Por Adriana Cotias — De São Paulo
28/08/2023 05h03 Atualizado há 3 horas
O corte de 0,50 ponto percentual para a Selic feito na reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) deste mês é piso e há justificativas para o Banco Central (BC) acelerar o passo nos próximos encontros, mas parar o ciclo com a taxa básica acima de 10% ao ano – dos 13,25% atuais. Essa é a leitura dos sócios da Kapitalo Carlos Viana, ex-diretor de Política Econômica do BC, e Carlos Woelz, fundador da gestora.
“Não nos parece que esteja feito o trabalho do ponto de vista de esfriar a economia e garantir que a inflação vá para a meta, então precisa manter a política monetária restritiva. Mas dá para recalibrar o grau de aperto”, diz Viana. Woelz acrescenta que haveria lógica em o BC fazer duas reduções de 1 ponto percentual em sequência e uma última de 0,50 ponto, para 10,75%, acima, portanto, do que chegou a ser expresso no mercado futuro, com taxas nominais abaixo de 9%.
Algo que tem inquietado esses dois Carlos é o recuo dos índices de inflação, aqui e lá fora, sem ter causado grandes danos à atividade. Para eles, há chances de uma desaceleração mais forte adiante, mas a dúvida é sobre a tolerância de governos, bancos centrais e sociedade a sacrifícios de qualquer magnitude após os pacotes fiscais e monetários durante a pandemia.
A seguir, trechos da conversa feita com o Valor, na sede da gestora, em São Paulo.
Valor: Que temas têm permeado a análise de cenários e as posições da Kapitalo?
Carlos Woelz: Não sei se tem dinheiro para ganhar no Brasil, mas não fiquei vendido em nenhum momento. Quando não gostei, fiquei zerado. Agora estou finalmente aplicado em juros no curto prazo. Houve volta do pico inflacionário globalmente, pelo efeito da política monetária restritiva, mas está demorando para bater na atividade, no Brasil e no mundo. Hoje há mais paralelos de Brasil com o mundo do que o normal. Outro tema é o ciclo fiscal, o que acontece em dois cenário: se vai ter um “soft landing” [pouso suave] global ou uma recessão.
Carlos Viana: Dando um passo atrás e falando da pandemia. Primeiro havia uma visão de que a inflação era decorrente do gargalo do choque de oferta. Até o Fed [Federal Reserve] de 2021 tinha a visão de que seria tudo transitório. E depois caminhou-se para uma visão de que tinha um componente maior de demanda e, exagerando, dos estímulos fiscal e monetário. E talvez aqui o BC brasileiro tenha sido um dos primeiros a puxar esse diagnóstico da demanda pesando mais. Olhando agora, como é que a inflação caiu nesse passado recente sem a atividade ter mostrado uma contração, dos efeitos da política monetária? Acho que precisa revisitar o passado, tem que ter elementos de oferta, não pode ser só demanda.
Woelz: A gente está vendo inflação cair, mas não pelos mecanismos de transmissão tradicionais da política monetária que é emprego, atividade e renda.
Viana: É um tema super global e é muito claro no Brasil, talvez até mais extremo do que na maioria dos países. Tem efeitos de oferta e demanda. E agora deveria ser o reverso disso, os gargalos de produção que foram resolvidos, os preço de bens e commodities caindo. No caso do Brasil teve uma safra fantástica ajudando nos preços de alimentação. Do ponto de vista prático, não dá para chamar aquele fenômeno lá atrás de transitório, e também não foi uma coisa só de demanda, porque senão, como é que a inflação caiu sem o desemprego subir, sem atividade sofrer? Isso ajuda a entender o quanto que esse aperto monetário feito até aqui é responsável por essa queda da inflação. Acho que tem um pedaço da inflação, no núcleo de serviços – a gente olha um núcleo que construímos para pegar as partes sensíveis à atividade -, essa inflação cedeu bem menos do que a cheia, ou mesmo do que os núcleos tradicionais.
Valor: Isso tem consequência…
Viana: No caso de Estados Unidos, pode ser uma inflação pouco acima de 3% versus uma meta de 2%. No Brasil, em torno de 4%, com a meta de 3%. É uma inflação mais alta porque tem um pedaço que não desinflou o suficiente, dado que a economia não esfriou o suficiente. Será que está contratada já uma desaceleração adicional da economia, dado o aperto no passado que vai fazer esse pedaço da inflação cair? Ou será que essa resiliência da economia vai perdurar?
Woelz: Tem um choque relativamente benigno porque não afeta todos os setores igualmente. Não parece uma panaceia, mas é sempre um choque que tem transmissão na percepção inflacionária das pessoas por dois canais principais. O primeiro é em relação à inércia, a inflação passada. O segundo é por meio das expectativas. Como se reverte um medo inflacionário que seis meses atrás era absurdo? A minha impressão é que, olhando para os dados de produtividade e custo de trabalho, margem das empresas, é que está num ponto inflacionário e que, no final, se não tivesse um processo de aperto monetário forte em todos os países, provavelmente teria uma situação horrorosa. Não teve nenhuma dor, teve um momento muito benigno de queda de inflação abrupta, sem nenhum tipo de sacrifício em quase nenhum país, é um fenômeno global e que se expressa de maneira muito forte no Brasil. Minha impressão é que essa sensação agradável não tem persistência porque olhando os detalhes – sou mais convicto para EUA do que para o Brasil -, acho que a economia não está num ponto de equilíbrio.
