Se quiser recuperar alguma credibilidade fiscal e evitar a deterioração adicional de ativos e indicadores econômicos, o governo brasileiro precisa abrir mão de abordagens anteriores pouco proativas, como postergar congelamentos de despesas. Isso acaba colocando um custo maior ao ajuste fiscal e, no fim, afeta mais os mais pobres, com inflação e juros maiores e atividade mais fraca. O alerta é do economista-chefe para Brasil do Barclays, Roberto Secemski.
A meta do governo para o resultado primário em 2025 até “está sob alcance”, segundo ele. Mas, para isso, diz, será preciso observar logo contingenciamento e acompanhar como medidas para as receitas se desenrolam. “A situação ainda inspira bastante cuidado.”
Ao Valor Secemski diz que um cenário fiscal “arrastado” e “aos trancos e barrancos” como o de 2024 não é recomendável. “É aquela coisa de não deixar a coisa explodir, mas fazer o mínimo necessário quando precisar. Só que isso estava funcionando até que não funcionou mais. Chegamos a novembro e dezembro do ano passado e vimos a coisa degringolar.”
É aquela coisa de fazer o mínimo, só que isso estava funcionando até que não funcionou mais”
Secemski pondera que uma crise de confiança levou a uma piora nos mercados desproporcional à evolução dos indicadores fiscais objetivos de curto prazo. “A falta de perspectiva de estabilização da dívida foi, digamos, trazida a valores presentes. Adiantou-se em vários anos uma crise que teria levado mais tempo para acontecer sob condições mais normais”, afirma.
Mas exatamente por isso, continua, uma atitude mais proativa do governo nesse começo de ano do que foi em 2024 faria sentido, já que “o custo da inação, hoje, é muito mais alto do que era seis meses atrás”, diz Secemski. “É justamente pela percepção de probabilidade baixa de a gente ver uma bala de prata, porque politicamente ela não existe hoje, que toda e qualquer oportunidade que haja para se construir alguma credibilidade deveria ser usada”, afirma.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Como avalia o comportamento do mercado no Brasil?
Secemski: A impressão é que a piora que a gente viu de sentimento nos últimos dois meses de 2024 não guarda proporção com a piora observada nos indicadores fiscais. No começo de 2024, o questionário pré-Copom [do Comitê de Política Monetária do Banco Central com agentes financeiros] trazia projeção de déficit para o ano de R$ 90 bilhões. Isso foi diminuindo a R$ 62 bilhões, mesmo incluindo cerca de R$ 30 bilhões extras para o Rio Grande do Sul. Outro ponto é que vamos ver números positivos nesse começo de ano; os gastos estão se reduzindo por causa do “efeito-base” – é uma foto, não o filme. Muitos clientes estrangeiros perguntaram o que aconteceu, o que está tão diferente. Mesmo a gente sabendo desde a apresentação do arcabouço, em 2023, que ele era ambicioso e que, ainda que entregasse as metas e respeitasse a regra de gasto, sozinho não estabilizaria a dívida nesse governo e mesmo tendo havido redução das metas [de primário para 2025 e 2026] em 2024, o mercado não piorou da forma como foi tudo de uma vez no fim do ano passado.
Valor: Então, o que aconteceu?
Secemski: Realmente achamos que há uma crise de confiança. A falta de perspectiva de estabilização da dívida foi, digamos, trazida a valores presentes. Adiantou-se em vários anos uma crise que teria levado mais tempo para acontecer sob condições mais normais. As fragilidades do arcabouço já eram conhecidas há mais de um ano. Seu valor, na apresentação, foi eliminar risco de cauda, de ter coisa pior. Conforme o tempo passou, a preocupação do mercado migrou da meta de primário para a regra de gastos. O governo, de certa forma, trabalhou nisso – não suficientemente, de forma estrutural -, mas trabalhou.
Valor: Como assim?
