O chamado trade do “excepcionalismo americano” de Wall Street foi destruído nas últimas semanas, em grande parte resultado das políticas tarifárias de Donald Trump e das incertezas sobre as perspectivas econômicas e geopolíticas. O caldo alimentou uma liquidação dupla anormalmente prolongada e profunda no dólar americano e nas ações. O dólar recuou 4% contra uma cesta de seis pares até agora neste ano, enquanto o índice de blue-chips S&P 500 caiu quase 4%.
Quedas tão grandes e persistentes nas ações de Wall Street e na moeda são incomuns, com esses tipos de episódios ocorrendo apenas algumas vezes nos últimos 25 anos, de acordo com pesquisa do banco de investimentos Goldman Sachs. Os declínios marcam uma reversão em relação aos últimos anos, quando apostas de que a economia dos Estados Unidos superaria os pares desencadearam um clamor por ativos financeiros dos EUA às custas de outros grandes mercados.
“Dúvidas crescentes nas últimas semanas sobre a sustentabilidade do excepcionalismo dos EUA desencadearam uma das mais rápidas correções do mercado de ações dos EUA desde o início dos anos 1970”, destacou o Goldman Sachs aos clientes, acrescentando que “embora as correções do mercado de ações não sejam historicamente tão incomuns, uma liquidação coincidente do dólar é incomum- especialmente quando as ações são rapidamente reprecificadas”.
As recentes convulsões tanto para as ações dos EUA quanto para o dólar ocorrem enquanto a crescente guerra comercial de Trump abala os mercados financeiros globais e gera preocupações sobre a trajetória da maior economia do mundo. O Federal Reserve (Fed, banco central americano) cortou na última quarta-feira sua previsão de crescimento e elevou sua perspectiva de inflação, citando tarifas para uma parcela significativa do rebaixamento.
Até este ano, as ações de Wall Street dominavam os mercados globais – impulsionadas pelas expectativas de que a economia dos EUA continuaria a crescer em um ritmo mais rápido do que seus rivais. O índice MSCI de ações dos EUA subiu 54% de 2023 a 2024, enquanto o indicador para ações de mercados desenvolvidos globais, excluindo os EUA, subiu 17% em dólares, segundo dados do FactSet.
Imediatamente após a vitória eleitoral de Trump em novembro passado, as ações subiram ainda mais, enquanto o dólar saltou em apostas de que políticas pró-negócios impulsionariam o crescimento, enquanto as tarifas acabariam se mostrando mais comedidas do que o presidente eleito havia ameaçado. Mas essas apostas se desfizeram rapidamente desde a posse de Trump em janeiro, com o presidente lançando tarifas pesadas sobre importações de grandes parceiros comerciais, incluindo México, Canadá e China, e ameaçando mais por vir – levando os bancos de Wall Street a questionar por quanto tempo os ativos americanos podem ter desempenho superior.
“O excepcionalismo dos EUA – o tema macro comercial definidor deste ciclo – diminuiu no início do ano e está arrastando o [dólar] para baixo”, observam os estrategistas de moeda do J.P. Morgan, acrescentando que “nos tornamos totalmente pessimistas [em relação ao dólar] pela primeira vez em quatro anos”.
Os estrategistas do J.P. Morgan destacaram “entrega tarifária incerta” e “abrandamento na atividade dos EUA que é mais aguda e antecipada do que o esperado” entre os motivos para seu pessimismo em relação ao dólar, ao mesmo tempo em que apontam para um “momento decisivo na geopolítica e fiscal germano-europeia” – referindo-se a uma proposta recente do governo alemão para reforçar os gastos militares e de infraestrutura.
Até agora neste ano, o índice MSCI World, excluindo os EUA, subiu quase 9%, enquanto o indicador dos EUA do provedor do índice caiu quase 4%. Os gestores de ativos globais também se tornaram mais negativos em relação às ações dos EUA este ano, intensificando o debate sobre o futuro do excepcionalismo americano.
Scott Chan, diretor de investimentos do fundo de pensão dos professores da Califórnia, que soma US$ 353 bilhões, disse em uma reunião recente do comitê de investimentos que a “quantidade impressionante de ordens executivas” de Trump causou “uma tremenda quantidade de incerteza no mercado”. Ele acrescentou: “Os riscos potenciais aqui não têm precedentes. Eles estão mudando o mundo.”
Outros estrategistas apontaram os fluxos para ações internacionais como evidência de investidores variando ativamente seus portfólios além das fronteiras dos EUA.
“Parece que os participantes do mercado estão começando a olhar para outros lugares fora do dólar ou começando a diversificar suas participações em dólares para outros mercados e moedas”, disse Bob Michele, chefe de renda fixa global da J.P. Morgan Asset Management. “Os mercados como um todo estão nos dizendo que parece que o excepcionalismo do dólar atingiu o pico.”
Ainda assim, economistas e analistas enfatizaram que o futuro econômico dos EUA continua incerto e que eles não estavam totalmente determinados sobre a probabilidade de uma desaceleração prolongada.
O dinheiro inundou o mercado de títulos do Tesouro dos EUA este ano, em um novo sinal do status de refúgio ainda atribuído aos ativos em dólar. Mas a maior parte desses fluxos foi para títulos do governo de curto prazo em vez de Treasuries de prazo mais longo – algo que analistas disseram destacar uma falta de convicção sobre a direção do crescimento dos EUA.
Eric Winograd, economista-chefe da AllianceBernstein, disse que “os mercados estão questionando totalmente” a viabilidade do excepcionalismo americano, mas que era “prematuro concluir” que essa reputação já tenha acabado.
“Eu ainda acho que a política comercial em particular nos empurra para a América sendo prejudicada relativamente menos do que outros países”, ele acrescentou, observando que as preocupações com o crescimento até agora foram alimentadas por pesquisas de sentimento mais do que por dados concretos. “Agora temos que ver os fatos – temos que ver as evidências, e isso vai levar tempo”, ele disse.
Ainda assim, Winograd acrescentou, “a magnitude do excepcionalismo que se pode esperar provavelmente diminuiu um pouco”.
Fonte: Valor Econômico