Por Fernanda Guimarães e Mônica Scaramuzzo — De São Paulo
27/06/2023 05h02 Atualizado há 3 horas
Um quinto das cerca de 90 empresas que tentaram abrir capital na bolsa brasileira entre 2021 e 2022 e tiveram seus planos frustrados está em processo de reestruturação de dívidas, segundo levantamento realizado pelo Valor. Esse retrato reflete um cenário de aperto monetário que fez desandar a situação financeira de muitas empresas, contexto piorado diante de um mercado de capitais que se tornou muito mais restrito neste ano, não só em renda variável, mas também em de renda fixa, com os eventos de corporativos de Americanas e Light.
Dentre as empresas que buscaram capital na bolsa, mas não conseguiram ir adiante, estão nomes como a varejista de móveis e itens de decoração Tok&Stok, a cimenteira InterCement, a indústria química Unigel e a Rio Branco Alimentos, dona da marca Pif Paf. Todos esses são exemplos de companhias que agora estão com processos formais de reestruturação de dívidas. Um caso mais extremo é o da a Método Engenharia, que não conseguiu estrear na B3 e, diante de dificuldades financeiras, entrou em recuperação judicial.
Levantamento feito pelo Valor mostra que ao menos 16 empresas das 86 empresas que fizeram registro de pedido de abertura de capital (IPO, na sigla em inglês), mas não seguiram em frente com esses processos e pediram cancelamento das operações, fizeram ou estão conduzindo nos últimos meses movimentos para estruturar capital, venda ou fusão de ativos. Juntas, essas companhias acumulam uma dívida líquida de R$ 28 bilhões.
“Já era esperado que muitas empresas que desistiram de fazer IPO pudessem estar enfrentando dificuldades financeiras neste momento”, diz Douglas Bassi, cofundador da consultoria de reestruturação Virtus BR. O executivo lembra que o cenário de taxa de juros era totalmente diferente há três anos. “Para parte dessas empresas que buscava levantar dinheiro na bolsa, a emissão de ações era uma opção mais barata que buscar crédito no mercado.”
Muitas dessas empresas planejavam tanto uma emissão primária de ações – aquela em que os recursos vão para o caixa – quanto secundária, para venda de ações pertencentes aos acionistas já existentes.
Olhando em retrospectiva, Roberto Zarour, responsável pela área de reestruturação do escritório Lefosse, analisa que as companhias que tinham dívidas e buscaram a alternativa do mercado de capitais seguiram três caminhos distintos naquele momento. Uma parte conseguiu acessar a bolsa e ganhou, com isso, fôlego financeiro. No segundo grupo estão as empresas que não seguiram com o IPO porque não aceitaram dar desconto em relação ao preço pretendido diante de pressão de investidores. Uma terceira leva, por fim, perdeu a janela e teve de retirar os planos da oferta. “Um grupo já estava buscando readequar sua estrutura de dívidas e enxergou de forma legítima uma capitalização via oferta de ações.”
Parte das companhias que desistiram do IPO, segundo Zarour, está com vencimentos pesados no biênio de 2023 e 2024, como resultado da flexibilidade de pagamentos oferecida pelos bancos durante o período mais agudo da pandemia. “Mas a conta chegou e, com isso, parte dessas empresas precisou buscar processos formais de reestruturação”, afirma.
Os anos de 2020 e 2021 foram de recorde no mercado de emissões de ações no Brasil, um efeito colateral de um período de alta liquidez nos mercados globais. Nos anos da pandemia, os bancos centrais ao redor do mundo despejaram dólares na economia para mitigar os efeitos econômicos da covid-19.
Nesse período, companhias de todos os portes aproveitaram para captar recursos na bolsa de valores, enquanto os investidores demandando novas ações em um contexto de juros baixíssimos em todo o mundo, inclusive no Brasil. Algumas dessas empresas já estavam precisando ajustar seus balanços e tinham a expectativa, assim, de buscar recursos por meio de ofertas de ações.
Em 2022, no entanto, o mercado começou a ser sinais de mais volatilidade e o processo de alta dos juros – que levou a taxa Selic de 2% para 13,75% ao ano – determinou o fechamento da janela para novos IPOs. Há quase dois anos, a B3 não é palco de nenhuma estreia. Com isso, muitas empresas acabaram não conseguindo emplacar suas ofertas, precisando buscar alternativas. Para piorar, o mercado de crédito privado tornou-se muito mais restritivo neste ano, reduzindo ainda mais o leque de opções.
