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Ainda que a nota atribuída pela Fitch ao crédito soberano do Brasil se mantenha em “BB”, com perspectiva estável, será necessário observar a estratégia de consolidação fiscal após as eleições do ano que vem para entender a trajetória futura do rating do país. Segundo a chefe de soberanos para Ásia e Américas da Fitch Ratings, Shelly Shetty, é preciso aguardar para avaliar se haverá reformas nas despesas obrigatórias que possam controlar seu crescimento e fortalecer a confiança dos agentes no arcabouço fiscal. Confira a entrevista a seguir:
Valor: Existe uma visão geral de que será muito difícil para o governo cumprir as metas do arcabouço fiscal em 2027, caso nada seja feito para mudar as coisas entre agora e lá. Essas mudanças precisam acontecer para que o Brasil mantenha sua nota atual?
Shelly Shetty: O rating do Brasil está de certa forma ancorado no nível BB. Nós atribuímos essa nota em junho deste ano, no nível BB, com perspectiva estável. E acredito que, apesar de muita incerteza global que estamos enfrentando agora, e apesar do fato de que, nos últimos meses, também vimos tarifas sendo impostas ao Brasil, nós acreditamos que há espaço para o país absorver esses choques.
Valor: Por quê?
Shetty: As forças relativas do Brasil continuam presentes: é uma economia grande e diversificada, com nível profundo de penetração financeira, contas externas e balanço externo sólidos, particularmente com alto nível de reservas internacionais. Ao mesmo tempo, isso é contrabalançado pelas finanças públicas, que são relativamente fracas em comparação com seus pares na mesma categoria de rating, além de um endividamento elevado e crescente. Pensamos que, apesar das incertezas globais, o ponto de partida do Brasil é relativamente bom. Além disso, observamos que o Tesouro Nacional tem sido ágil e mantém colchões de liquidez significativos para enfrentar condições de financiamento mais turbulentas. Portanto, forças e fraquezas parecem relativamente equilibradas neste momento.
Valor: Quais são as vulnerabilidades?
Shetty: Estamos plenamente conscientes de que a dívida é alta e crescente em nosso cenário-base. Quando atribuímos a nota, a dívida do Brasil já se aproximava de 80% do PIB, e deve ultrapassar isso, indo a 85–86% do PIB nos próximos anos. Ainda assim, achamos que isso cabe dentro do espaço da nota atual.
Valor: Quais são os riscos de curto e médio prazo?
Shetty: Pensamos que neste ano o governo deve atingir sua meta de déficit primário de cerca de 0,6% do PIB. Quanto ao orçamento de 2026, ainda é cedo, mas nossa projeção de crescimento para o Brasil é de 1,9% no próximo ano, enquanto o orçamento parte de 2,44%. Além disso, o orçamento inclui medidas tributárias que precisam ser aprovadas no Congresso, e vamos acompanhar se isso acontece. Finalmente, em 2026, haverá eleições. Se o crescimento continuar moderado e a disputa eleitoral for acirrada, pode haver tentação de afrouxar a disciplina fiscal, e isso também será monitorado. Já em 2027, vai depender de quem vencer. Vamos avaliar a situação e quais reformas podem ser necessárias para conter o crescimento das despesas obrigatórias e fortalecer a credibilidade das metas fiscais e do arcabouço relacionado ao teto de gastos.
Valor: Há uma sensação de que o tempo para o ajuste fiscal está se esgotando. Até quando vai a paciência das agências de rating?
Shetty: Para cada soberano, temos sensibilidades positivas e negativas de rating. Do lado negativo, se começarmos a ver dinâmicas de dívida mais explosivas, que minem a confiança na sustentabilidade da dívida no médio prazo, isso seria preocupante. Da mesma forma, se políticas econômicas passassem a prejudicar crescimento e investimentos, minando a estabilidade macroeconômica, isso seria negativo para o rating. Estamos acompanhando como o governo pretende cumprir suas metas para o próximo ano. Como disse, o Congresso precisará aprovar medidas, e vamos observar se isso ocorre. Caso contrário, qual será o plano B do governo. Mas também reconhecemos que é mais difícil implementar reformas estruturais profundas no último ano de governo, em meio a eleições. Portanto, também será importante observar a estratégia de consolidação fiscal do pós-eleição, se haverá reformas no lado das despesas obrigatórias, para controlar seu crescimento e fortalecer a confiança no arcabouço fiscal.
Valor: A avaliação hoje é de que a trajetória da dívida pública do Brasil não é explosiva?
Shetty: Estamos, sim, vendo a dívida em relação ao PIB subir em nosso cenário-base, mas isso já estava projetado. Porém, se por algum motivo houver crescimento significativamente menor, ou se o governo não cumprir suas metas primárias, com grande deterioração fiscal, ou ainda se os custos de financiamento dispararem — o que não está em nosso cenário —, aí sim as dinâmicas da dívida ficariam muito mais difíceis e desafiadoras.
