Por Adriana Cotias — De São Paulo
06/02/2023 05h01 Atualizado há 37 minutos
As inconsistências contábeis da Americanas que levaram a companhia à recuperação judicial, a contratação da Laplace pela Light para rever a sua estrutura de capital ou da BR Partners pela CVC esboçam um 2023 mais espinhoso para os fundos de crédito privado. O cenário macro já era considerado desafiador, em meio a juros elevados na economia, com o encarecimento do custo de capital para as empresas. Agora, mais prêmio e seletividade estão na ordem do dia.
Na sucessão de eventos recentes, Americanas foi considerado o caso com maior poder de estragos porque a varejista, grande emissora de dívida, teve a sua nota de crédito cortada de uma classificação de alta qualidade para grau especulativo da noite para o dia. Balançou as cotas de fundos líquidos, que acolhem as reservas de curto prazo de empresas e famílias. Mas, passado o susto inicial, a percepção é que o setor ainda vai receber a atenção dos investidores.
“É claro que, quando ocorrem casos com empresas com presença relevante no mercado de capitais, há uma lombada no meio do caminho, aumenta a aversão a risco de alguns investidores”, afirma Ulisses Nehmi, CEO da Sparta. “Americanas, logo que surgiu o assunto, trouxe preocupação se poderia ter vários resgates, principalmente em fundos muito líquidos. A gente se preparou para isso e não aconteceu, em poucos dias os preços das debêntures em geral se ajustaram [no secundário].”
No dia 31, houve saída de R$ 22,4 bi em fundo conservador de curto prazo, que pode ter até 50% em dívida privada
Embora o fundo mais líquido da Sparta tenha resgate 30 dias após o pedido do investidor, a gestora adotou uma postura conservadora e aumentou a sua posição em caixa, também para aproveitar oportunidades no secundário. Mas os pedidos de saques ficaram aquém do que previa.
O risco para os fundos de crédito, de maneira geral, é os gestores serem forçados a vender ativos bons num momento ruim de demanda, e isso impacta todo mundo pelo efeito da atualização dos ativos a preços de mercado. “A gente esperava mais resgates na indústria e eles não vieram, e agora temos caixa para comprar e não há muito o que aproveitar porque não há vendedor desesperado, há uma certa normalidade”, diz Nehmi.
Na renda fixa, as oportunidades de compra são muito mais claras do que no mercado de ações, prossegue o gestor, porque os títulos de dívida têm uma data de vencimento, “se a empresa está em ordem, convergem para um determinado preço”.
O mercado de crédito está líquido e o que se vê é um escrutínio maior na avaliação dos ativos, diz Otávio Vieira, sócio e gestor responsável por crédito da Nest. No secundário, ele diz que no pós-Americanas viu alguma alta de taxas – e queda dos preços – em debêntures de nomes como Lojas Renner, Equatorial e Cyrela, mas nada que refletisse “algum desespero” para sair dos ativos. Comprou CDB de banco de montadora com vencimento em um mês a CDI mais 0,90% e viu letras financeiras subordinadas do Banco do Brasil subindo de 2% para 2,5%, uma sobretaxa significativa para um título perpétuo. “Agora não se encontra mais isso, mas os preços estão maiores do que no período anterior a Americanas.”
O executivo diz que a vida ficou mais difícil para companhias de varejo e para empresas com maior dificuldade de gerar caixa, que só vão ter acesso à dívida mais curta e cara. Vieira lembra que as companhias levantaram muito capital no ano passado. “Se fevereiro passar sem nenhum corpo boiando, o mercado volta à normalidade.”
A alta tensão causada pela pandemia de covid-19, em 2020, funcionou como um teste de estresse da vida real para os gestores de crédito, e hoje o mercado está mais preparado para absorver impactos como o da Americanas, diz Luis Rodrigues, que cuida desse tipo de estratégia na Principal Claritas. “Não se vê mais fundos com liquidez com caixa baixo, todos trabalham com pelo menos 30%, 40%.”
No fundo de dívida da asset, que tem resgate em 30 dias após o pedido do investidor, a exposição às debêntures da varejista era pequena, fechando janeiro com valorização de 0,83%, abaixo do CDI. Mas, depois de marcada a perda, a tendência é a carteira, que historicamente roda a 120% do CDI, se recuperar, os juros altos fazem esse trabalho.
