Por Rebecca Feng e Cao Li, Dow Jones
19/09/2023 18h12 Atualizado há 15 horas
O gigantesco setor imobiliário da China caminha para uma nova crise que ameaça ser a pior já sofrida pelo país. Há dois anos, a endividada incorporadora China Evergrande Group mergulhou na insolvência, estourando a bolha imobiliária do país e desencadeando uma sequência de inadimplências e prejuízos para as empresas. Os problemas do setor arrastaram a economia da China.
Agora, a Country Garden, maior incorporadora imobiliária privada da China, luta para sobreviver. Ao contrário da Evergrande, que foi derrubada por seus hábitos perdulários, os problemas da Country Garden advêm do afastamento dos investidores e compradores de moradias.
Suas dificuldades financeiras poderão criar problemas maiores para a economia e as autoridades do que o calote da Evergrande em 2021. A Country Garden concentrou grande parte de sua atividade nas cidades do interior e zonas industriais, que foram o motor do crescimento da China nos bons tempos. Essas áreas estão agora lidando com problemas nas finanças públicas e um êxodo acelerado de moradores, que as deixam menos resistentes às consequências da falência de uma grande incorporadora imobiliária.
A economia da China também se mostra vulnerável em muitas frentes, após um ensaio de recuperação (no começo do ano) da reabertura econômica após o fim da política rígida contra a covid-19.
Economistas preveem que os problemas do setor da construção serão outro grande golpe na confiança do consumidor e prolongarão o que já vem sendo uma longa desaceleração do setor. O setor imobiliário e outros relacionados contribuem com cerca de um quarto do PIB da China.
“Todo o setor está com problemas”, diz Kenneth Rogoff, professor de economia da Universidade Harvard, acrescentando que os problemas são particularmente graves nas médias e pequenas cidades. Anos de construção excessiva resultaram em um excesso de oferta de moradias e um ajuste no setor imobiliário será necessário, acrescenta ele. “Como evitar que a população chinesa entre em pânico, uma vez que a maior parte de sua riqueza pode entrar em colapso? Não é fácil”, diz Rogoff.
Em 30 de junho, a Country Garden estava envolvida em mais de 3 mil projetos imobiliários com milhões de casas. Ela tinha passivos equivalentes a US$ 186 bilhões, incluindo moradias que vendeu mas não entregou, dinheiro devido a fornecedores, dívidas bancárias e bônus. A companhia divulgou um prejuízo recorde para o primeiro semestre que supera US$ 7 bilhões, após amortizar o valor de alguns de seus empreendimentos imobiliários e outros ativos.
No mês passado, a incorporadora não realizou um pagamento de juros de US$ 22,5 milhões sobre dois bônus emitidos em dólar, mas reuniu dinheiro suficiente antes do fim do período de carência de 30 dias para evitar um “default”. Os credores da Country Garden na China continental concederam-lhe extensão de pagamento de algumas de suas dívidas denominadas em yuans, ajudando a incorporadora a ganhar tempo para resolver seus problemas de liquidez.
As vendas contratadas de novas moradias da Country Garden em agosto caíram 70% em relação a agosto de 2022, para o equivalente a US$ 1,1 bilhão. Se não houver uma recuperação das vendas, a incorporadora provavelmente ficará inadimplente, afirmam analistas.
A Country Garden foi fundada na década de 90 por Yeung Kwok Keung, de 68 anos, que cresceu em uma família de oito irmãos em um vilarejo da Província de Guangdong (Cantão), no sul da China. Na sede da companhia foi construída uma pequena casa feita de tijolos, com três troncos de árvore no topo das paredes sustentando um telhado de metal — uma réplica em tamanho real de seu escritório original. Uma placa próxima diz: “Sem uma China forte, a Country Garden de hoje não existiria”.
Na metade dos anos 2000, a companhia estava construindo projetos residenciais que incluíam “townhouses”, prédios de apartamentos e empreendimentos de uso misto em todo o país. Ela também possuía e operava hotéis.
Yeung se aposentou em março. Sua filha Yang Huiyan, de 41 anos, é a presidente da companhia.
A Country Garden cresceu ao longo dos anos dando atenção especial a cidades menores. As mais de 600 cidades da China são classificadas em níveis, com base em seus PIBs, tamanho da população e densidade populacional, além de outros fatores. As cidades mais ricas, como Pequim, Xangai e Shenzhen, estão no primeiro nível. As do quinto nível são consideradas as mais pobres.
A Country Garden beneficiou-se do programa de desenvolvimento da China para as cidades dos níveis mais baixos, iniciado em 2015 e que concedeu aos moradores novas residências ou dinheiro para eles comprá-las. Ela também comercializava e vendia apartamentos em áreas rurais para pessoas que viviam em cidades maiores e mais caras.
Em 2016, as vendas contratadas da incorporadora mais que dobraram e superaram os 500 bilhões de yuans, equivalentes a mais de
US$ 69 bilhões pelo câmbio atual. Isso também aconteceu em cada um dos cinco anos seguintes.
A Country Garden comprou mais de 3 mil terrenos na última década para construir casas. Eles incluíram terrenos em todas as cidades chinesas de terceiro nível, em 86% das cidades de quarto nível e em 44% das cidades do quinto nível, segundo uma análise dos registros de vendas de terrenos da incorporadora na Wind. Em comparação, a Evergrande tinha terrenos em cerca de um terço das cidades de quarto nível da China e em 12% das cidades de quinto nível.
A companhia disse a investidores que os projetos que lançou nas cidades de níveis mais baixos produziram retornos muito maiores sobre os investimentos, do que os das cidades mais ricas.
