Por Marta Watanabe — De São Paulo
06/07/2023 05h00 Atualizado há um dia
Propiciada principalmente por elevação de cotações internacionais, o aumento da renda gerada pelo setor de commodities explica parcela significativa do bom desempenho do PIB brasileiro desde 2020. O impacto total, direto e indireto, do choque positivo recente de renda no setor agropecuário e extrativo resultou em crescimento adicional acumulado de 8% no PIB nesse período de três anos até o primeiro trimestre de 2023, num acréscimo médio de 2,4 pontos percentuais ao ano.
A “pujança” do setor de commodities deve ainda favorecer o indicador este ano, mas em 2024 pode haver “impulso negativo de renda relevante” associado a esse setor, com impacto no PIB já do ano que vem (ver reportagem Reversão da tendência sinaliza ‘choque negativo’ para o país no próximo ano).
Os cálculos e avaliação são de Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e consultor da LCA Consultores. Ele usou análise econométrica contrafactual para estimar a trajetória recente do PIB supondo que o choque positivo de renda do setor de commodities nos últimos dois a três anos não tivesse ocorrido.
Sem essa contribuição, a estimativa do economista é de que o PIB no primeiro trimestre de 2023 estaria 1,2 ponto percentual abaixo do PIB do quarto trimestre de 2019, em vez de 6,7 pontos percentuais acima. O último trimestre de 2019 foi considerado como base 100 nessa comparação, diz, por anteceder a pandemia de covid-19 e os choques mais recentes na renda vinda das commodities. 2019 também foi o ano de aprovação da reforma tributária. “A recuperação do PIB brasileiro teria sido muito menos brilhante do que foi após o choque da pandemia.”
Borges alerta, porém, que a ajuda das commodities não deve permanecer. “O recuo de preços internacionais a partir do fim de 2022 e a valorização do câmbio, intensificada em 2023, deverão levar a choque negativo relevante na renda real gerada pelo setor de commodities nos próximos trimestres e em 2024”, diz a “Carta do Ibre” de julho, que traz artigo no qual o economista Luiz Guilherme Schymura, também pesquisador do Ibre, comenta o estudo de Borges.
Há muito tempo se nota, aponta Borges, a elevada correlação entre as variações do PIB brasileiro e as oscilações dos preços internacionais das commodities. O Brasil, lembra o economista, é grande exportador líquido de commodities agrícolas e metálicas e, desde 2016, também de petróleo, gás e derivados. “Mas o Brasil tem pouco poder de afetar o preço de várias dessas commodities. Somos tomadores de preços no mercado internacional. A ideia foi explorar um pouco essa correlação para tentar entender os canais de transmissão para o PIB brasileiro.”
Segundo o estudo de Borges, a renda total gerada pelos setores de commodities no Brasil oscilava em torno de 3% a 3,5% do PIB entre 2019 e 2020. Porém, no período que engloba 2021, 2022 e o primeiro trimestre de 2023, esse percentual foi para 7,5% a 8% do PIB.
“Mais do que dobrou a renda gerada pelo setor de commodities no Brasil.” Ele compara o desempenho com o do chamado superciclo de commodities, de 1999 a 2011, considerando datação feita na literatura internacional. “Nesse período a renda de commodities saiu de cerca de 1% do PIB e no seu auge, em 2008, chegou perto de 5% do PIB”, lembra Borges.
O choque que tivemos agora, compara, também é de cerca de quatro pontos percentuais, mas num período de um a dois anos. “Houve uma elevação muito expressiva e bastante concentrada no tempo.” Para essa análise, Borges traçou a evolução da renda gerada pelo setor de commodities aplicando o indicador de renda associada à exploração de recursos naturais renováveis e não renováveis estimado pelo Banco Mundial para diversos países.
Usando outra métrica bastante correlacionada, embora com apresentação de níveis distintos dos do Banco Mundial, Borges também traçou a evolução da renda gerada pelo setor de commodities usando dados do valor adicionado a preços básicos (VAPB) da agropecuária e da indústria extrativa mineral constantes das contas nacionais trimestrais do IBGE. Nessa análise, a renda saiu de 7% a 8% do VAPB total da economia – que corresponde ao PIB, descontados os impostos – na média de 2017 a 2019 para perto de 13,5% na média desde o fim de 2020, quando as cotações de commodities começaram a subir.
No setor agropecuário, destaca, o valor adicionado a preços básicos acumulado em quatro trimestres – a preços do primeiro trimestre de 2023 pelo deflator do PIB total -, saiu de média anual de R$ 400 bilhões a R$ 450 bilhões anuais de 2011 a 2019 para cerca de R$ 700 bilhões nos últimos três anos. O dado, explica, considera só a renda primária da agricultura e pecuária e não de toda agroindústria, que inclui a indústria de transformação de alimentos, fertilizantes e serviços, por exemplo.
