Por Assis Moreira — De Genebra
01/06/2022 05h00 Atualizado há 9 horas
Em meio à crise alimentar global, o Brasil e a Índia apresentaram ontem propostas antagônicas envolvendo subsídios para formação de estoques públicos por razões de segurança alimentar, num duro confronto que pode ter impacto no mercado agrícola mundial.
O tema deve causar turbulências na conferência de ministros dos mais de 160 países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), dentro de duas semanas em Genebra.
De um lado, a Índia faz proposta maximalista com 75 copatrocinadores e espera que a situação de iminente crise de fome em várias partes do mundo possa impulsioná-la. Por sua vez, o Brasil apresentou sua proposta sozinho com apoio informal de países que representam pelo menos um terço das exportações agrícolas globais, buscando acomodar os africanos e outros países vulneráveis, mas deixando de fora os dois grandes países que fazem uso de subsídios agrícolas: China e Índia.
O Valor apurou que a proposta liderada pela Índia tem boa parte do G33 (grupo de países em desenvolvimento protecionistas agrícolas), do ACP (África, Caribe e Pacífico) e do Grupo Africano.
O objetivo é permitir que todos os países em desenvolvimento deem subsídios ilimitados para a formação de estoques públicos por razões de segurança, para qualquer produto e sem limitação desses programas. Não proíbe a exportação desses estoques formados para proteger suas populações. Na verdade, encoraja mesmo as exportações em situação de crise alimentar como a atual.
Na prática, a proposta desses países subverte a própria razão de ser dos estoques, porque eles não necessariamente devem ser para segurança alimentar, e sim para assegurar a disponibilidade interna de gêneros alimentares ou para sustentar preços mínimos para o produtor. Ou seja, para apoiar produtores não competitivos. Um país que quiser questionar esses programas de subsídios ilimitados, diante dos juízes da OMC, terão margem limitada para fazê-lo.
Oficialmente, pelo menos 120 países poderiam se beneficiar dessas regras. Mas alguns analistas avaliam que ela será útil basicamente para quem tem capacidade orçamentária, como a própria China e Índia, e não para Vanuatu ou Sri Lanka sem recursos, por exemplo. Sobretudo, os indianos teriam o caminho aberto para exportar parte de seus enormes estoques que, em alguns casos, estão apodrecendo. O governo indiano já anunciou que busca na OMC sinal verde para vender grãos subsidiados no mercado mundial, segundo Nova Déli para combater a inflação global.
Já a proposta do Brasil, reflete preocupação de exportadores com a utilização de uma situação de crise, como a atual, para se criar regras permanentes com efeito por décadas. Consideram que, em vez de ajudar na segurança alimentar, pode causar distorções significativas nos mercados.
A proposta brasileira limita a autorização de subsídios para formar estoques públicos de alimentos apenas aos países em desenvolvimento em situação de vulnerabilidade de segurança alimentar, como os mais pobres e os importadores líquidos de alimentos. Isso significa um universo de 71 países que poderiam se beneficiar. E exclui grandes emergentes como o próprio Brasil, China, Índia, Indonésia, África do Sul, Turquia, México, Argentina e Filipinas.
Os subsídios devem ser fornecidos para estoques de alimentos básicos tradicionais nos países. Também introduz limites ao tamanho de programas de subsídios, que dependeriam do valor da produção agrícola do país e de quanto representa nas exportações mundiais do produto em questão.
Tem igualmente cláusulas de salvaguardas e de transparência para permitir forte monitoramento e garantir que os programas não distorçam o comércio global. Por exemplo, a Tailândia é grande produtora de arroz. Mas a Índia, com produção altamente subsidiada, desloca cada vez mais o produto tailandês em outros mercados.
Pela proposta brasileira, fica explicitamente proibida a exportação dos estoques, e também não se pode transformar estoques de alimentos em ração animal. A empresa que opera os estoques não pode estar envolvida em operação de comércio exterior.
O confronto envolve vários países, mas Índia e Brasil são os que deverão dar o tom nas discussões na OMC, com visões bem diferentes. Os indianos querem turbinar produção com subsídios inclusive para ganhar mercados fora.
Para o Brasil, segurança alimentar requer a redução no volume de centenas de bilhões de dólares de subsídios agrícolas, não o contrário. Acha que um comércio aberto garante que os alimentos possam chegar mais rápido e mais barato, incluindo para países mais pobres com agricultura que não conseguem competir com aqueles que subsidiam fortemente seus produtores.
Além disso, tem o pano de fundo da concorrência entre os dois sócios do Brics – que tem Brasil e Índia, mais Rússia, China e África do Sul. A Índia passou a aumentar sua participação em mercados onde o Brasil era competitivo, como no caso do arroz no Senegal. Os indianos têm interesse em dar subsídios para formar estoques de açúcar, produto do qual já são o segundo maior exportador mundial e ameaçando o Brasil.
Os indianos não exportavam açúcar para a Indonésia, mas agora já exportam mais que o Brasil para aquele mercado. Também já superaram as vendas brasileiras do produto para os Emirados Árabes Unidos e logo devem superar as exportações para Bangladesh.
Fonte: Valor Econômico