Rodrigues diz preferir ativos “high grade”, com melhor classificação de crédito, buscando companhias com alavancagem baixa, mais resistentes a mudanças de ciclo econômico. “Ao longo de 2023, vai subir um pouco por conta do impacto do juro alto no serviço de dívida, mas ainda está em patamar muito baixo, é confortável. Estou construtivo do lado do fundamento, mas, como nos precavemos, temos evitado os setores mais cíclicos e alavancados. Não à toa, a exposição em Americanas era pequena, por ser varejo”, afirma. “A gente tem uma carteira bem alocada, o prêmio dos papéis está adequado dado o nível de risco, mas evitando setores que possam se complicar.”
O gestor cita que juros altos costumam representar sinal verde para emissores de primeira linha, e que os investidores gostam dessa “pimenta” do crédito na carteira. “Num evento como agora, pode interromper um pouco, a dinâmica perde velocidade, mas o foco vai estar na seleção. Imagino que os fundos de renda fixa com crédito de risco baixo continuarão atraindo dinheiro.”
Em janeiro, os fundos de renda fixa como um todo tiveram captação líquida de R$ 11,4 bilhões, depois de uma saída de R$ 22,4 bilhões registrada no último dia do mês, concentrada no tipo duração baixa soberano e nas carteiras de curto prazo grau de investimento. Esses portfólios podem ter até 50% em crédito privado. Aqueles classificados como crédito livre tiveram resgates de R$ 2,6 bilhões
As gestoras de crédito têm, em geral, adotado uma postura mais defensiva, preservando mais caixa e não necessariamente ficando muito alocadas, além de se concentrando em ativos de melhor qualidade e menor prazo médio, diz Luciano Brochmann, sócio da 051 Capital, que faz gestão de fundos de fundos e tem mandatos específicos com gestoras de crédito estruturado.
Na seleção das carteiras, o gestor diz privilegiar aquelas com alguma garantia real, sem entrar em debêntures só com aval ou qualquer outro tipo de ativo sem lastro. Prefere os fundos que trabalham com títulos “high yield”, com maior potencial de retorno e risco, mas com salvaguardas. Nesse conjunto, busca retornos da ordem de CDI mais 4% a 5%. Mesmo com a Selic mais alta, no rol dos estruturados a inadimplência tem se mantido sob controle, afirma o gestor. Mas é inevitável que tenha algum evento de crédito, é do jogo, diz.
Para Marcos Peixoto, gestor da recém-criada estratégia de crédito da Trígono Capital, um golpe como foi o caso Americanas naturalmente traz consequências para o mercado como um todo, mas o efeito tende a ser transitório. Ele lembra que, diferentemente do período da pandemia, em que os spreads de crédito estavam extremamente apertados, em meio a juros historicamente baixos, hoje há mais gordura para manter o apelo dos fundos dedicados. “Lá atrás, tinha menos prêmio e, para rentabilizar mais, a gestão tinha que colocar o pé no acelerador. Comprava ativos a CDI mais 0,8%, CDI mais 1%, e todo mundo ficava mais alocado e comprimia o spread. Essa mesma cesta agora garante CDI mais 2%. Já tinha prêmio, e agora vai ter mais ainda.”
Com cerca de 25% em caixa, quando o episódio com Americanas estourou, na segunda semana de janeiro, o gestor diz que foi pescar oportunidades no secundário. “O mercado, antes do evento, já era comprador no secundário, imagino que vá dar uma segurada nas emissões primárias por um tempo, mas as companhias não precisam levantar recursos agora.”
No segmento de fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDC), praticamente não houve contágio do caso Americanas, diz Vieira, da Nest, porque a cadeia de fornecedores se financiava com banco. “O problema está com os fundos de dívida, com os ‘bondholders’ lá fora e com os bancos, é briga de cachorro grande.” O gestor acrescenta que o mundo pós-pandemia é de baixa alavancagem, que as métricas saíram de uma relação dívida líquida/Ebtida de 3,4 vezes para 1,6 vez, e isso dá fôlego para que 2023 não seja um desastre.
Fonte: Valor Econômico

