Por Guilherme Pimenta e Beatriz Olivon — De Brasília
05/09/2023 05h03 Atualizado há 4 horas
O presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), Carlos Higino, afirmou em entrevista exclusiva ao Valor que o órgão tem como meta julgar entre R$ 500 bilhões e R$ 800 bilhões entre o segundo semestre de 2023 e 2024, ano no qual o governo quer zerar o déficit primário e tem no Carf sua principal aposta para elevar a arrecadação com o fim do voto de desempate obrigatório pró-contribuinte.
Auditor-fiscal da Receita Federal, Higino disse que os julgamentos do Carf geram, na média histórica, uma arrecadação de 10% aos cofres do Tesouro Nacional. Assim, para cumprir a meta de arrecadar os R$ 54,7 bilhões que quer o Ministério da Fazenda, o órgão precisaria julgar R$ 540 bilhões no próximo ano, o que está abaixo de suas projeções – hoje, há R$ 1,1 trilhão em estoque no órgão recursal do Fisco. “O cálculo é conservador”, avaliou o presidente.
Segundo Higino, indicado pelo ministro Fernando Haddad à presidência do órgão no início do ano, o contribuinte terá um maior incentivo ao pagamento caso condenado por voto de qualidade no Carf, já que ficará isento de pagar juros e multa, o que naturalmente elevaria a receita da União. “Os contribuintes só irão à Justiça [se condenados por voto de desempate] se tiverem avaliação de probabilidade muito grande de vitória. Do contrário, o custo é muito elevado”, apostou.
Com a sanção da nova lei no horizonte, Higino aposta que o Carf voltará à sua normalidade e, assim, haverá um esforço para julgar processos bilionários, que já pode começar em outubro deste ano. Apesar de ser a principal aposta do Ministério da Fazenda no rol de medidas concebidas para elevar a receita e cumprir a meta de déficit zero, o presidente do Carf negou que o órgão terá viés arrecadatório.
“O objetivo, agora, é dar celeridade nos julgamentos. A expectativa de arrecadação é com base histórica de estudos”, afirmou. Um dos receios dos tributaristas com a ênfase dada pela Fazenda ao Carf era que o órgão deixasse de lado o viés técnico e passasse a julgar pensando na arrecadação.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: O Carf está preparado para retomar os julgamentos?
Carlos Higino: O Carf nunca parou. O que aconteceu foi que uma série de regras permitiam a contribuintes e à PGFN a retirada dos processos de pauta. No geral, na época da vigência da MP, as partes puderam retirar processos de pauta. A gente continuou julgando, mas os processos de maior valor foram sendo adiados. São os casos em que as grandes controvérsias jurídicas mais aparecem. Isso fez com que a gente não tivesse um aumento no número de processos, mas, ao mesmo tempo, o valor fosse crescendo. Começando com R$ 1 trilhão no começo do ano e agora estamos com R$ 1,1 trilhão.
Valor: Há algum plano para julgar agora os processos de maior valor?
Higino: Há uma regra que não foi alterada e esses processos estão dentro de uma ordem de prioridade com alguns outros, geralmente que têm denúncia criminal, envolvem pessoas com mais de 60 anos, portadores de deficiência. Há um rol de prioridades.
Valor: Qual sua avaliação sobre o texto do PL do Carf aprovado no Senado? É preciso algum veto?
Higino: Na parte relativa ao Carf, acho que não [cabe veto]. O empate pró-contribuinte só existia no Brasil, não havia nada parecido. Agora, o voto de qualidade vai eximir o contribuinte de pagar multa e juros. Em vários processos aqui, valor de multa e juros é superior ao valor original do tributo. A lei cria um prazo após julgamento para pagamento, e assim teremos grande incentivo para disputa tributária ser resolvida no contencioso administrativo fiscal, sem ir ao Judiciário. Os contribuintes só irão à Justiça se tiverem avaliação de probabilidade muito grande de vitória. Do contrário, o custo é muito elevado.
Valor: É possível arrecadar em 2024 os R$ 54 bilhões que o ministro da Fazenda pretende com a medida?
Higino: Não temos meta de arrecadação no Carf. Existe um estoque gigantesco, que não existe em país nenhum do mundo, que corresponde a 10% do PIB, e leva seis anos e meio para resolver. Com a normalidade, R$ 54 bilhões de arrecadação é um cálculo conservador, já que há R$ 1 trilhão em estoque e a nova regra favorece o pagamento.
Valor: O senhor aponta que não há meta de arrecadação, mas advogados tributaristas atrelam isso às falas da Fazenda sobre a necessidade de zerar o déficit e ao colocar o Carf como principal aposta.
Higino: Não, de maneira nenhuma. O Carf não tem viés arrecadatório. O objetivo, agora, é dar celeridade nos julgamentos. A expectativa de arrecadação é com base histórica de estudos.
Valor: Quanto o Carf julgava por ano antes, quando vigorava o voto de qualidade?
Higino: É variado. No primeiro semestre deste ano, com todo o cenário, foram R$ 182 bilhões. Em 2022, foram R$ 138 bilhões no total, dos quais R$ 25 bilhões por empate. Antes da pandemia, o Carf julgou R$ 367 bilhões em 2018, R$ 380 bilhões em R$ 2019 e, quando entramos em 2020, houve atipicidades, com a pandemia. Além disso, teve movimento dos auditores e a regra de julgamento virtual para valores baixos. Com um ambiente estável, a meta de julgar algo que permita chegar a R$ 50 bilhões de arrecadação é bem crível.
Valor: Os R$ 180 bilhões consideram só decisões da Câmara Superior (última instância do Carf)?
Higino: Tudo.
Valor: Mas ainda pode haver recurso dos casos da Turma Baixa para a Câmara Superior.
