federal dos EUA que administra esquemas de seguro nacional, de restringir a cobertura de seguro do aducanemab às pessoas submetidas aos ensaios clínicos prejudicou as perspectivas comerciais do medicamento.Conheça fatores de risco para demência no Brasil
Apesar da euforia em San Francisco nesta semana, alguns pesquisadores e investidores permanecem cautelosos sobre as perspectivas do lecanemab, droga que tem como alvo placas pegajosas chamadas beta-amiloide que se acumulam no cérebro. A terapia, dizem eles, produz apenas benefícios clínicos “moderados” em comparação com o placebo e pode causar sérios efeitos colaterais, incluindo hemorragias cerebrais.
A morte de dois pacientes em uso de lecanemab, que também tomavam medicamentos para afinar o sangue, levantou questões sobre se um grande número de pacientes que usam anticoagulantes poderão eventualmente ser excluídos do tratamento.
“Suspeito que a falta de eficácia clínica demonstrável significará que o lecanemab não será amplamente adotado nos sistemas de saúde em todo o mundo”, disse Robert Howard, professor de psiquiatria para idosos da University College London.
Lannfelt discorda dessa avaliação, argumentando que uma redução de 27% na taxa de declínio cognitivo é clinicamente significativa e suficiente para aprovar e lançar a droga. Ele disse que os resultados do estudo também confirmaram uma teoria controversa conhecida como hipótese amiloide, segundo a qual a doença de Alzheimer é causada principalmente pelo acúmulo de placas no cérebro.
“Está bem provado que a beta-amiloide causa a doença de Alzheimer tanto quanto o vírus HIV causa a Aids. Acho que é o mesmo nível de evidência”, afirma.
Muitos pesquisadores discordam que a beta-amiloide será comprovada como a “causa primária” da doença de Alzheimer, dizendo que é uma doença complexa com muitos fatores contribuintes.
“A beta-amiloide provavelmente contribui com cerca de 30% da doença no total, mas existem muitas outras proteínas de doenças e outras condições que podem aumentar a taxa de declínio”, disse o doutor Keith Vossell, professor de neurologia na Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Foi a descoberta por Lannfelt no início dos anos 1990 de uma mutação no gene responsável pela beta-amiloide que ajudou a estabelecer uma ligação entre as placas pegajosas e a doença de Alzheimer. Quase uma década depois, enquanto trabalhava como pesquisador no Instituto Karolinska —um órgão médico sueco—, ele descobriu outra mutação genética ligada a agregados de beta-amiloide chamados protofibrilas, estruturas semelhantes a bastonetes que são um dos principais alvos do lecanemab.
Chamada de “mutação do Ártico”, ela levou à descoberta do anticorpo monoclonal mAb158, que se tornou o lecanemab.
Folhamed
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“Fundamos a BioArctic em 2003 com base nessa ideia e conseguimos entrar em contato com a Eisai e convencê-los de que focar nas protofibrilas é uma ideia muito boa”, disse Lannfelt, que possui 33,5% das ações da BioArctic, mas controla 49,3% dos direitos de voto da empresa de biotecnologia. Ele vendeu uma pequena parte de sua participação em outubro.
Se o lecanemab se tornar um sucesso comercial, Lannfelt disse que a BioArctic usará os recursos para desenvolver medicamentos contra a doença de Parkinson e outros distúrbios do sistema nervoso central. Apesar da idade, ele disse que quer continuar trabalhando na BioArctic enquanto puder contribuir com pesquisas.
“Você não pode mudar seu estilo de vida nesta idade”, disse Lannfelt, acrescentando que comprará um carro elétrico de presente para si mesmo.
Fonte: Folha de São Paulo