Por Eric Martin, Manuela Tobias e Patrick Gillespie, Bloomberg
08/10/2023 15h43 · Atualizado
Economistas dizem que já passou da hora de o Fundo Monetário Internacional (FMI) largar a Argentina. A geopolítica ajuda a explicar porque não o fez — ainda.
Nos últimos cinco anos, o FMI emprestou US$ 43 bilhões ao país latino-americano — muitíssimo mais dinheiro do que o recebido por qualquer outro, com resultados lamentáveis.
Na véspera de uma eleição presidencial crucial, a Argentina tem uma inflação de 124% e sua economia voltou a cair em profunda recessão. O programa em vigor do FMI, assim como tantos predecessores, basicamente desmoronou.
Ainda assim, o país continua a receber dinheiro do FMI — e um dos motivos é a escalada da guerra fria entre EUA e China, que tem a América Latina como um campo-chave em disputa.
Na tensa relação entre FMI e Argentina, segundo relatos de fontes de ambos os lados, considerações estratégicas às vezes superam as financeiras. Além disso, os crescentes laços da Argentina com Pequim preocupam Washington, onde o FMI tem sede.
“Aqueles que veem cada vez mais a América Latina através do prisma de uma disputa entre grandes potências estão muito conscientes de que a Argentina é um campo de batalha”, diz Benjamin Gedan, diretor do Programa da América Latina do centro de estudos Wilson Center.
Um bom exemplo ocorreu em junho, quando o ministro da Economia, Sergio Massa, um dos três candidatos nas eleições de 22 de outubro, usou dinheiro emprestado da China para pagar parte da dívida do país com o FMI. Isso nunca havia acontecido antes em 80 anos de história da instituição.
O dinheiro veio de uma linha de swap de moedas com o banco central chinês de US$ 18 bilhões. Na próxima semana, enquanto chefes e membros do FMI se reúnem no Marrocos, o presidente argentino, Alberto Fernández, que está em fim de mandato e não busca reeleição, deve ir a Pequim para pedir que outras partes desse crédito fiquem disponíveis. A Argentina também recebeu um convite para se juntar ao grupo Brics de países emergentes, que a China busca alavancar para rivalizar com as alianças lideradas pelos EUA.
Foi nesse contexto que o FMI liberou em agosto mais uma parcela de US$ 7,5 bilhões, apesar de a Argentina não ter cumprido nenhuma das metas econômicas que supostamente eram condições para a liberação do pagamento.
Um indicador revelador de como a chamada “política do poder” pesou na decisão: nas tensas semanas anteriores, o Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca esteve ativamente envolvido em discussões com o FMI para ajudar a chegar a um acordo que liberasse a parcela à Argentina, segundo fontes a par do assunto.
A próxima revisão do pacote do FMI está prevista para depois das eleições, e o resultado eleitoral pode empurrar a geopolítica para o segundo plano. Isso porque os dois rivais de Massa, Javier Milei — um “outsider” libertário que deseja eliminar o peso argentino e adotar o dólar americano como moeda nacional — e Patricia Bullrich da coalizão pró-empresas, se manifestaram contra a adesão ao Brics. Milei, favorito desde sua vitória surpreendente nas primárias de agosto, chegou a dizer que cortaria os laços diplomáticos com a China.
No caso de uma vitória de Milei ou Bullrich, o foco provavelmente se voltará para a economia. Em meio à volatilidade durante a campanha eleitoral, o FMI mostrou relutância em desencadear uma implosão geral e de ser acusado de influenciar o resultado. Sem esse escudo, o novo governo será submetido a um padrão mais rigoroso.
Ambos os candidatos da oposição prometem o tipo de reformas pró-mercado que o FMI defende há décadas. Milei diz que cortará os gastos públicos, que, junto com a impressão dinheiro pelo banco central, são vistos por muitos como a raiz dos problemas do país.
Mas dentro e fora do FMI há a sensação de que a paciência está acabando e que remover a tábua de salvação do FMI à Argentina pode deixar de ser uma ameaça vazia.
