Por Sérgio Tauhata — De São Paulo
30/08/2023 05h03 · Atualizado há 4 horas
O Brasil surpreendeu com um desempenho macro e fiscal melhor que o esperado, afirma a chefe de ratings soberanos para Ásia e Américas da Fitch, Shelly Shetty, em entrevista ao Valor, ao justificar a elevação da nota do país realizada em 26 de julho. No entanto, o caminho de volta ao grau de investimento ainda será longo.
Segundo a responsável pelo rating brasileiro na agência, as métricas do país atualmente estão muito abaixo das vistas em 2008, quando o Brasil foi elevado ao grau de investimento. “O PIB potencial hoje é relativamente fraco, em torno de 2% ao ano – ou um pouco abaixo, metade de 14 anos atrás”, avalia a executiva.
Shetty também comenta outra decisão recente da agência. O rebaixamento do rating dos Estados Unidos pela Fitch no início de agosto trouxe à tona uma discussão que tem sido subestimada pelos agentes econômicos: as perspectivas fiscal e de endividamento da maior potência global. “Ainda que a questão do teto da dívida nos EUA tenha sido resolvida, esperamos que os déficits fiscais continuem altos e subam ainda mais”, afirma.
A Fitch, segundo Shetty, prevê que a economia americana entre em recessão, mas de maneira superficial, a partir do quarto trimestre. “O ritmo acelerado e substancial de subida [dos juros] provavelmente levará os EUA à recessão no quarto trimestre deste ano e no primeiro trimestre do próximo ano”, afirma. Leia os principais trechos da entrevista.
Valor: A recente melhora do rating brasileiro reflete um maior otimismo com o cenário econômico?
Shelly Shetty: Atualizamos o rating do Brasil, de ‘BB-’ para ‘BB’, com perspectiva estável. Essa atualização reflete um desempenho macro e fiscal melhor do que o esperado. Nos últimos anos, vimos que o Brasil foi estressado e testado duas vezes. Houve a pandemia, além do choque de inflação global que vimos no ano passado, a guerra na Ucrânia, e, apesar desses choques, o Brasil se saiu melhor do que a gente previa. Além disso, nessa decisão, nós levamos em consideração o progresso do país, nos últimos anos, em termos de reformas econômicas. O nosso último ‘downgrade’, quando o Brasil passou de ‘BB’ para ‘BB-’, foi em 2018. Desde então, vimos inúmeras reformas, que, em nossa opinião, tornaram a economia, as finanças públicas e fiscais do Brasil mais resilientes. Estou falando, por exemplo, da reforma da previdência, mas também da trabalhista, privatizações, autonomia do Banco Central, marco do saneamento e atualização regulatória do setor de gás para atrair investimentos privados. Em uma janela de tempo ainda muito curta do novo governo, estamos vendo evidências e sinais de que continuará a trabalhar em outras reformas, onde esperamos progresso incremental. Já vimos votações sobre o novo marco fiscal, decisão da Câmara sobre reforma tributária, uma discussão que ocorre no país há vários anos ou até décadas. Nós então avaliamos que esses foram alguns aspectos positivos [para o rating].
Valor: O que o Brasil precisa para voltar ao grau de investimento?
Shetty: O Brasil está classificado como ‘duplo B’, com uma perspectiva estável. Então, o Brasil está dois degraus abaixo do grau de investimento. A perspectiva estável, de certa forma, está sinalizando que as pressões de rating positivas e negativas estão amplamente equilibradas no momento. Quais são as lacunas hoje em comparação a 2008, quando o Brasil recebeu o grau de investimento? Quando comparamos as métricas, existem várias diferenças. Por exemplo, no caso da governança, que é um fator muito importante em nossa metodologia de rating, os indicadores têm se deteriorado de forma significativa. Quando o Brasil era grau de investimento, seus indicadores de governança costumavam estar mais alinhados com os pares soberanos de mesmo grau. Quando olhamos para o perfil econômico e fiscal do Brasil hoje, em comparação a quando era grau de investimento, há também diferenças significativas. Por exemplo, o crescimento potencial do país em 2008 costumava estar em cerca de 4% ao ano. O PIB potencial hoje está substancialmente menor. Apesar de alguns desenvolvimentos macroeconômicos melhores do que o esperado desde a pandemia, ainda temos a visão de que o potencial de crescimento no Brasil é relativamente fraco, em torno de 2% ao ano – ou um pouco abaixo. O balanço fiscal também é, significativamente, mais fraco do que naquela época. Há 14 anos, os déficits fiscais estavam em torno de 3% do PIB. Hoje em dia, estamos projetando déficits fiscais para o governo geral entre 6% e 7% do PIB. Os níveis de dívida naquela época estavam em torno de 50% [do PIB]. Agora, estamos falando de 73% do PIB no ano passado. Ainda esperamos que continue a aumentar, embora a um ritmo mais lento do que esperávamos. Se olharmos para os países em ‘triplo B’ [primeiro nível do grau de investimento], a mediana do endividamento é de 55% do PIB. Os níveis de dívida e déficits fiscais do Brasil hoje são mais do que o dobro dos soberanos no piso do grau de investimento. Quais são fatores podem fazer diferença positiva no futuro? Em 2008, havia consenso político no Brasil para permanecer no caminho da estabilidade macroeconômica e fiscal. Um dos principais fatores para o país recuperar o grau de investimento é a recuperação na governança. Isso significa aumentar a confiança de que políticas que fortalecem a estabilidade macroeconômica e fiscal no Brasil continuariam sendo seguidas independentemente de quem vencesse as eleições. Outro fator para o país voltar ao grau de investimento seria um maior dinamismo macroeconômico, com maior investimento e produtividade. Talvez haja dividendos que venham das reformas já implementadas ou das que estão em discussão no Congresso. Se observarmos melhora no perfil fiscal, com cumprimento consistente de metas fiscais, superávits primários e isso levar a dinâmica onde a dívida em relação ao PIB começa a cair, o cenário pode apoiar o Brasil a obter classificação mais alta.