No setor extrativo-mineral – basicamente petróleo, gás e minério de ferro -, o salto do valor adicionado foi maior, de cerca de R$ 250 bilhões de renda na média anual de 2018 e 2019 para quase R$ 500 bilhões nos últimos cinco ou seis trimestres.
Borges lembra que o aumento da renda do setor de commodities tem impacto direto no PIB, mas resulta também em transbordamentos indiretos, seja via consumo e investimento, seja em termos financeiros, como queda do risco país, valorização cambial e consequente criação de graus de liberdade à política monetária do país.
A análise contrafactual considerando a trajetória do PIB supondo que o choque de renda não tivesse existido mostrou, diz Borges, que o efeito multiplicador da renda gerada pela indústria extrativa é próximo da unidade e sua contribuição para o PIB vem quase completamente do efeito direto da mudança na renda. “É um resultado intuitivo, já que o setor é altamente intensivo em capital, tem poucos protagonistas e grande parte da renda é distribuída sob forma de lucro, com parcela relevante, inclusive, remetida ao exterior.”
As estimativas mostraram que se a renda real do setor extrativo desde 2020 tivesse se mantido no nível de 2017 a 2019, o PIB brasileiro no primeiro trimestre de 2023 seria 1,7% inferior ao efetivamente registrado. O pesquisador ressalta que seu modelo é válido só para a renda gerada pela extração de petróleo, gás e minérios e não para os investimentos do setor, que devem ter muitos transbordamentos favoráveis sobre a economia.
“Já no choque de renda na agropecuária há muito transbordamento, o que também faz sentido por ser atividade bem mais pulverizada, com parcela não desprezível de pequenos e médios produtores, que emprega muita mão de obra, levando a giro mais intenso do dinheiro e a impactos sucessivos na demanda.”
O estudo mostra que após o efeito direto inicial, o choque de renda na agropecuária continua a aumentar ao longo do tempo, atingindo impacto máximo cerca de cinco trimestres depois do momento inicial e com multiplicador próximo de 2, o que resulta em efeito maior no PIB. Caso a renda real do setor tivesse se mantido no nível de 2017 a 2019, diz Borges, o PIB hoje seria quase 6% inferior ao nível efetivo no começo de 2023.
A renda gerada pelos setores de commodities, avalia, aponta para um fenômeno muito mais explicado por “sorte” do que “mérito”, já que tanto no caso do setor agropecuário como no do extrativo, os volumes produzidos de 2020 a 2022 cresceram menos do que o PIB total de igual período.
“Em 2023, sim, há grande crescimento de volumes, mas de 2020 a 2022 foram os preços relativos que subiram muito, seja porque o câmbio depreciou, com mudança de patamar desde 2020, seja porque tivemos alta expressiva de cotações internacionais de commodities entre meados de 2020 até fim de 2022. Ou seja, boa parte do salto da renda aconteceu por preço e não por quantidade.”
Para quadro à frente, porém, diz Bráulio, há valorização cambial mais recente, com dólar que passou de R$ 5 a R$ 5,50 ao fim do ano passado para cerca de R$ 4,80 agora. Isso, somado, à queda de preços de commodities traz perspectiva de queda de renda de commodities, em Reais, para o resto de 2023 e também para 2024. Pelos cálculos de Borges, o valor adicionado a preços básicos do setor agropecuário, que atingiu R$ 727 bilhões em 2021 e R$ 676 bi em 2022, deverá recuar a R$ 630 bilhões em 2023 e R$ 625 bilhões em 2024, a preços do primeiro trimestre de 2023 pelo deflator do PIB total. Na indústria extrativa-mineral, o valor adicionado deverá sair de R$ 454 bilhões em 2021 e R$ 463 bilhões em 2022 a R$ 365 bilhões em 2023 e R$ 350 bilhões em 2024.
Os cálculos, diz, foram conservadores ao considerarem, entre outras premissas, dólar a R$ 5. O choque de renda negativo deve vir também da evolução de preços relativos, diz. Nas projeções de PIB, ele considera aumento no volume da agropecuária de 12,5% este ano e 2% em 2024, mas com queda de preços de 10% em 2023 e alta de apenas 2% em 2024. Já o setor extrativo mineral deve crescer em volume 4,5% e 5%, respectivamente, em 2023 e 2024, mas com queda respectiva de preços de 21% e 4%.
Para Borges, uma nova elevação na renda de commodities fica para horizonte de médio e longo prazos, puxada mais por volume do que preços. Ele cita perspectiva de que a produção de petróleo e gás no Brasil cresça quase 80% até 2031, considerando projetos em execução e reservas já conhecidas. Também lembra que a nova “corrida pelo ouro” associada à transição energética mundial vem impulsionando a demanda pelos chamados minerais críticos para eletrificação, como lítio, cobre e níquel, para os quais já há no Brasil iniciativas para início de exploração.
Fonte: Valor Econômico