A energia nuclear está retornando, depois de um longo período de rejeição, provocado pelos acidentes de Tchernobil e Fukushima. Mas a construção de novos reatores está concentrada em uns poucos países da Ásia, especialmente a China. No Ocidente, há muita expectativa, muito debate, mas por enquanto quase nenhum investimento em unidades comerciais.
A geração de energia nuclear neste ano deverá ser recorde, segundo informou semana passada a Agência Internacional de Energia (AIE), no seu relatório World Energy Outlook 2025. Até 2035, a capacidade instalada de geração nuclear deve crescer em um terço. Isso tudo com reatores convencionais. Mas a AIE aponta que novas tecnologias, especialmente os pequenos reatores modulares (SMR, na sigla em inglês), devem melhorar ainda mais as perspectivas para a energia nuclear.
Esse renascimento da energia nuclear vem sendo estimulado tanto pela necessidade de transição energética (a redução do uso de combustíveis fósseis) como pelo aumento da demanda por eletricidade, devido ao crescimento da frota de carros elétricos, ao uso cada vez mais intensivo de inteligência artificial (os data centers consomem muita energia), ao crescimento econômico de países pobres, como a Índia, ao aumento da população do planeta e ao aquecimento global (que eleva o uso de ar condicionado).
A geração de energia responde por cerca de 40% das emissões globais de gases de efeito-estufa. Ou seja, é importante reduzir essas emissões. Porém, existe ao mesmo tempo a pressão do aumento do consumo de energia. Para a AIE, a descarbonização da economia global não poderá depender apenas das energias solar e eólica, que são intermitentes. O uso da energia nuclear, especialmente com tecnologias mais modernas, baratas e seguras, deve ser um complemento inevitável.
Neste momento, há 63 reatores em construção pelo mundo, segundo o relatório World Nuclear Industry Status Report, de julho. Esse número vem aumentando desde 2020, mas ainda está muito abaixo do pico do final dos anos 70, quando havia 234 reatores em construção. Desses 63, mais da metade, 32, estão na China, que é segundo maior consumidor de energia elétrica do mundo, depois dos EUA. Em seguida vêm Rússia (com 7), Índia (6), Turquia e Egito (4).
Chama a atenção nessa lista a pouca presença do Ocidente, onde há apenas três reatores sendo construídos, dois no Reino Unido e um na Eslováquia. Nenhum nos EUA, que têm o maior parque nuclear do mundo, com 94 reatores em operação, a maior parte deles construída do final dos anos 1960 até os anos 80.
Há várias explicações para isso. Talvez a principal seja a aversão do capital privado ocidental a investir em energia nuclear. Quase todas as usinas em construção pelo mundo são financiadas, controladas e operadas por empresas estatais. Já no Ocidente, os governos têm se esquivado de investir em energia nuclear, seja por restrições fiscais, pela objeção do eleitorado ou pela opção ideológica de reduzir a participação do Estado na economia.
Projetos de energia nuclear são difíceis de serem financiados, devido à grande necessidade de capital, à complexidade tecnológica, ao longo tempo de construção e de amortização, aos riscos envolvidos e à dificuldade de antecipar o preço da energia a ser gerada e o fluxo financeiro do negócio.
As últimas experiências privadas no setor nuclear no Ocidente foram traumáticas, o que corroeu a confiança dos investidores. No ano passado, entraram em operação dois reatores no Estado americano da Geórgia (usina de Vogtle). Eles levaram 15 anos para ficar prontos, ao custo de US$ 30 a US$ 36 bilhões (as estimativas variam). Tanto o prazo como o custo foram mais do que o dobro do estimado inicialmente. Os prejuízos com esse projeto contribuíram para a recuperação judicial da Westinghouse Electric, maior fabricante de reatores nucleares dos EUA (e quase levaram junto a sua ex-controladora, a japonesa Toshiba). Com isso, a usina vai gerar uma energia cara. Alguns especialistas alertaram que esses podem ter sido os últimos reatores c onvencionais construídos nos EUA.
Algo parecido ocorreu na usina de Hinkley Point C, no Reino Unido, controlada pela francesa EDF, que deveria ter sido inaugurada neste ano, mas que deve ficar pronto apenas depois de 2030. O custo também já mais que dobrou em relação ao orçamento original. Em outro caso emblemático, o governo francês teve de intervir na estatal Areva, devido aos prejuízos da empresa com a construção de reatores na Finlândia e na França.
