A possibilidade de uma adoção agressiva de tarifas comerciais e as promessas de deportação em massa de imigrantes por Donald Trump, que volta hoje à presidência dos Estados Unidos, são fatores monitorados com cautela pelo mercado, mas, no longo prazo, é na política fiscal que se concentram as maiores preocupações dos economistas e investidores com o novo governo.
Com a dívida pública americana reconhecidamente em trajetória insustentável, as promessas de campanha de Trump de estender os cortes de impostos corporativos e de redução de taxas para trabalhadores soam um alerta sobre os ativos financeiros, em especial sobre o mercado de juros, já que os prêmios de risco podem aumentar diante das incertezas fiscais.
O movimento da Treasury (título do Tesouro americano) de 10 anos desde o início do ciclo de cortes de juros nos EUA chama a atenção. Desde 18 de setembro, quando o Federal Reserve (Fed, o banco central do país) reduziu os juros básicos em 0,5 ponto percentual, a taxa do papel saltou de aproximadamente 3,70% para 4,60%.
Segundo economistas, uma parte desta reprecificação dos juros está ligada à perspectiva de maior força no crescimento da economia americana, mas outra parte está ligada ao aumento no prêmio de risco do país devido ao aumento das incertezas sobre um ajuste fiscal. O CDS de seis meses – uma medida para avaliar o risco-país no curtíssimo prazo – subiu de 9 para 20 pontos no mesmo intervalo, de acordo com dados da S&P Global.
O movimento se apoia na perspectiva negativa para as contas públicas americanas. O déficit nominal dos Estados Unidos deve encerrar o ano de 2024 em 5,6% do PIB e subir a 6,1% em 2025, segundo as projeções do Escritório de Orçamento do Congresso (CBO). Ainda nas estimativas do órgão americano, a relação dívida/PIB americana deve saltar de 99% no fim de 2024 para 116% em 2034.
Os déficits são mais estruturais. Temos um desemprego de 4% e déficit de 6% do PIB”
No cenário-base do Citi, no novo governo Trump, a extensão dos cortes de impostos deve ser completamente aprovada por meio de uma resolução orçamentária chamada de reconciliação – ferramenta utilizada para acelerar e facilitar o processo legislativo quando não há uma maioria de 60 votos no Senado.
“Isso incluiria estender a Tax Cuts and Jobs Act [TCJA, lei que entrou em vigor em 2018 e reduziu impostos para empresas e indivíduos nos EUA], o que é muito caro, algo em torno de US$ 3,7 trilhões em 10 anos. Outra coisa que custa dinheiro é reduzir a alíquota do imposto corporativo. Acreditamos que a alíquota do imposto corporativo cairá novamente e o que se tem falado é de 21% para 15%. Esse é o nosso cenário-base e ainda precisamos ver como essa discussão se desenrolará”, afirma o economista-chefe para Estados Unidos do Citi, Andrew Hollenhorst.
Segundo ele, a política fiscal pode ter um efeito grande e direto sobre a economia dos EUA. “Os detalhes serão importantes, pois uma expansão dos déficits fiscais poderia aumentar o crescimento, mas possivelmente ao custo de uma inflação e taxas de juros mais altas”, afirma, em entrevista ao Valor.
Assim, segundo o banco, há um aumento no risco de uma “greve de compradores” de Treasuries de longo prazo. “As preocupações com relação a questões fiscais e de oferta podem levar a outra greve de compradores de Treasuries em 2025. A forte venda de títulos de 23 de agosto a 23 de outubro foi um exemplo clássico de greve de compradores. Na época, os compradores recuaram devido aos riscos ilimitados de alta em torno da taxa dos Fed Funds, combinados com o aumento da oferta de títulos do Tesouro, exacerbados por um rebaixamento da nota de crédito dos EUA. Vemos riscos de que a primeira lei fiscal possa ajudar a desencadear outro movimento”, aponta.
A sustentabilidade da dívida, nesse sentido, é monitorada com atenção pelo mercado, no momento em que já há sinais de enfraquecimento na demanda por títulos americanos. No leilão de Treasuries de 10 anos realizado no início de janeiro, os estrangeiros ficaram com 61,4% dos US$ 39 bilhões ofertados, frente a uma média de 71,3% nos últimos seis leilões, mesmo com a venda dos papéis à taxa de 4,680%, a maior desde 2007.