O sócio responsável pela área de mercado de capitais do escritório Pinheiro Neto, Guilherme Monteiro, observa que o fato de diversas empresas terem desistido de seus planos de IPO e estarem em busca de reestruturação de dívidas agora não significa que já encontrassem em situação problemática quando fizeram o registro de oferta Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
“Acho que não existia ali ninguém na fila com um problema gravíssimo”, diz Monteiro. Segundo o especialista, algumas empresas que estavam na fila para abertura de capital tinham por trás a busca de ajuste de balanço, mas na maioria combinado com planos de crescimento.
Duas grandes empresas de saneamento que tentaram ir à bolsa na pandemia estão altamente alavancadas – a relação dívida liquida/Ebitda da BRK Ambiental é de 7,3 vezes, enquanto a da Iguá chega a 8 vezes, de acordo com o último balanço dessas companhias. Ambas estão agora em busca de alternativas para estruturar seus balanços. Procurada, a BRK não comentou. A Iguá não se manifestou até o fechamento desta edição.
Na leitura de Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores, as empresas ligadas ao varejo, de forma geral, apresentaram problemas pós-pandemia importantes. “O custo operacional dessas empresas aumentou muito nesse período em que muitas lojas ficaram fechadas”, afirma.
De acordo com Tozzi, somado a essa “ressaca” veio o efeito Americanas, que deixou o mercado financeiro receoso e na espera dos esclarecimentos para investimentos e novos créditos.
Várias movimentações têm ocorrido no setor. O grupo BIG, por exemplo, foi comprado pelo Carrefour. No ano passado, a Casa & Video se associou à Le Biscuit. Outras empresas de varejo continuam buscando alternativas, seja por meio da venda de ativos ou reestruturação, para se manterem vivas no mercado. A bolsa ainda é uma opção para algumas delas. De acordo com fontes a par do assunto, a Farmácia Nissei não abortou os planos de IPO e espera o melhor momento.
“Temos visto recentemente o mercado de crédito e o de capitais melhorando, mas os bancos ainda estão seletivos”, diz Bassi, da consultoria de Virtus BR.
Segundo fontes próximas a alguns desses processos de reestruturação, há casos de empresas que queriam abrir capital e se alavacaram nos últimos anos para seguir crescendo, apostando que a situação de mercado de não seria alterada e que os juros seguiriam baixos, o que não aconteceu. “Muitas empresas também confiaram de que a janela de IPOs se reabriria e se endividaram”, afirma uma das fontes, que preferiu não ser identificada. Esse seria o caso, por exemplo, da Pif Paf, que colocou ativos à venda para adequar o balanço. A companhia não comentou.
Outro obstáculo para as companhias que flertaram com um IPO nos últimos anos é o porte das operações que tem sido exigido agora. Muitas delas não teriam tamanho para fazer uma oferta de ações acima de R$ 1,5 bilhão, valor que banqueiros de investimento consideram o mínimo para atrair fundos. “A reabertura da janela de IPOs vai exigir emissões de grande porte, já que os investidores exigirão liquidez para fazer suas posições”, afirma uma das fontes.
O Valor procurou as empresas que tentaram um IPO e agora estão em renegociação de dívidas. A Coty diz que “continuará monitorando as condições de mercado e avaliando futuras possibilidades relacionadas a processo de IPO parcial no Brasil”.
Em nota, a Rio Energy afirma que, “após uma avaliação minuciosa das condições do mercado e baseada nas suas estratégias de negócio, decidiu não seguir com o IPO naquele momento. Com o apoio dos seus acionistas, a empresa continua a investir nos projetos de energia renovável e a fortalecer suas operações internas, sempre com foco no crescimento sustentável.” A Rio Alto diz estar sempre analisando as melhores opções do mercado, sejam aquisições, IPO ou mesmo uma estrutura de divida. “Sem dúvida alguma com uma abertura de mercado no segundo semestre a companhia irá analisar com os bancos a melhor estratégia e não descarta uma nova saída para abertura de capital.”
Tok&Stok, Unigel, Conasa, Madero, InterCement e Farmácia Nissei preferiram não comentar. Granbio, Método Engenharia, Casa & Video, AMMO Varejo não retornaram os pedidos de entrevista até o fechamento desta edição.
Fonte: Valor Econômico