Essa aversão do capital privado à energia nuclear poderá ser minimizada com o desenvolvimento dos reatores de quarta geração, um conjunto de novas tecnologias que devem superar os problemas das gerações anteriores, permitindo uma maior eficiência e segurança na geração e redução no volume de resíduos produzidos. Essa nova geração tende a ser construída em pequenos módulos padronizados (os SMRs), o que reduzirá significativamente os custos e o tempo de construção, minimizando assim os riscos associados às usinas.
A ausência no setor gerou ainda no Ocidente uma perda de escala (que torna os custos maiores) e um atraso tecnológico. A única usina nuclear comercial de quarta geração no mundo hoje, Shidaowan, está na China, em operação desde dezembro de 2023. Isso significa que Pequim provavelmente sairá na frente também nessa tecnologia. No Ocidente, por enquanto, só há protótipos, mas nenhum reator SMR em construção.
A ambiente regulatório e judicial no Ocidente também é desfavorável em relação à Ásia. O processo de licenciamento, especialmente nos EUA e na União Europeia, é extremamente complexo, com muitos anos de estudos de impacto ambiental, audiências públicas, recursos e revisões judiciais. Como as usinas não são padronizadas, cada uma é tratada como um projeto único, o que encarece todo o processo.
O modelo de mercado de energia liberalizado no Ocidente é outro fator que desestimula o investimento privado em usinas nucleares sem garantia estatal. Isso porque há o risco de a energia gerada ficar cara, se o projeto estourar demais o orçamento, e não ser competitiva com as outras energias, especialmente as renováveis, cujos preços despencaram. Já nos modelos asiáticos, as empresas costumam ser estatais integradas ao sistema energético, o que dilui o risco.
Além disso, os acidentes nos reatores de Tchernobil (1986) e Fukushima (2011) geraram uma ampla oposição à energia nuclear no Ocidente. Após Tchenobil, a Itália, por exemplo, baniu as usinas nucleares. Já o Japão desativou a maior parte dos seus reatores após Fukushima, que levou também a Alemanha a optar por desativar gradualmente a geração nuclear.
Mas a falta de opções de fontes de energia não poluentes e não intermitentes e a pressão das mudanças climáticas e do aumento do consumo de eletricidade estão aos poucos revertendo a rejeição do eleitorado.
Essa guinada em favor da energia nuclear já é perceptível no Ocidente. Nos EUA, o governo Trump retirou o apoio a energias renováveis, mas tenta emplacar uma retomada nuclear. Em maio, o presidente assinou um decreto para facilitar e acelerar o processo de licenciamento de novas usinas. Em agosto, o Departamento de Energia americano selecionou 11 projetos para desenvolvimento de reatores-piloto de quarta geração, com o objetivo de testá-los rapidamente e ter algo em operação comercial até 2030. O país vive uma ebulição de start-ups na área nuclear.
Na Europa, a Bélgica recuou em maio da sua decisão de encerrar a geração de energia nuclear, e outros países estão reconsiderando suas políticas. Alemanha e França aparentemente chegaram a um acordo que poderá promover uma retomada da energia nuclear com subsídios da UE.
Para a AIE, um fator que pode mudar o jogo em favor da energia nuclear no Ocidente é uma possível parceria com as gigantes de tecnologia, que poderiam financiar a construção de uma frota de reatores mais modernos. Essas empresas não querem ser acusadas de contribuir para o aquecimento global e, por isso, buscam fontes de energia seguras (do ponto de vista do fornecimento) e não poluentes. Por ora, estão fechando principalmente contratos de longo prazo de compra de energia nuclear. Mas o Google, por exemplo, já tem parcerias para a construção de SMRs.
Há pressão política para isso aconteça. Isso porque, sem adição de nova capacidade de geração, o apetite das Big Techs deixará menos energia para o restante do sistema, o que tende a elevar o preço da eletricidade, inclusive para consumidores residenciais. Isso já está acontecendo nos EUA e preocupa os governos.
O crescente clima de instabilidade geopolítica global também favorece a energia nuclear, pois estimula países com poucos recursos energéticos a apostar em usinas nucleares para reduzir a dependência de energia importada. No Japão, por exemplo, o governo estuda reativar parte do parque nuclear que foi desligado após Fukushima.
Fonte: Valor Econômico