O economista-chefe do Goldman Sachs, Jan Hatzius, diz que está mais preocupado com os déficits elevados agora do que no pós-crise de 2008, quando havia muita discussão sobre os gastos do governo.
“Me parece que os déficits, naquele momento, eram muito mais os efeitos de um mercado de trabalho fraco, na esteira de uma crise de crédito. Agora estamos em uma situação muito diferente. Os déficits são mais estruturais. Temos uma taxa de desemprego de aproximadamente 4% e um déficit de aproximadamente 6% do PIB, o que é muito grande. É muito longe de onde precisamos estar para uma sustentabilidade fiscal”, diz.
Hatzius nota que o espaço político para reduzir esses déficits é complicado agora, mas também seria se houvesse uma configuração política diferente em Washington. “Não há vontade política de reduzir os déficits. O caminho para a dívida nos EUA é o de continuar crescendo na próxima década.”
As implicações desse cenário, segundo ele, podem resultar em juros de longo prazo mais elevados para carregar a dívida americana. “Há muita pesquisa que nós e outros acadêmicos fazemos sobre o impacto do aumento da relação dívida PIB no prêmio de termo (“term premium”, o prêmio exigido pelo mercado para carregar ativos financeiros até o vencimento). Elas resultam em algo próximo de 0,01 a 0,03 ponto de elevação no prêmio a cada ponto percentual de aumento no endividamento. Isso poderia gerar até 0,7 ponto de aumento no prêmio de termo com esse aumento de dívida projetado para a próxima década. Não é um patamar de crise, mas é algo notável. Pensar em 0,5 ponto de aumento no prêmio é provável.”
Assim, para Hatzius, os riscos relacionados à dívida geram o temor de que o cenário econômico possa desencadear uma crise fiscal. “Meu melhor palpite é que não teremos uma crise de fato, mas pode parecer uma situação de crise eventualmente. E aí os preços se ajustam e isso traz junto os investidores. Esse será um desafio central dos próximos cinco ou 10 anos”, afirma.
Em sabatina no Senado dos Estados Unidos na semana passada, o indicado por Trump para assumir o Departamento do Tesouro, Scott Bessent, afirmou que, se o presidente eleito dos EUA quiser levar adiante a proposta de eliminar o teto da dívida, ele trabalhará com o Congresso para que isso seja feito. “O teto da dívida é uma convenção com muitas nuances”, disse Bessent ao Comitê de Finanças do Senado dos EUA, em resposta a uma pergunta da senadora democrata Elizabeth Warren sobre se ele apoiaria sua revogação. A democrata também apoia a medida.
De acordo com Thomas Simons, economista-chefe de Estados Unidos da Jefferies, o prêmio de termo dos juros americanos de longo prazo está nos maiores níveis dos últimos dois anos, mas ainda longe das máximas vistas em períodos anteriores. Nos cálculos do banco, enquanto o “term premium” dos juros de dez anos está em torno de 0,5 ponto no momento, na crise financeira de 2008 chegou a ultrapassar o nível de 1 ponto percentual.
“Embora tenhamos atingido máximas recentes nos prêmios de termo, não há razão para pensar que não possam subir ainda mais. Supondo que a economia mantenha o ritmo atual de crescimento e que os ativos de risco continuem a ter bom desempenho, esperamos que o prêmio de termo se aproxime de 1 ponto percentual no segundo semestre deste ano. Obviamente, há muitos fatores voláteis e parte do aumento pode ser compensada por mudanças em outras variáveis, mas o ponto é que os dias de prêmios de termo zero ou negativos ficaram para trás e não é provável que retornem tão cedo”, diz.
Simons cita como exemplo as próximas negociações orçamentárias do Congresso para 2025 e avalia que, se elas indicarem algum afrouxamento adicional da política fiscal, o resultado pode ser um aumento na diferença entre os juros de 2 e 10 anos de até 0,6 ponto, independentemente do impacto que a mudança na política fiscal terá sobre a política monetária ou as expectativas de inflação.
“O resumo é que o prêmio de termo foi basicamente um fator nulo na explicação das taxas de mercado e dos spreads da curva de rendimentos durante a maior parte de 15 anos, mas parece que esses dias podem ter acabado”, afirma.
Fonte: Valor Econômico