“Haverá a necessidade de um recomeço após as eleições”, diz Mark Sobel, um funcionário do Tesouro dos EUA que foi responsável pelas relações com o FMI de 2000 a 2015 e, depois, o representante do país na instituição até 2018. Os EUA estariam dispostos a permitir que a Argentina dê um calote, diz.
Quando questionado a respeito, um porta-voz do FMI disse que eles estão avaliando as ações recentes do governo e medidas compensatórias que possam ajudar a estabilizar a economia. É do interesse do FMI e de seus membros continuar trabalhando com a Argentina em políticas que promovam a prosperidade e protejam os mais vulneráveis, segundo o porta-voz.
A atual montanha de dívidas da Argentina com o FMI não é consequência de o FMI ter decidido emprestar muito dinheiro ao governo de esquerda de Fernández e de Massa. É uma ressaca da linha de crédito de US$ 56 bilhões — ainda a maior da história do FMI — concedida ao então presidente Mauricio Macri em 2018 e 2019.
Macri, pró-mercado, era visto como um nome que oferecia um novo começo, após 15 anos de governos peronistas. Era amigo do então presidente Donald Trump. O Tesouro dos EUA e o próprio FMI queriam que Macri fosse bem-sucedido, segundo fontes. O mesmo vale para os investidores, que injetaram bilhões na Argentina.
A gestão da economia por Macri, porém, se mostrou desastrosa. Sua agenda de austeridade fiscal empacou no Congresso, os mercados começaram a entrar em pânico diante da crescente inflação e do aumento do déficit orçamentário, e o socorro do FMI não conseguiu reverter a situação. Ele não foi reeleito em 2019.
Desde então, com a inflação mais do que dobrando sob a liderança de Fernandez e o crescimento afetado pela pandemia e uma severa seca, os programas do FMI para a Argentina basicamente consistiram em rolar a dívida sem a adoção de muitas reformas.
Antes de receber a parcela de agosto, Massa concordou em desvalorizar o peso em 18% — o que elevou ainda mais a inflação. Mas poucos dias após receber o dinheiro, o ministro-candidato abandonou os compromissos de austeridade e anunciou uma série de gastos para conquistar votos. Elevou os pagamentos de assistência social e os salários públicos, e cortou o imposto de renda, provocando uma rara crítica pública do FMI.
Caso Massa perca, isso significará mais uma reviravolta política para a Argentina — que, nos últimos dez anos, passou do populismo para uma postura pró-mercado e depois voltou atrás — e talvez uma ainda maior se o defensor da dolarização, Milei, vencer.
Essas guinadas reforçam a sensação de que a sociedade argentina não sabe com qual estrutura de políticas econômicas está disposta a se comprometer. O problema remete a um passado bem mais distante, incluindo principalmente a crise de 2001, quando um programa malsucedido do FMI desencadeou uma profunda recessão e agitação social — que transformou a instituição em uma presença tóxica para muitos argentinos.
Qualquer programa do FMI pós-eleição seria o 23 do país, o que desempataria o quadro com o Equador e colocaria a Argentina no primeiro lugar como o tomador mais frequente da instituição. Isso dependerá de o próximo governo se comprometer a medidas rigorosas de austeridade.
Milei e Bullrich dizem que o farão. O FMI terá pouca base para obrigá-los a cumprir suas promessas, depois de ter permitido que o governo atual adotasse políticas flexíveis, diz Alejandro Werner, ex-chefe do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI.
“A Argentina dirá, ‘Ei, o programa que vocês acabaram de aprovar para Massa em agosto é muito mais tolerante que o meu, então não há nada a negociar’”, disse.
Estender mais crédito à Argentina pode piorar o golpe na reputação que o Fundo já sofreu — a alocação de uma proporção tão grande de sua carteira de empréstimos para um país de renda média gerou ressentimento entre os mais pobres, e não gerou resultados.
A geopolítica ajudou a manter o crédito fluindo. Mesmo assim, em algum momento o FMI — e seu maior acionista, os EUA — pode decidir que é hora de parar.
“Será muito difícil fornecer quaisquer recursos substanciais para a Argentina no futuro”, diz Mark Rosen, que foi representante dos EUA no conselho do FMI de 2019 a 2021. “A Argentina foi uma aposta que deu errado.”
Fonte: Valor Econômico

