Para o Valor — Belo Horizonte
10/05/2023 09h21 Atualizado há 20 horas
O início do século XXI foi marcado por uma onda vermelha na América Latina. A começar pela eleição de Hugo Chávez, na Venezuela em 1999, seguido pelo chileno Ricardo Lagos em 2000, os principais países da região passaram a ser governados por políticos de esquerda.
A linha histórica seguiu com Lula (2003), o argentino Néstor Kirchner (2003), Tabaré Vázquez no Uruguai (2005), Alan García no Peru e o boliviano Evo Moralez (2006), Rafael Correa no Equador (2007) e o paraguaio Fernando Lugo (2008), além dos presidentes de nações da América Central como Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua.
Graças ao discurso centrado na população mais pobre e excluída, a mudança de foco nas políticas públicas e o sucesso de políticas de transferência de renda, tudo isso financiado pelo boom dos preços das commodities agrícolas e minerais nos mercados internacionais, essas lideranças foram capazes de fazer seus sucessores ou até mesmo mudar as regras constitucionais para se perpetuarem no poder.
A maré vermelha só começou a refluir na segunda metade da década seguinte. Os ventos passaram a soprar em direção à direita após uma conjunção de fatores que começam na deterioração da conjuntura econômica mundial e ganharam impulso com crises políticas e escândalos de corrupção que derrubaram governos e geraram oportunidade para a ascensão de lideranças conservadoras.
Para ficar apenas nos casos mais emblemáticos, a virada à direita no continente sulamericano contou com as duas passagens de Sebastián Piñera pela presidência do Chile (2010-2014 e 2018-2022) e as eleições do argentino Maurício Macri (2015-2019), de Jair Bolsonaro no Brasil (2018-2022) e do uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou (a partir de 2020).
O movimento do pêndulo em direção à direita, contudo, teve curta duração. Se olharmos o mapa político da América do Sul atualmente, com a exceção de Equador, Paraguai e Uruguai, todos os demais países estão coloridos de vermelho, tendo voltado a ser governados por políticos da esquerda.
Nesse processo emergiram novas lideranças, como Gabriel Boric no Chile e Gustavo Petro na Colômbia, e outros foram ungidos pelos caciques tradicionais, como a escolha de Alberto Fernández por Cristina Kirchner em 2019 e Luís Arce na Bolívia, eleito herdeiro político de Evo Moralez. O retorno de Lula para um terceiro mandato comandando o Brasil é o novo ato desta que foi apontada como a nova “maré rosa” na política sulamericana.
A se valer do desempenho de duas das principais estrelas desse processo, contudo, o presidente brasileiro deveria ficar preocupado.
Com uma crise econômica que tem como sinais mais flagrantes uma inflação anual superior a 100% e o esgotamento das reservas internacionais, Alberto Fernández declarou recentemente que não pretende concorrer a um novo mandato na Argentina. Para além da complicadíssima gestão das finanças do país, Fernández viu sua margem de manobra encolher depois que a coalizão de partidos que o sustenta perder a maioria no Congresso.
No caso de Boric, o choque de realidade veio na noite de 04 de setembro de 2022, quando 62% dos chilenos rechaçaram a proposta da progressista nova Constituição apoiada pelo presidente. Numa segunda tentativa, os eleitores acabaram de impor uma outra derrota ao jovem líder da esquerda chilena.
Na eleição para os 50 membros do Conselho Constituinte encarregado de apresentar uma alternativa ao texto recusado pela população, 23 das cadeiras ficaram com o Partido Republicado, do ultra-direitista José Antonio Kast, e outras 11 foram conquistadas pela coligação de centro-direita Chile Seguro. Em minoria, o bloco governista Unidad para Chile, dos partidos que apoiam Boric, conquistou apenas 16 postos.
Com mais de 3/5 dos membros do Conselho Constitucional, portanto, a direita chilena terá ampla liberdade para moldar a minuta da nova Constituição, que será submetida a novo plebiscito em 17 de dezembro.
As trajetórias de Alberto Fernández na Argentina e de Gabriel Boric no Chile demonstram que cenário internacional desfavorável, população polarizada e uma base frágil no Congresso formam uma combinação capaz de transformar a nova onda vermelha na América Latina numa marolinha.
Engajado em tantas viagens internacionais neste início de mandato, é bom Lula ficar de olho no que acontece com nossos vizinhos para também não ficar a ver navios.
Fonte: Valor Econômico