Valor: Como vão monitorar as propostas dos candidatos durante o período eleitoral? Isso poderia levar a uma reavaliação do rating?
Shetty: Nós costumamos revisar as notas anualmente. A última foi em junho, então até junho do próximo ano teremos que reavaliar os fundamentos de crédito e opinar sobre crescimento e trajetória fiscal. Estaremos mais próximos das eleições de 2026, com maior clareza sobre os candidatos e talvez sobre seus planos. Mas não basta o plano, é preciso considerar a execução. Isso dependerá do resultado eleitoral: qual capital político o novo presidente terá, qual será a composição do Congresso e a disposição dele em aprovar reformas. Isso será chave para pensar na direção futura da nota.
Valor: Você mencionou questão de credibilidade relacionadas ao arcabouço fiscal. Ele precisa mudar?
Shetty: As expectativas de mercado em relação à política fiscal estão sempre questionando se o governo entregará as metas. Durante o ano, à medida que o orçamento vai sendo implementado, o mercado percebe gradualmente que a meta será cumprida. Mas, no ano seguinte, volta a duvidar e projeta déficits maiores que o do orçamento. Isso mostra que há necessidade de maior confiança na capacidade do governo de entregar suas metas. Além disso, quando 90% do orçamento já está comprometido com salários, previdência e gastos obrigatórios, sobra pouco para despesas discricionárias e investimentos. Se os gastos obrigatórios continuarem crescendo, isso reduzirá ainda mais o espaço. A questão é se veremos reformas que controlem esse crescimento dos gastos obrigatórios, eliminando essa recorrente dúvida anual sobre a capacidade do governo de cumprir seu arcabouço fiscal.
Valor: Hoje o Brasil está mais próximo de um rebaixamento ou de uma elevação de sua nota?
Shetty: Se estivéssemos pensando em mexer no rating em qualquer direção, sinalizaríamos isso com uma perspectiva positiva ou negativa. O fato de estarmos com perspectiva estável, recentemente reafirmada, significa que vemos as pressões de alta e de baixa como equilibradas no momento. Mas monitoramos constantemente os fundamentos, e, se houver pressão clara em qualquer direção, sinalizaremos com perspectiva positiva ou negativa.
Valor: Há um consenso de que o Brasil tem baixa vulnerabilidade externa. Mas hoje o FDI [investimento estrangeiro direto] já não cobre mais o déficit em conta corrente, esperado em 3,5% do PIB este ano. Isso é um risco?
Shetty: Estamos, sim, vendo deterioração da conta corrente — em 12 meses, déficit em torno de 3,5% do PIB. Mas boa parte disso ainda é financiada por FDI. Além disso, quando há câmbio flexível e reservas internacionais elevadas, olhamos também outros indicadores. E nesses, o Brasil está bem: a liquidez externa cobre mais de 8 meses de importações e o país é credor líquido externo soberano, em posição melhor que seus pares BB. Isso o torna mais resiliente a incertezas externas.
Valor: Você também é responsável pela nota dos EUA. A dívida elevada e os desenvolvimentos recentes não poderiam pesar ainda mais sobre o rating americano?
Shetty: Reafirmamos recentemente o rating dos EUA em AA+, com perspectiva estável, em agosto. Déficits elevados e dívida alta já estão incorporados em nosso cenário-base. Já rebaixamos a nota AAA dos EUA no passado, antecipando déficits persistentes e aumento da dívida. Também assumimos que os cortes de impostos da era Trump seriam prorrogados, e isso de fato ocorreu. Há, sim, medidas adicionais de corte, mas também ações planejadas do lado das despesas. Além disso, o aumento de receitas com as tarifas deve evitar deterioração fiscal maior. O que sustenta muito os EUA é o dólar, que mantém o status de moeda de reserva internacional, algo que acreditamos continuar no médio prazo.
Valor: No seu cenário para os EUA, também já estava contemplada a pressão que a administração Trump faz sobre o banco central e às ameaças à independência do Fed? Qual o tamanho da preocupação com isso?
Shetty: Existem, sim, testes aos pesos e contrapesos institucionais. Mas nossa expectativa-base é que o Fed continue independente, focado em seu duplo mandato. No contexto atual, em que de um lado a inflação pode subir com tarifas e de outro o mercado de trabalho e o consumo mostram desaquecimento, esperamos que o Fed corte juros em setembro e dezembro, 25 pontos-base em cada reunião, totalizando 50 pontos-base de redução. Esperamos que o Fed continue focado em entregar o seu mandato.
Fonte: Valor Econômico

