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Aprovada pelo Congresso e à espera da sanção presidencial, a Medida Provisória 1304 marca uma ampla e polêmica reforma no setor elétrico. O texto final atendeu a demandas de empresas do setor, como compensações para usinas renováveis que sofrem cortes de produção, deu incentivos ao armazenamento de energia, deixou de fora a cobrança de encargos sobre novos sistemas solares de pequeno porte, estendeu contratos de termelétricas a carvão no Sul, entre outros pontos.
Mas, ao mesmo tempo em que promete modernizar o setor e abrir o mercado de energia a todos os consumidores, a MP levanta preocupações sobre seus impactos na tarifa. Medidas como o repasse de compensações às empresas via encargos pagos pelos consumidores e a manutenção de subsídios considerados desnecessários indicam que, na busca pela modicidade tarifária, os custos da reforma podem acabar socializados.
Empresas como Engie, Alupar, Auren, entre outras, reportaram prejuízos em seus balanços por serem impedidas de gerar energia. A MP atendeu o pleito das companhias que pediam compensações pelo chamado “curtailment”, que é quando usinas solares e eólicas têm sua produção cortada pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) por falta de demanda ou problemas de transmissão.
A MP determinou o ressarcimento retroativo a partir de setembro de 2023 para usinas renováveis que tiveram a produção cortada pelo ONS. A compensação será paga via Encargos de Serviço do Sistema (ESS), bancados pelos consumidores. Em troca, as empresas devem desistir de ações judiciais. Enquanto as companhias negam o impacto tarifário, Aneel e especialistas discordam.
Karin Luchesi, CEO da Elera Renováveis, empresa controlada pela gestora canadense Brookfield, entende que foi um passo importante, já que as companhias tinham receio de que a perda de receita pudesse levar ao colapso financeiro. A empresa foi uma das que judicializaram o caso e entende que um acordo pacífica a situação.
“O que a gente entendia da nossa interpretação da lei é ressarcimento de 100%. Mas o setor, com o aceite do que está na medida convertida em lei, abriu mão dos cortes energéticos [por falta de demanda de energia]”, diz. “Não haverá impacto tarifário porque os recursos são para fazer frente a isso”, diz.
Diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa discorda e reforça que o consumidor vai pagar a conta. Ele diz que, se solicitada, a agência reguladora vai apresentar os cálculos de impactos ao governo, mas ressaltou que a decisão sobre eventuais vetos cabe ao Executivo.
“Não acho que tenha sido uma resposta do Congresso. Foi pleito das empresas junto ao Congresso, porque, certamente, o que nós estamos discutindo, o que foi discutido no ministério, era procurando adequação técnica, uma motivação técnica, pois trabalhamos no aspecto infralegal. E o Congresso elaborou uma legislação dando resposta política ao caso”, diz.
Segundo cálculos da Volt Robotics, o valor das compensações chega a R$ 2,8 bilhões. Um dos trechos da MP permite que esse montante seja pago com recursos de um fundo do setor usado como reserva de segurança. Como o fundo tem hoje cerca de R$ 3,8 bilhões disponíveis, o pagamento às empresas seria possível sem aumento nas tarifas. “O consumidor vai ter redução tarifária menor, mas ele não vai ter aumento. () A tarifa poderia cair mais, mas ela vai cair menos”, diz Donato Filho, CEO da consultoria.
O presidente da Frente Nacional dos Consumidores, Luiz Eduardo Barata, discorda da tese, já que em vez de baratear a tarifa, a proposta mantém a conta do brasileiro em patamar alto e usa o dinheiro para cobrir as compensações.
Para Barata, o pacote aprovado beneficia empresas que há anos recebem pesados subsídios sem necessidade, que cresceram impulsionadas por incentivos públicos e contribuíram para uma sobreoferta de energia que o país não consegue absorver. Ele destaca que essas mesmas empresas agora transferem para o consumidor a obrigação de pagar por uma energia que não foi gerada nem consumida.
Ao mesmo tempo em que promete modernizar o setor, a MP levanta preocupações sobre impactos para o consumidor
Se sancionada a lei, o Ministério de Minas e Energia (MME) vai definir o que são cortes de energia por falta de demanda ou por problemas em linhas de transmissão. Daí que pode surgir um novo impasse, já que as empresas podem não aceitar a conta que a pasta trouxer e a briga judicial continuar.
