A disparada dos rendimentos dos Treasuries de longo prazo acendeu um alerta no mercado de crédito. O estresse nos ativos financeiros, provocado pelas tarifas impostas por Donald Trump a parceiros comerciais, desencadeou uma onda de liquidações forçadas e expôs distorções em um ambiente de liquidez cada vez mais escassa. A desconfiança em relação aos mercados dos EUA cresce e se reflete na queda da demanda por papéis da dívida americana e na alta dos spreads de crédito. O Federal Reserve (Fed) tem acompanhado o quadro, mas por ora evita dar qualquer sinal mais claro de intervenção.
Ao subir de 4,009% para 4,494% na última semana, a taxa da T-note de dez anos atingiu a maior alta semanal desde 2001 e voltou aos níveis de fevereiro. O juro pago pelo T-bond de 30 anos avançou de 4,422% para 4,870% na semana passada, além de ter operado na casa dos 5% em alguns momentos. Em paralelo à alta dos rendimentos dos Treasuries, o ouro acumula alta expressiva no mês, enquanto euro, iene e franco suíço ganham força ante o dólar. Embora os níveis dos rendimentos sejam expressivos, o que mais chama atenção é a velocidade de deterioração no mercado de juros americano e a alta contínua das taxas, o que indica uma postura vendedora dos agentes de mercado.
“Isso não é normal”, diz o chefe de pesquisa global do Barclays, Ajay Rajadhyaksha, ao lembrar que o contexto para o salto dos juros americanos incluía um ambiente de maior aversão a risco, o que, geralmente, aumentava a demanda por Treasuries. “Esqueça as oscilações do mercado de ações. Pare de ficar olhando as telas em busca das últimas notícias sobre tarifas. E não reaja quando as tarifas dos EUA sobre a China chegarem a 155%. Tudo isso fica em segundo plano em favor de um fator: o mercado de Treasuries.”
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“O mercado de Treasuries está em apuros”, enfatiza Rajadhyaksha. Ele nota que, mesmo com fatores positivos, não há demanda pelos títulos americanos. “Os investidores quase sempre buscam a segurança do dólar e dos Treasuries em períodos de crise. O fato de isso não estar acontecendo é profundamente preocupante”, diz o executivo, ao apontar que os mercados americanos continuam a ser os maiores, os mais abrangentes e mais líquidos do mundo. “Mas, para aqueles que já se preocupam com a exposição excessiva aos EUA, alternativas finalmente estão surgindo.”
Rajadhyaksha avalia que a incerteza política dos últimos meses ajudou a agilizar o processo de diversificação e, em alguma medida, de fuga dos ativos americanos. Em nota enviada a clientes, ele observa que alguns clientes internacionais já fazem perguntas como a possibilidade de os EUA imporem um imposto sobre transações financeiras internacionais, se há um risco real de controles de capital para investidores estrangeiros ou se seria melhor alongar investimentos na curva de juros da Alemanha e não nos Treasuries devido ao risco-país.
Desde o início do mês, houve um aumento expressivo nos Credit Default Swaps (CDS), uma espécie de seguro contra calote, dos EUA para vários vencimentos, enquanto os da Alemanha permaneceram estáveis. Enquanto o CDS dos EUA de seis meses saltou 61,1% no período, para 70 pontos, e o de cinco anos avançou 34,3%, para 55 pontos, houve um aumento modesto de apenas 1,6% no CDS de cinco anos alemão, para 14 pontos.
“Acreditamos que essas preocupações são muito exageradas, mas o próprio fato de elas estarem sendo expressas — e a movimentação dos preços [dos ativos] nos últimos cinco dias — sugere que pode haver um movimento (em câmera lenta) de capital saindo dos ativos americanos. E, se isso estiver realmente ocorrendo, não poderia acontecer em um momento mais inoportuno”, avalia Rajadhyaksha, para quem os ativos de risco só vão se estabilizar se houver alguma acomodação na dinâmica dos Treasuries. “E, se os eventos dos últimos dias se repetirem, a situação provavelmente ficará ainda mais complicada.”
Entre possíveis vetores para um “retorno à normalidade” na renda fixa americana, o executivo lista um eventual acordo que possa dar apoio ao sentimento e, assim, provocar uma recuperação dos juros longos, fortalecimento do dólar e um aumento do spread entre as taxas dos Treasuries e os swaps de juro americanos, que, nos últimos dias, caíram de forma expressiva. Ao longo do fim de semana, houve novo vaivém sobre tarifas. Depois de sinalizar que isentaria alguns produtos, especialmente eletrônicos, Trump declarou em sua plataforma de mídia social que pode retomar a taxação desses itens.
Nos cálculos do economista-chefe para América do Norte da Capital Economics, Paul Ashworth, a alíquota tarifária efetiva geral sobre as importações americanas está, agora, em 22%, “ainda muito acima dos 2,3% do ano passado, mas abaixo dos 27% em que estava até sexta-feira”. “O aumento na alíquota tarifária básica sobre a China, especificamente, permanece em 145%, mas o aumento efetivo, considerando as isenções, está, agora, próximo de 106%”, diz Ashworth.
