23/10/2023 05h00 Atualizado há 5 horas
Antes das redes sociais, os precursores da viralização eram comerciais televisivos que se tornavam muito populares, gerando expressões que acabavam se incorporando ao vernáculo. Um desses casos foi uma propaganda de vodca, de meados da década de 80, na qual ocorria um imaginário encontro entre um bebedor e si próprio, só que vindo do dia seguinte. A ideia era mostrar que o produto não produzia ressaca, ao contrário dos concorrentes. O “efeito Orloff” popularizou-se depois ao representar a sequência dos problemas econômicos de Argentina e Brasil, com as idas e vindas da Argentina se repetindo no Brasil, com alguma defasagem: “eu sou você amanhã”, dizia o bebedor vindo do futuro!1
O efeito Orloff caiu em desuso na economia, com o relativamente melhor desempenho da economia brasileira nas últimas duas décadas. Mas parece ter funcionado na política. Três anos depois da substituição de um governo de direita (Macri) por outro de esquerda na Argentina (Fernández), o mesmo ocorreu no Brasil. Ao ler este artigo, é possível que o leitor já saiba quem será o(a) próximo(a) presidente argentino. Seja qual tenha sido o resultado, é fato de que as eleições presidenciais na Argentina foram em grande medida determinadas pelo enorme fracasso econômico, cujo marco mais destacado é sem dúvida a altíssima inflação, por volta de 140% ao ano.
Será que o efeito Orloff nos assombrará mais uma vez na economia?
É sem dúvida muito triste ver a Argentina voltar a ter problemas de alta inflação, como os que tivemos – Brasil, Argentina e vários outros países latino-americanos – na segunda metade do século passado.2
O viajante que passa por Buenos Aires encontra uma cidade ainda linda, mas bem mais empobrecida, em linha com as grandes metrópoles brasileiras. Muita gente dormindo na rua. Depara-se com comida e bebida muito baratas e se encanta com os preços dos excelentes vinhos argentinos. Mas dificilmente deixará de usar a calculadora para poder entender os preços e manipular as notas de pesos. A maior nota existente é de 2000 pesos, mas é rara. A mais comum é a de 1000 pesos que vale cerca de um dólar, ou cinco reais, no câmbio paralelo (valia mil dólares na década de 1990). Isso obriga que se transporte um pacote de dinheiro para pagar refeições ou outras despesas cotidianas. A maioria dos estabelecimentos tem máquinas para contar notas, pois seria impraticável fazer a contagem à mão.
A razão da escalada inflacionária argentina é o aumento dos gastos públicos sem as receitas tributárias correspondentes
A carência de divisas fortes, sobretudo do dólar, levou o governo a criar uma miríade de taxas de câmbio distintas. Um sistema arcaico de taxas múltiplas de câmbio. Para atrair divisas, há um valor do dólar em relação ao peso diferente dependendo da operação que se faça, ou do meio de pagamento que se use (cartão de crédito ou bilhetes). Mesmo sendo economista, confesso ter me confundido algumas vezes. Que dirá uma pessoa não treinada em economia. E, como sempre se repete nas altas inflações, o ônus sobre os mais pobres é enorme e mais pesado, pois não têm formas de se defender da corrosão do poder de compra da moeda.
Os leitores de cabelos brancos haverão de lembrar de histórias semelhantes vividas aqui nos anos 80 e 90. Mas o Plano Real, que completará 30 anos ano que vem, marcou quebra duradoura (gostaria de poder dizer definitiva) com o câncer hiperinflacionário.
Foram muitas as conquistas, que nos asseguram hoje inflação sob controle, ainda que com crescimento econômico aquém do desejado. Justamente por isso, o exemplo argentino é tão importante. A razão fundamental da escalada inflacionária por lá é o aumento continuado dos gastos públicos sem as receitas tributárias correspondentes. Isso obriga que o déficit público seja financiado por expansão monetária. A principal razão para tal erro de política econômica é a falsa crença de que isso poderia dinamizar a economia.
Já por aqui, freios e contrapesos têm impedido que instintos populistas similares provoquem danos tão desastrosos à economia, com alta da inflação. São dois os principais mecanismos: restrição ao aumento excessivo dos gastos públicos e independência do BC.
O governo Lula abrandou a restrição fiscal, que já havia sido amplamente desrespeitada pelo governo Bolsonaro no afã de ganhar as eleições. Mas, mesmo o enfraquecido arcabouço fiscal em vigor vem sendo constantemente ameaçado com pedidos de exceções, isto é, ainda mais gastos.
Por outro lado, a atuação independente do BC para manter a inflação sob controle foi alvo de duríssimos ataques por parte do presidente e seu governo. Felizmente, isso parece ter passado.
Mas não devemos nos enganar, conter o crescimento excessivo dos gastos públicos para não pôr em risco a inflação e o desempenho da economia é tarefa contínua. A analogia correta para o ajuste fiscal não é uma cirurgia bariátrica para reduzir o peso, feita apenas uma vez. Ajuste fiscal é comer e beber de forma saudável e fazer exercício físico. Tem de ser feito sempre.
Torço para que os hermanos consigam resolver seus problemas econômicos mais prementes, e para que a economia argentina volte a crescer com inflação sob controle. Mas o atual estado de explosão inflacionária com recessão (PIB argentino deve cair entre 2 e 3% este ano) é lição imperdível do que não devemos fazer por aqui.
1 O comercial pode ser visto em br.video.search
2 O volume “A Monetary and Fiscal History of Latin America, 1960-2017” dá uma boa visão de conjunto do desempenho das economias latino-americanas (manifold.bfi.uchicago.edu/projects/monetary-fiscal-history-latin-america-1960-2017).
Márcio G. P. Garcia é professor titular, Cátedra Vinci Partners, departamento de Economia da PUC-Rio e pesquisador afiliado da MIT Sloan School of Management, escreve mensalmente neste espaço.
Fonte: Valor Econômico