Secemski: O governo foi relativamente bem-sucedido na agenda de receita. Por mais que a gente veja, agora, uma exaustão nela, isso endereçou a questão da meta para 2024. O arcabouço tem duas pernas: as metas de primário e a regra de gasto. A sustentabilidade da regra de gastos está sendo trabalhada com o pacote aprovado no fim do ano passado. A rigor, ele não corta despesas, mas reorienta gastos, muda sua composição, diminuindo a velocidade de crescimento de despesas obrigatórias para criar espaço sob o teto para as discricionárias. É um aumento da flexibilidade dentro da regra. Dos cerca de R$ 70 bilhões que o governo fala de “redução de gastos”, vemos chance de que cerca de R$ 50 bilhões se reflitam em flexibilidade orçamentária em 2025 e 2026.
Valor: Ainda assim os preços dos ativos seguiram pressionados
Secemski: Teve toda aquela ansiedade de mais de um mês de espera [para a divulgação do pacote fiscal do fim de 2024] e o momento anticlimático do anúncio com a mistura indevida do plano de se aumentar significativamente a isenção do Imposto de Renda para quase 80% da população. Ainda que haja intenção de compensação para que a medida seja fiscalmente neutra, ela não seria neutra para atividade e inflação, porque a propensão marginal a consumir das camadas de renda menores, diretamente beneficiadas, é muito maior do que a da camada mais rica, que pagaria pela reforma. Isso pode ser importante para a política monetária neste e, sobretudo, no próximo ano, quando viria o impulso. Então, mesmo com os trabalhos nas duas pernas que sustentam o arcabouço, isso não é mais suficiente.
Valor: Por quê?
Secemski: O que fica é a preocupação permanente com a trajetória da dívida. Os investidores estrangeiros, em geral, se mostravam mais construtivos que os locais até recentemente, colocando o caso brasileiro num contexto mais amplo de deterioração fiscal global. No entanto, a volatilidade recente chacoalhou a convicção de boa parte deles, inclusive do chamado “real money” [investimentos mais ligados a gestoras, menos voláteis], que se machucou com a depreciação dos ativos locais. Atrair esse capital mais estável de volta pode levar tempo e requerer esforço maior na recuperação da credibilidade da política fiscal.
Valor: O governo vai cumprir a meta de primário de 2025?
Secemski: Hoje, na planilha, tenho déficit de 0,7% do PIB. Só que, entre o limite inferior da meta para o ano [de -0,25% do PIB] e os precatórios, que ficam de fora disso, a meta zero do governo, na prática, permite déficit de 0,6% do PIB.
Valor: Está perto
Secemski: Está sob alcance. Mas, para isso, a gente vai precisar ver contingenciamento e acompanhar como a receita se comporta, já que várias iniciativas apresentadas com o Orçamento não avançaram no Congresso. Um risco que vejo é o de desaceleração mais forçada da economia. Não estamos observando isso ainda, mas o tranco nas condições financeiras no fim de 2024 foi tamanho que acho que pode surpreender mais cedo. Isso pode afetar as receitas e, aí, vira uma dificuldade para atingir a meta. A situação ainda inspira bastante cuidado, a batalha não está ganha. No lançamento do arcabouço, o governo mostrava a dívida se estabilizando ao redor de 77% em 2026, mas o Tesouro publicou no mês passado projeções já na casa de 82%, e nós estimamos algo perto de 85%. Não basta, portanto, dizer que o arcabouco está sendo respeitado como se isso, sozinho, fosse suficiente do ponto de vista da dívida pública. E culpar a trajetória de juros nos leva a uma questão do tipo “quem veio primeiro, o ovo ou galinha”, quando a deterioração das condições financeiras tem se dado por causa da fragilidade fiscal, e não o contrário. Já vimos antes como mudanças críveis na política fiscal tem o poder de baixar os juros, por exemplo, a partir de 2017 com a aprovação do teto de gastos no ano anterior. A falta de assertividade fiscal vem impondo custos maiores.
Valor: O contingenciamento precisa ser feito, então, logo no primeiro relatório bimestral de 2025?