Elbia Gannoum, presidente executiva da Abeeólica, entidade que representa as empresas do setor eólico, diz que as companhias devem repactuar com as novas condições. A dirigente entende que o eventual custo que o sistema venha ter, é um custo de oportunidade vantajoso ao consumidor, porque garante segurança jurídica, destrava investimentos e evita que prejuízos se transformem em ações judiciais ainda mais onerosas ao sistema.
“O problema do passado está resolvido e vamos discutir o futuro. Há soluções para reduzir os cortes por falta de demanda colocando mais baterias, trazendo mais demanda de energia, criando tarifas dinâmicas, dando sinais de preço para o consumo, ou seja, temos como gerenciar o futuro”, diz.
Do ponto de vista jurídico, o sócio do escritório Furcolin Mitidieri Advogados, Felipe Furcolin, diz que o mercado ainda está tentando entender e medir as consequências de todas essas mudanças. Segundo ele, a redação sobre o ressarcimento para o futuro pelos cortes abre uma série de questões.
Entre os pontos centrais da MP está a abertura do mercado livre de energia para todos os consumidores, incluindo residenciais, mas nem todos os efeitos positivos da nova legislação são certos. A principal promessa está na limitação dos gastos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo bancado pelos consumidores para subsidiar políticas públicas.
O ex-diretor da Aneel e colunista do Valor, Edvaldo Santana, observa que o Congresso, em vez de reger com rigor técnico a reforma elétrica, preferiu “dançar a valsa do lobby”. Ele lembra ainda que foi estabelecido um teto da CDE para conter a escalada da conta de luz nos próximos anos. No entanto, os subsídios permanecem intocados e sem horizonte definido para revisão ou fim de alguns privilégios. (ver gráfico acima).
“A MP só tratou do teto da CDE, embora a versão original da medida anterior, a MP 1300, tentasse limitar alguns subsídios, como os do mercado livre. Desde 2004, jamais houve uma medida ou decreto do executivo que fizesse alguma proposta para reduzir subsídios. Todas, desde então, eram só para aumentar as subvenções”, afirma Santana.
Apesar das críticas de especialistas, o texto também manteve intocado os subsídios para a geração distribuída, como os sistemas solares residenciais. Uma proposta que previa a cobrança de R$ 20 a cada 100 kWh injetados na rede por novos projetos foi retirada do texto final. A exclusão foi interpretada como uma vitória do lobby do setor, após forte pressão de empresários que chegaram a confrontar diretamente o relator da medida, senador Eduardo Braga (MDB-AM), para barrar a cobrança.
Para o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, os lobbies venceram o interesse público e alertou que o avanço desordenado da geração solar sem baterias pode levar o sistema ao colapso, já que o ONS não tem como gerenciar a energia que entra de forma descentralizada na rede.
Dados da Aneel mostram que em 2025 o setor foi o que mais recebeu subsídios, somando quase R$ 13 bilhões. Em termos comparativos, a tarifa social, para consumidores de baixa renda, recebeu apenas R$ 4 bilhões.
O presidente da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), Carlos Evangelista, avalia que o desfecho foi negativo para o setor e critica o fato de uma reforma tão ampla ter sido conduzida por medida provisória. Para ele, é infundada a alegação de que a geração distribuída cresce desordenadamente. “Vimos troca de farpas, ameaças iminentes e diretas sobre marcos regulatórios já institucionalizados e direitos dos cidadãos e todas as fontes querendo ser contratadas e poucas querendo ser competitivas”, afirma. “A MP foi uma campanha pré-eleitoral para 2026”, diz Evangelista.
Outros dispositivos polêmicos também foram incluídos, como a prorrogação de contratos de usinas a carvão até 2040, que favorece a empresa Âmbar, da J&F, e a Electra, o que levantou questionamentos de ambientalistas e ocorreu justamente no mês em que o Brasil sedia a COP30, conferência global do clima. Procuradas, as empresas não quiseram se manifestar.
A medida também cria uma reserva de mercado para usinas a biomassa que só produzem no período da safra (de abril a outubro) e pequenas hidrelétricas (PCHs), o que limita a competição nos próximos leilões. Grandes consumidores de energia, por meio da associação Abrace, especialistas e até integrantes do governo pedem que o Planalto barre pontos incluídos pelo Congresso que vão na contramão da transição energética e da modicidade tarifária.
Fonte: Valor Econômico