Viana: O Brasil teve dois choques benignos para inflação, que ajudam a explicar. Teve o lado da safra, um choque de oferta super positivo, que estimula a atividade de maneira desinflacionária porque aumenta a oferta e permeia renda também.
Woelz: Normalmente quando tem uma super safra, os preços despencam, não é bom para o produtor. Desta vez, teve um efeito de PIB real. Os preços caíram, mas não o suficiente para neutralizar os ganhos do produtor.
Viana: Outro fator foi corte de impostos na segunda metade do ano passado. Foi concentrado em combustíveis e nos componentes sujeitos à mudança dos ICMS, como energia elétrica. É algo que joga os preços para baixo e libera o orçamento das famílias que gastaram menos com isso. São duas coisas que ajudam a entender por que o Brasil teve essa combinação de inflação caindo com pouco custo em termos de atividade.
Valor: E o que vem adiante?
Woelz: É mais provável, mas não está 100% convencido, de que vai ter desaceleração. Há poucas evidências até agora de que o que foi feito tenha sido suficiente olhando os dados reais. Não tem nenhum tipo de evento no mercado de trabalho que pareça que vá faltar renda no futuro. O que me deixaria mais confortável de achar que vai funcionar seria os BCs ainda comprometidos de maneira explícita com a desaceleração, se garantissem que se não fosse suficiente, iriam fazer mais, de que a prioridade absoluta é a inflação. Estamos na contramão dessa ideia de que o que foi feito é suficiente. O mercado está dizendo que vai ser um pouso suave da economia global.
Viana: Se você perguntar se é provável que esse aperto acabe colocando a economia para baixo, acho que vamos responder que sim. E vou usar um termo, é uma profissão de fé, tem que surtir efeito. Mas tem um outro lado que é de monitoramento dos dados. O ritmo de contratação vem caindo, mas está muito acima do nível que gere folga no mercado de trabalho. A alta de juros foi grande, é natural ter essa expectativa. Os dados estão mostrando um processo bem lento. Olha o caso do Brasil, a queda da inflação foi a maior e talvez com um dos menores efeitos na atividade. E não foi por causa dos juros freando a economia.
Valor: Qual será o passo do BC?
Viana: A gente achava que abriria o ciclo cortando 50 [pontos básicos] e vê uma lógica nesse plano de voo. Não parece que esteja feito o trabalho do ponto de vista de esfriar a economia e garantir que a inflação vá para a meta, então precisa manter a política monetária restritiva. Poderia começar o ciclo de corte porque o cenário está melhor do que um ano atrás, dá para recalibrar. Mas precisa manter uma política monetária apertada para fazer o trabalho de desinflar, especialmente, essa parte mais sensível da atividade, que não cedeu muito. Se pegar o ponto mais baixo, o mercado chegou a negociar [taxas futuras] abaixo de 9%, o que fica muito próximo de um nível neutro, olhando de hoje. Se tem que manter a política restritiva, não dá para chegar perto disso. Faz sentido o BC ser rápido, mas parar num nível acima desse que o mercado vislumbra. A gente vê um orçamento menor, [com a taxa final] acima de 10%.
Woelz: Tanto no Brasil quanto lá fora, a gente duvida dessa desaceleração inflacionária indolor. O razoável uma recalibragem. Tem uma lógica para fazer mais rápido esse ciclo, porque seria limitado. Não acharia errado fazer duas de 100 e uma de 50. Acho que 50 de queda é piso. Imaginando 300 pontos de corte, isso dá nove meses. Esse é um BC que historicamente procura fazer os movimentos em três, quatro passos, apesar de acabar fazendo mais.
Valor: E que efeitos esperar de um freio maior na economia?
Woelz: No caso mais provável de ter uma desaceleração mais forte, vai ter um outro problema. Vai ser um cenário em que você vai andar na corda bamba, qualquer choque de preço vai gerar uma reação de preocupação com inflação desproporcional. Não acho que seria tão ruim se subisse um pouquinho o desemprego para criar um pouco de espaço e depois comer esse espaço ao longo dos anos.
Viana: Imagine que tenha uma desaceleração mais forte. As demandas da sociedade, os interesses, a sensação de que não pode ter sofrimento em dimensão nenhuma, a sociedade vai pressionar por resposta fiscal, por distribuir cheque de novo. Embora tenha contribuído para a inflação e tenha a percepção de que talvez não haja espaço fiscal ilimitado, a disposição para fazer depois da pandemia parece maior do que antes. Olhando para Estados Unidos, seria um ponto de partida muito ruim, não só em termos de dívida e perspectiva dessa dívida, mas do déficit corrente. Tendo em conta que está com a economia em absoluto pleno emprego e um fiscal muito ruim, se tentar corrigir para o estágio do ciclo, esse déficit de hoje equivale, numa situação mais normal, a 7%, 8%.
Woelz: Para o Brasil, eu acho que é pior ainda, porque é um governo que não tem tolerância para a desaceleração econômica. Se tiver uma desaceleração global, todas essas demandas vão se impor e vai existir uma vontade muito grande de fazer uma expansão fiscal contracíclica que vai ter efeitos terríveis, com um final não necessariamente conhecido. A desaceleração tem um efeito já conhecido sobre renda no Brasil, porque é um país dependente do ciclo econômico global por causa da pauta comercial. Vai ter um nível fiscal significativamente fora do equilíbrio, de um arcabouço que não ajuda a construir a confiança, com ajustes abruptos via arrecadação e transformar esse aumento em liberdade de gastar no médio prazo.
Fonte: Valor Econômico