“Níveis de dívida e déficits do Brasil são mais que o dobro de países no grau de investimento” — Shelly Shetty
Valor: A senhora enxerga riscos para o Brasil diante da deterioração econômica na Argentina?
Shetty: Não vejo riscos de contágio. Os problemas da Argentina são bem conhecidos e diagnosticados. Nós vimos o país entrar em inadimplência recentemente e isso teve repercussões muito limitadas para o Brasil. Os desequilíbrios macroeconômicos da Argentina são altos e muito enraizados. E o caminho do ajuste lá, independentemente do vencedor das eleições presidenciais, será complicado e difícil. As perspectivas para o Brasil estão em outro patamar: Esperamos um crescimento do PIB superior a 2% e uma queda da inflação para cerca de 5% até o fim 2023. Nossas projeções incluem déficit em conta corrente abaixo de 2% do PIB. O Brasil mantém um nível de reservas internacionais muito robusto, acima de US$ 300 bilhões.
Valor: Qual o cenário base da Fitch para a economia dos EUA?
Shetty: Vemos a economia global se comportando melhor do que prevíamos. Mas ainda avaliamos que a economia americana vai entrar em recessão. Temos visto maior resiliência dos EUA, principalmente devido ao mercado de trabalho, que está indo bem, com desemprego baixo. Também temos visto crescimento de renda e salários. Houve um acúmulo substancial de colchões de poupança, que as famílias têm usado ao longo do tempo. Alguns desses fatores podem ser transitórios. Ainda achamos que o aperto mais amplo das condições de financiamento, com ritmo acelerado e substancial de subida [dos juros], provavelmente levará os EUA à recessão no quarto trimestre deste ano e no primeiro trimestre do próximo ano. Porém, esperamos uma recessão muito superficial.
Valor: A Fitch rebaixou os EUA. Foi apenas devido ao impasse sobre o teto de endividamento?
Shetty: Em nossa recente ação de rating nos EUA, rebaixamos a nota americana de ‘triplo A’ para duplo ‘A+’ com perspectiva estável. Nós tínhamos nos colocado em vigilância negativa, no final de maio, mas isso foi durante o auge do impasse sobre o teto da dívida. Naquele momento, a secretária do Tesouro americano [Janet Yellen] havia anunciado que o país estava se aproximando rapidamente da ‘data X’, após a qual os EUA poderiam ter perdido pagamentos de algumas obrigações. Mas, uma vez que o país tenha superado o impasse, essa vigilância negativa não está mais em vigor. E a perspectiva [outlook] se mantém em ‘estável’. A questão do teto da dívida nos EUA foi resolvida, com suspensão até janeiro de 2025. Mas logo depois fizemos uma declaração pública afirmando que havia um problema de longo prazo nas finanças públicas e na trajetória da dívida.
Valor: Quais as principais razões para o rebaixamento americano?
Shetty: Em primeiro lugar, esperamos que os déficits fiscais continuem altos e subam. No caso dos EUA, estamos vendo a dívida sobre PIB continuando a subir. Já aumentou bastante nos últimos anos, apesar de alguma queda após a pandemia. Mas, mais importante, nosso cenário base prevê um aumento contínuo do peso da dívida. Também vimos erosão constante da governança nos EUA nos últimos anos. Ao olharmos para os indicadores de governança do Banco Mundial, eles se deterioraram por bastante tempo nos últimos anos. E achamos que parte do debate [do teto de endividamento] refletiu a polarização política. Esse ambiente político não é propício para que os EUA sejam capazes de avançar e progredir em algumas das questões fiscais estruturais que vão enfrentar nos próximos anos. Como resultado de um nível mais alto de carga de dívida – duas vezes e meia ou quase três vezes a mediana [do grupo de países com rating ‘AAA’] -, o endividamento só vai continuar a crescer. Os pagamentos de juros também estão crescendo. Portanto, essas são tendências negativas de longo prazo nos EUA, e o ambiente político agora não tem sido muito propício para abordar essas questões. Com o ciclo eleitoral chegando nos EUA [em 2024], também não esperamos nenhuma reforma significativa no curto prazo.
Valor: O ciclo eleitoral pode pressionar o rating americano?
Shetty: Achamos que é muito cedo para pensar sobre o ciclo eleitoral nos EUA. A maneira como avaliamos esses cenários está nas tendências dentro de uma perspectiva de tempo muito longo. Já tomamos a ação de classificação [em relação aos EUA], refletindo nossa visão de que a governança está se desgastando.
Valor: Qual o cenário base para os juros nos EUA?
Shetty: Alguns números da inflação, especialmente os núcleos, estão altos. Mas, pelo menos, começaram a mostrar queda. Continuamos a acreditar que o Fed fará mais uma elevação de 0,25 ponto. Também pensamos que o BC dos EUA não vai poder cortar as taxas neste ano, então estamos falando de juro elevado por mais tempo.
Valor: A China passou a representar uma preocupação para o crescimento global?
Shetty: A China representa uma preocupação atualmente. Acreditamos que o crescimento da China será de 5,6% neste ano, sustentado pelo consumo, principalmente, com a reabertura da economia das restrições aplicadas durante o período da covid-19. Ao mesmo tempo, o crescimento da China também será prejudicado pela desaceleração das exportações, bem como pela fraqueza do setor imobiliário. Achamos que esses problemas gêmeos vão pesar na recuperação econômica no país asiático.
Fonte: Valor Econômico