Higino: Não necessariamente. Para recorrer à Superior, precisa ter divergência entre as turmas sobre o assunto.
Vamos ver tudo que pode ser feito para acelerar os julgamentos e o Carf voltar à normalidade”
Valor: Mas os casos decididos por voto de qualidade sempre sobem [para a Câmara Superior].
Higino: Os processos de maior valor têm defesa mais qualificada, mas há processos de maior valor que têm teses já definidas. E sem tese divergente não sobe para a Câmara Superior.
Valor: Há previsão de mudar o regimento do Carf?
Higino: Avaliamos a possibilidade para modernização. Vamos ver tudo que pode ser feito para acelerar os julgamentos e o Carf voltar à normalidade. Hoje, o prazo na Câmara Superior é bom, em média um ano. Mas, nas turmas ordinárias, gira em torno de três anos, está muito fora do razoável e completamente fora dos padrões internacionais.
Valor: Em 2024, em cenário de normalidade com a nova lei, sem processos sendo retirados de pauta e sem greve dos auditores, quanto é possível julgar?
Higino: Acho que conseguimos julgar, diria que com tranquilidade, algo em torno de R$ 500 [bilhões] a R$ 800 bilhões. É possível e desejável, já a partir dos últimos meses deste ano e ao longo de 2024.
Valor: Julgando R$ 800 bilhões, a estimativa de arrecadar R$ 54,7 bilhões não parece baixa?
Higino: O cálculo é conservador. Há estudos do Tribunal de Contas da União (TCU) decorrente de auditoria feita aqui entre 2013 e 2018 no qual foi verificado que, do que era julgado, cerca de 10% entravam [nos cofres da União]. Por isso, digo que os números foram conservadores. Em tese, fazendo conta bem genérica, para ter os R$ 54 bilhões precisamos julgar R$ 540 bilhões. Se a gente começar a julgar agora, os processos levam um tempo às vezes 30 a 45 dias para notificação do contribuinte, que têm 90 dias para aderir ao parcelamento, com o dinheiro ingressando no caixa em janeiro. Mudou a regra, então talvez o valor julgado tenha a exclusão de multa e juros. Mas, por outro lado, vai haver grande incentivo para pagar. Assim, o percentual [arrecadatório] pode aumentar. Há casos de alto valor, julgados por maioria ou unanimidade, nos quais não vamos aplicar essa regra [de excluir multa e juros], já que 80% dos valores no Carf resultam em decisão por maioria ou unanimidade.
Valor: De acordo com os dados, o Carf não julga tanto quanto o senhor quer agora.
Higino: Não julgava, mas agora temos uma concentração alta de grandes processos. Por isso é factível.
Valor: Então a meta agora é concentrar os julgamentos nos casos de maior valor?
Higino: Já é uma regra que existia e que não foi utilizada porque as partes tiveram o direito de pedir a retirada dos processos de pauta. Volta ao que a regra já previa. Não haverá nenhuma mudança.
Valor: O ministro Haddad diz que uma única empresa tem R$ 100 bilhões no Carf, mas não diz qual. É verdade?
Higino: Não sei qual é e, se soubesse, não diria.
Valor: Mas existe uma empresa com R$ 100 bilhões no Carf?
Higino: Não sei se tem R$ 100 bilhões.
Valor: Pelas informações de companhias abertas, nenhuma grande empresa teria R$ 100 bilhões.
Higino: Não sei nem posso dizer. Mas que há empresas com valor muito grande, há. Se houver [alguma com R$ 100 bilhões], vocês já sabem e imaginam quais sejam.
Valor: Consultamos dados das maiores empresas abertas e nenhuma delas tem R$ 100 bilhões.
Higino: Não sei se ele fala de [somente] uma empresa.
Valor: Sim, ele diz uma empresa.
Higino: Não vi essa fala dele.
Valor: Nenhuma grande empresa tem R$ 100 bilhões no Carf segundo os documentos da CVM.
Higino: Talvez ele [Haddad] se refira ao contencioso somado no Carf e na Receita.
Valor: Mas para o senhor é factível uma única empresa ter R$ 100 bilhões no Carf?
Higino: O que eu posso dizer é que há concentração em algumas empresas. Quase metade desse R$ 1,1 trilhão está em 2 mil processos. Se a gente julgar 2 mil processos, é praticamente todo o montante.
Valor: Há preocupação com novas greves de auditores fiscais, que impactaram o Carf no passado?
Higino: A gente dava isso por resolvido com o decreto de regulamentação do bônus, mas parece que há questões colocadas. Espero que a gente chegue a uma resolução, pois é um tema que vem há bastante tempo e precisa ser resolvido.
Valor: Mas pode atrapalhar os julgamentos?
Higino: Se houver greve como no passado, e os conselheiros não participarem, pode. Claramente existe essa possibilidade caso os conselheiros entrem em greve. Agora, minha expectativa é que isso não ocorra.
Valor: Mas o senhor só paralisaria os julgamentos se todos entrassem?
Higino: Tendo quórum, mantenho [as sessões]. Mas a experiência do passado é que os auditores, quando entram, entram em bloco e derrubam o quórum, aí não tem como.
Valor: O governo espera uma redução na litigiosidade, com a reforma tributária. O senhor concorda?
Higino: Como um todo, um dos grandes objetivos é simplificação, e isso obviamente pode reduzir o contencioso. Mas às vezes, quando há mudança de aplicação dos tributos, no curto prazo surgem novas matérias e, assim, novas teses até que se consolidem. Pode haver pequeno aumento [na litigiosidade] quando for implementada a reforma, mas no médio e longo prazo, um dos grandes objetivos é reduzir.
Fonte: Valor Econômico