As isenções podem dar algum apoio às ações das “big techs”, mas o efeito em geral sobre a confiança nos EUA a ponto de novamente ampliar a demanda por Treasuries é um ponto a ser observado. Além disso, alguns efeitos da disparada dos juros longos e da menor liquidez na renda fixa americana já foram sentidos nos mercados de crédito, o que tem deixado alguns investidores com o sinal de alerta ligado.
De acordo com dados da distrital de St. Louis do Fed, desde o fim de março, o spread entre as taxas dos bonds “high yield” (de maior risco e potencial de retorno) e os juros dos Treasuries aumentou de forma expressiva, ao passar de 3,05 pontos percentuais em 24 de março para 4,42, após ter ido a 4,61 pontos no início da semana passada, no maior nível desde junho de 2023, quando o mercado de crédito americano ainda era afetado pela crise em torno do Silicon Valley Bank (SVB) e de outros bancos de pequeno e médio porte nos EUA. Na prática, o mercado tem exigido prêmios de risco adicionais para investir nos papéis de empresas com grau especulativo.
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O aumento dos spreads também se mostra presente no “funding” interbancário e em bonds “high grade” (de mais qualidade e menor risco), como nota o ex-trader do Fed Nova York e estrategista-chefe da DA Economics, Alex Lima. Para ele, parte da pressão recente sobre os Treasuries vem de fatores mais técnicos, diante da falta de liquidez e colateral (conjunto de garantias) apertado. Ele nota que alguns hedge funds que arbitram os futuros de Treasuries contra os títulos em si “tiveram de liquidar posições do dia para a noite”.
Lima avalia, em post nas redes sociais, que a guerra comercial de Trump pode ter batido em um limite importante do mercado. “Uma crise de crédito joga os EUA em recessão Não vejo com estranheza a Casa Branca começar um diálogo com a China no curto prazo”, afirma o estrategista, para quem o “strike da put” está próximo — uma referência ao mercado de opções, já que há uma ideia nos mercados de que, quando os ativos começam a ser penalizados em excesso, o governo ou o Fed podem decidir agir.
Se, no caso da Casa Branca, isenções a alguns produtos já podem surtir efeito, no caso do Fed há uma pressão de alguns players para medidas mais enérgicas, como o fim do processo de enxugamento do balanço; um programa de compra de ativos; ou, até mesmo, uma redução das taxas de juros. Até o momento, o banco central americano não tem dado sinais claros de intervenção, embora tenha se mostrado atento aos desenvolvimentos no comportamento dos Treasuries.
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Na sexta-feira, o presidente da distrital de Minneapolis do Fed, Neel Kashkari, avaliou que o fato de o dólar cair após a implementação das tarifas “dá mais credibilidade à ideia de que as preferências dos investidores estão mudando”. Em entrevista à rede de TV americana CNBC, o dirigente disse observar “estresses” no comportamento dos ativos, mas não deslocamentos significativos no funcionamento do mercado.
Visão semelhante foi defendida pela presidente da distrital de Boston, Susan Collins, que, no entanto, foi mais enfática. De acordo com a dirigente, o Fed “estaria absolutamente preparado” para usar seu poder de fogo para estabilizar os mercados caso as condições se tornem desordenadas. Em entrevista ao jornal “Financial Times”, ela afirmou que os mercados “continuam funcionando bem” e que “não estamos vendo preocupações com a liquidez em geral”, mas ressaltou que o Fed “tem instrumentos para lidar com as preocupações sobre o funcionamento dos mercados ou a liquidez, caso elas surjam”.
Os profissionais da HSBC Asset Management observam, em relatório semanal, que os mercados tendem a observar os spreads de crédito como um “importante indicador antecedente do ciclo econômico” e destacam o aumento recente, em um ajuste “significativo” de preços, sobretudo nos títulos high yield. “Ainda assim, esses níveis não são extremos em comparação com a média histórica de longo prazo. E isso faz sentido: os elementos que levariam a um aumento dramático nas taxas de inadimplência ainda não estão presentes, mesmo que haja uma tendência de alta moderada nos defaults”, avaliam os profissionais da gestora.
Como pontos centrais, eles notam que os balanços do setor privado “continuam sólidos”; os lucros corporativos seguem saudáveis no momento; e o volume de vencimentos de dívida no curto prazo não representa um desafio tão grande. Nesse sentido, a HSBC Asset observa que a reprecificação recente nos mercados de crédito está “em linha com o que foi visto em correções recentes causadas por eventos específicos — normalmente, choques pontuais”, e citam como exemplo o susto com as tarifas em 2019 e 2019; o ciclo de aperto monetário em 2022; e a crise dos bancos regionais, em 2023.
“Nenhum deles resultou em recessão”, destacam os profissionais. Eles, porém, reforçam a necessidade de cautela no momento e, por isso, preferem títulos de empresas com grau de investimento, e não high yield, ao mesmo tempo em que favorecem uma “gestão ativa rigorosa” em meio à volatilidade elevada nos mercados.
Fonte: Valor Econômico