Em Shaoguan, uma cidade industrial de quarto nível de Guangdong com cerca de 3,4 milhões de habitantes, a Country Garden tinha quatro grandes empreendimentos residenciais que estavam entre os 100 maiores projetos em execução no país no ano passado. O maior deles foi projetado para ter milhares de apartamentos, um hotel, algumas pré-escolas e várias clínicas. Um apartamento de 140 metros quadrados e três dormitórios no local, recentemente foi anunciado para venda por pouco menos de US$ 100 mil.
Os governos municipais e provinciais que antes obtinham uma grande parte de suas receitas com as vendas de terrenos para a Country Garden e outras incorporadoras privadas, já sentem o impacto da queda nas transações.
Algumas províncias e cidades mais fracas estão lutando com dívidas pesadas. Em muitas cidades mais pobres, a renda das pessoas está menor e menos estável e os orçamentos e as finanças públicas locais estão apertados. As vendas de moradias e os preços caíram mais acentuadamente nas partes mais fracas do país, do que em cidades mais ricas como Pequim e Xangai.
“A Country Garden foi um sinônimo da história da urbanização e habitação no mercado de massa da China”, disseram analistas do Barclays em setembro, acrescentando que ela não tinha tantas dívidas quando a Evergrande e a expectativa geral era de que ela sobreviveria à crise imobiliária. Quando a incorporadora teve problemas para pagar dívidas no mês passado, “isso abalou a pouca confiança que restava no mercado”, acrescentaram esses analistas.
“As famílias chinesas já não veem a habitação como um investimento seguro”, diz Michelle Lam, economista do Société Générale para a China. Ela diz que as incorporadoras imobiliárias respondem hoje por cerca de um terço da venda total de casas na China.
Em 2022, o calote da Evergrande deu início a uma reação em cadeia no mercado imobiliário residencial que derrubou dezenas de outras incorporadoras, como a Sunac China, uma das três maiores de capital privado no setor.
Investidores e bancos recuaram e uma crise de confiança começou a espalhar-se pelo mercado.
Quando a queda no setor imobiliário de aprofundou, em meados de 2022 as autoridades chinesas deram um impulso à Country Garden e a outras poucas incorporadoras privadas ajudando-as a captar financiamento e respaldando suas emissões de títulos em moeda local. No quarto trimestre, contudo, os investidores já haviam voltado a ficar pessimistas e o valor dos títulos da Country Garden entrou em queda livre até chegar a níveis insustentáveis.
A Country Garden e suas unidades começaram a vender ativos para levantar dinheiro, incluindo as ações de um shopping center em Guangzhou. No fim de 2022, a China apresentou um novo plano de 16 pontos para revitalizar o mercado imobiliário. Bancos estatais se comprometeram a fornecer um grande volume de créditos a um grupo de “incorporadoras-modelo”, que incluía a Country Garden. Os investidores responderam e os preços dos títulos e ações subiram, o que permitiu à empresa voltar a levantar dinheiro em Hong Kong.
A reabertura do país também impulsionou as vendas de imóveis no país, que aumentaram durante alguns meses no início do ano e levaram executivos da Country Garden a ficarem otimistas de que o pior havia passado.
Em abril, a presidente do conselho de administração da Country Garden, Yang Huiyan, disse no relatório anual da empresa que sentia o “peso da responsabilidade” de guiar a empresa por uma transição no mercado imobiliário, saindo de uma fase de rápido crescimento rumo a um período de estabilização. A incorporadora retomou a compra de terrenos em leilões públicos, sinalizando confiança de que o pior do retrocesso havia passado.
O momento, no entanto, acabou sendo mal escolhido. No mesmo mês, as vendas de imóveis voltaram a cair, e depois continuaram em queda. Os investidores venderam ações e títulos da empresa.
Em agosto, a incorporadora comunicou aos investidores que havia incertezas sobre sua capacidade de continuar com viabilidade operacional, mas que não desistiria. A empresa também informou que sua prioridade seria concluir e entregar as casas que foram pré-vendidas. Isso poderia liberar dinheiro atualmente retido em contas de garantia e permitir o pagamento de dívidas.
Por sua vez, a China Evergrande entrou em meados de agosto com pedido de recuperação judicial pelo Capítulo 15 do código de falências de Nova York, o que a deixou mais perto de concluir uma das maiores e mais complicadas reestruturações de dívida do mundo. Suas ações voltaram a ser negociadas em 28 de agosto, após 19 meses de suspensão, e caíram 79% no primeiro dia.
Autoridades chinesas recentemente facilitaram a compra de imóveis, em mais uma tentativa de impulsionar as vendas. Aumentando subsídios e reduzindo a percentagem de entrada mínima para as compras da primeira e segunda casa das pessoas.
Isso trouxe possíveis compradores de volta aos estandes de venda de imóveis em Pequim, Xangai e outras grandes cidades. “No fim deste ciclo, as vendas nas grandes cidades se estabilizarão e até aumentarão, mas, para muitas cidades de médio e pequeno porte, o melhor cenário será aquele onde suas vendas imobiliárias não se deteriorem mais”, disse Ting Lu, economista da Nomura na China.
Mesmo que a Country Garden evite a inadimplência, seu tamanho precisará encolher bastante, segundo Yao Yu, fundador da YY Rating, empresa chinesa de análise de crédito. “A era das incorporadoras privadas gigantes chinesas acabou”, disse. (Tradução Mário Zamarian e Sabino Ahumada)
Fonte: Valor Econômico

