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Felipe Salto: “Eventual problema está no uso excessivo de fundos substituindo gastos e fontes que deveriam estar no Orçamento” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor
Com as dificuldades impostas pelo arcabouço fiscal para novos gastos, aumentam no próprio governo e no Congresso Nacional as propostas de políticas públicas implementadas por meio de arranjos que não passam totalmente pelo Orçamento. São programas implementados por meio de fundos, nos quais o Tesouro Nacional coloca recursos.
A movimentação chama a atenção de especialistas porque, embora não afetem as metas fiscais, essas medidas diminuem a transparência sobre as despesas do governo, trazem risco de concessão de subsídios, expõem a União a risco de crédito, fragilizam o arcabouço e podem elevar a dívida pública.
“Eventual problema está no uso excessivo dos fundos, que acabam substituindo gastos e fontes que deveriam estar dentro do Orçamento geral”, afirmou Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, que foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo.
Essa política está travestida de fundo privado a fim de se manter tangente às regras das finanças”
— Lucas Furtado
O procedimento não é inédito. Salto avalia que o comportamento desses gastos, chamados parafiscais, preocupa e deve ser acompanhado com atenção. Por outro lado, o economista não vê paralelo com a “contabilidade criativa” que marcou a gestão de Dilma Rousseff (2011-2016).
O ideal, segundo o economista, seria os recursos não utilizados dos fundos retornarem ao Tesouro para ajudar a melhorar o resultado das contas públicas. Em relatório distribuído aos clientes da Warren, Salto e os economistas José Pelegrini e Gabriel Garrote mostram como o governo tem redirecionado os excedentes a outros programas.
O relatório aponta que a participação da União em fundos (exceto os constitucionais) aumentou de R$ 28,5 bilhões em 2014 para R$ 108,6 bilhões neste ano. Durante a pandemia, o crescimento foi de R$ 60 bilhões.
O aumento ficou concentrado no Fundo de Garantia de Operações (FGO) e no Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), ambos criados em 2009. Foram fortemente reforçados durante a pandemia para oferecer garantia a empréstimos do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) e do Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (Peac). No entanto, após a crise da covid-19, os recursos não retornaram ao Tesouro Nacional.
O FGO, com seu patrimônio de R$ 45,3 bilhões, e o FGI, com R$ 20,7 bilhões, têm sido acionados para apoiar diversas iniciativas deste governo. O FGO foi utilizado para apoiar as renegociações da faixa 1 do Desenrola. Em outro momento, recebeu aporte de R$ 4,5 bilhões para dar suporte no socorro ao Rio Grande do Sul.
A lei do Acredita (14.995/2024) “promoveu mais alterações no FGO, capitalizando o fundo e reforçando a tendência de reutilização de recursos para finalidades diversas daquelas as quais inicialmente foram aportados”, aponta o relatório.
A má repercussão deixou em suspenso uma tentativa de realizar outra política pública à margem do Orçamento. Por interferência do Ministério da Fazenda, está em reexame um projeto de lei que pretendia expandir o auxílio-gás, que hoje atende 5,6 milhões de famílias, para 20 milhões até 2026. A ideia era transferir recursos do fundo do pré-sal diretamente para a Caixa, que operacionalizaria o programa, fora das regras fiscais.
Há mais de um mês, a equipe econômica promete modificar o projeto, fazendo com que as despesas do auxílio-gás respeitem as regras fiscais, mas até o momento essas mudanças não foram apresentadas. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, tem pressionado para que o projeto não seja alterado.
Na mesma linha de despesas que passam por fora do Orçamento, foi criado um fundo privado para financiar o programa Pé-de-Meia, que concede bolsas de estudo a estudantes do ensino médio. A arquitetura causou preocupação, aponta o relatório da Warren.
“O questionamento dos analistas não se deu relativamente ao mérito da proposta, mas sim sobre a forma de financiar o programa”, diz. “Esta, ao permitir repasses ao fundo sem passar pelas contas primárias do Tesouro Nacional, acaba desviando o gasto do limite de despesas imposto pelo novo arcabouço fiscal, além de se valer de recursos que iriam para outros fundos, afetando a transparência na gestão das contas públicas.”
O aparente “drible” no arcabouço fiscal chamou a atenção do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU). O procurador Lucas Furtado protocolou representação na qual diz que o programa fere as regras das finanças públicas, já que as despesas não são registradas no Orçamento. “O que se nota na prática é que essa política está travestida de um fundo privado a fim de se manter tangente às regras das finanças públicas”, escreveu o procurador.
As dúvidas lançadas sobre o programa educacional – a principal novidade do terceiro mandato de Lula – tem movimentado a oposição. Na semana passada, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado aprovou convite para o ministro da Educação, Camilo Santana, prestar esclarecimentos sobre o Pé-de-Meia. Há também articulações para eventualmente pedir o impeachment de Lula pela suposta “pedalada”.
Em nota, o Ministério da Educação afirma que a própria lei que criou o programa “permitiu que a União remaneje recursos entre fundos dos quais ela é cotista e cujos recursos e aportes atenderam a todas as regras orçamentárias”. “A opção por um fundo para gerir os incentivos é essencial ao funcionamento do Pé-de-Meia: garantir recursos para um ciclo letivo que ultrapassa o ano fiscal. Hoje o programa atende cerca de 3,9 milhões de estudantes de baixa renda, dentre os quais 73% são pretos e pardos”, diz o MEC.
Outro arranjo que gerou ruídos no mercado foi o projeto de lei encaminhado pelo governo ao Congresso Nacional para retirar as receitas próprias das estatais federais dependentes de recursos da União do Orçamento federal. São 17 estatais nessa condição de dependência.
A proposta apresentada pelo governo, se aprovada, criaria uma figura inédita de estatal híbrida: as despesas custeadas com a subvenção recebida da União continuariam no Orçamento, enquanto aquelas que seriam custeadas com receita própria sairiam. O modelo, além de abrir um pequeno espaço no limite de gastos deste e do próximo ano, assustou os especialistas por reduzir a transparência e o controle sobre essas estatais.
O Ministério da Gestão nega qualquer retrocesso e diz que são apenas algumas empresas que poderiam aderir ao novo modelo. “Se a ideia é melhorar a gestão das estatais dependentes para torná-las não dependentes do Tesouro, ótimo”, comentou Salto. “A questão é evitar que isso enseje uma manobra para realizar gastos por fora do Orçamento geral, mas por ora não vejo esse risco”, completa.
Na avaliação do economista, já passou da hora de reformar toda a legislação do Orçamento federal, que completou 60 anos e não dá conta do atual processo. “Temos de discutir: fundos, obrigações e discricionaridades, fontes de financiamento, planejamento e emendas parlamentares. Só para começar.”
Procurado, o Ministério da Fazenda não comentou.
Fonte: Valor Econômico

