Uma das muitas coisas notáveis sobre a surra em andamento nos mercados de ações dos EUA é que os títulos do governo americano na verdade não estão compensando a situação. Não é um bom sinal.
Normalmente, os títulos do Tesouro americano são o “yin” do “yang” das ações. Quando as ações levam um golpe, eles dão um salto, pois os investidores migram para águas mais seguras. Afinal, são conhecidos como ativo “livre de risco”. Mas na rápida sacudida deste mês, esse equilíbrio não tem funcionado muito bem. As ações dos EUA já caíram 5% este mês e estamos apenas na metade de março. A baixa é de 8% desde meados de fevereiro. Ao mesmo tempo, os preços dos Treasuries subiram ao longo deste ano, mas não de forma tão drástica. Os bônus de referência de 10 anos estão praticamente no mesmo nível hoje que estavam no fim do mês passado.
Isso revela que este é um choque de sentimento. Não é a economia, estúpido. O que torna o conserto muito mais difícil. Os dados sobre a economia estão fracos, mas não são terríveis, e com certeza não tão péssimos como sugere a sacudida dos mercados. A inflação dos EUA voltou a cair para 2,8% em fevereiro, sinal de que a economia enfraqueceu, mas não está afundando. Mas, na verdade, não é isso que tem desestimulado os investidores. “Estamos vendendo ativos dos EUA enquanto conversamos”, disse Michael Strobaek, diretor do banco suíço Lombard Odier. “Neste momento, passamos por uma fase dolorosa.” Esta é uma mudança de opinião considerável. Nesta época no ano passado, Strobaek falava sobre o imperativo “geoestratégico” de comprar e manter ações dos EUA. Na virada do ano, ainda apostava todas as fichas no “excepcionalismo” americano.
Não foi a economia americana que o fez mudar de opinião. Foi o que ele chama de “provocação extrema” do vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, à Europa em seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro. Em seguida, foi a maneira abominável com que Donald Trump tratou o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy, na Casa Branca. Depois, a ameaça de impor tarifas sobre México e Canadá. “Está absolutamente claro que eles estão golpeando essa agenda com uma marreta”, afirmou Strobaek. Hoje ele está abandonando as ações e entrando em títulos e “cash”.
Em algum momento, o vaivém constante do governo Trump sobre a política tarifária prejudicará a economia real. Os americanos ricos estão extremamente expostos a ações, portanto isso os afetará no bolso. As empresas reduzirão gastos se forem golpeadas por uma mudança de política arbitrária e dolorosa. A incerteza torna mais difícil fazer previsões sobre ganhos com alguma convicção, o que deixa as gestoras de fundos voando às cegas.
O clima é horroroso. Trevor Greetham, chefe de multiestratégia da Royal London Asset do Reino Unido, observou que em seu rastreador de sentimento, que remonta a 1991, os últimos dias estão entre os 50 mais sombrios do mercado que ele já viu. São dias comparáveis a episódios como a falência do Lehman Brothers, a crise do euro e o fim do fundo hedge Long-Term Capital Management, em 1998.
Está absolutamente claro que eles [Trump e Vence] estão golpeando a agenda [política] com uma marreta”
Mais uma vez, assinala Greetham, não é a economia que está sofrendo. São as tarifas, a geopolítica, a própria incerteza que causam o dano. E “os bancos centrais não estão lá ao seu lado nesse caso”. Em outras palavras, o Fed não vai chegar para o socorro, como fez, por exemplo, na crise da covid-19, cinco anos atrás. Se os investidores acreditassem que o Fed apareceria montado em um cavalo branco para cortar juros e consertar o desastre, os títulos estariam significativamente mais fortes. Em vez disso, os investidores veem um futuro de crescimento mais lento e inflação mais alta que a política monetária não pode resolver de facilmente.
Isso não deixa nenhum catalisador de curto prazo para reverter a situação. A não ser que Trump passe por um transplante de personalidade, aconteça a intervenção de um adulto na sala ou uma quebra repentina na economia real que desencadeie cortes massivos por parte do Fed, não existe nada para impedir a deterioração. “Estamos em território de fortes quedas”, diz Greetham.
O secretário do Tesouro, Scott Bessent, menosprezou o impacto de “um pouco de volatilidade” nas ações. A mensagem da Casa Branca é de sofrimento de curto prazo para ganhos de longo prazo. Pesos pesados de Wall Street, como Goldman Sachs e Blackstone, elogiaram as possíveis vantagens das tarifas de Trump. Eu quero um pouco do que eles estão tomando. Mesmo que o governo pressionasse o Fed a fazer cortes, isso seria visto como inapropriado na independência do BC e é provável que só piorasse a situação.
Tudo tem um preço, e saltos temporários em quedas mais amplas fazem parte do processo. Em algum momento, as ações dos EUA podem ficar baratas o suficiente para atrair os caçadores de pechinchas. Mas com uma relação preço/lucro de 24 vezes, em comparação com 17 na Europa, é difícil argumentar que já chegamos lá. As gestoras têm escassos motivos para otimismo. Talvez os investidores dos EUA não notem as tarifas de 200% propostas por Trump sobre o verdadeiro champanhe francês, no fim das contas.
Fonte: Valor Econômico