Secemski: Talvez não precisasse fazer tudo de uma vez, mas a questão é que estamos no meio de uma crise de confiança. O custo da inação, hoje, é muito mais alto do que era seis meses atrás. No ano passado, contingenciamentos e bloqueios demoraram a começar e, quando começaram, foram feitos com muito custo. Este ano, faz muito mais sentido o governo tentar conquistar um mínimo de credibilidade e ter uma atitude mais proativa, adiantando isso, segurando mais [os gastos] no começo, para, se for o caso, soltar depois. O mercado já trouxe para o presente consequências de um aumento de dívida que ainda nem se concluiu. Já está cobrando, hoje, as circunstâncias que seriam vigentes ao se confirmar que, em 2026, a deterioração esperada se materializou. Então, o ideal é que não se siga a mesma abordagem que a gente viu no ano passado. O problema de não se tratar da questão fiscal de forma proativa é que, quando você corre atrás do prejuízo, o esforço demandado é muito maior. Isso, invariavelmente, afeta camadas mais vulneráveis da população, seja porque a inflação e os juros ficam maiores, seja pela desaceleração da economia que resulta disso.
Valor: Qual é a perspectiva para a inflação neste ano?
Secemski: Vemos risco de alta para a projeção de 5,2%. A composição mais recente da inflação tem sido ruim, mas precisamos entender como a Petrobras vai se comportar em relação ao preço dos combustíveis. O número pode se aproximar de 6% conforme se veja um repasse mais acelerado da depreciação cambial. Além disso, a inflação de serviços nunca desacelerou o suficiente para ser consistente com a meta; alimentos e bens industriais estão em alta; vemos pressão nos itens comercializáveis; e os serviços pioram na margem. Todos os vetores apontam na direção de inflação mais pressionada.
Valor: Como o Banco Central deve responder a isso?
Secemski: Temos 15,25% de Selic ao fim do ciclo, ou seja, não vemos só os 200 pontos-base [dois pontos percentuais] que a prescrição futura do Copom antevê, mas a continuação de altas até o meio do ano. Temos essa posição de Selic em um cenário em que a inflação pode se deteriorar ainda mais e contaminar 2026, seja via inércia, seja via credibilidade. Por mais que o modelo, hoje, diga que, para trazer a inflação para a meta, a Selic precisa subir além desse nível, não está claro para nós ainda como o BC vai trabalhar essa questão que tem uma raiz eminentemente fiscal.
Valor: Isso é dominância fiscal?
Secemski: Não vejo a dominância fiscal como algo binário. Há elementos de algum grau de disfunção no mercado, mas é difícil dizer. Eu não chamo de dominância fiscal no sentido de que, para a política monetária, não há nada a ser feito e só resta ao BC cruzar os braços. É importante o aperto monetário em curso. Mas, quando a gente procura o encadeamento das respostas das variáveis econômicas, a potência para essa resposta se transmitir de fato depende do sinal fiscal e das limitações, em última instância, da classe política.
Valor: Mas existe, no horizonte do mercado, perspectiva de alguma grande mudança fiscal que ajude a reequilibrar um pouco as coisas?
Secemski: É aí que chego à minha conclusão de “muddle through”, algo como um cenário arrastado, aos trancos e barrancos. É aquela coisa de não deixar a coisa explodir, mas fazer o mínimo necessário quando precisar. Só que isso estava funcionando até que não funcionou mais. Chegamos ao fim do ano passado e vimos a coisa degringolar. O próprio ministro da Fazenda [Fernando Haddad] desencorajou a expectativa de novos pacotes. Acho que, este ano, o foco vai estar mais na execução do Orçamento e, aí, ganha importância a atitude proativa no momento do contingenciamento. É justamente pela percepção de uma probabilidade baixa de a gente ver uma bala de prata, porque politicamente ela não existe hoje, que toda oportunidade que haja para se construir alguma credibilidade seja usada. Acho difícil ver medida que reverta significativamente o quadro, mas é importante que o governo continue dando sinais.
Fonte: Valor Econômico
