Em agosto, um dos executivos mais poderosos da indústria petrolífera da China agitou os mercados mundiais ao fazer uma previsão categórica: a demanda chinesa por petróleo poderá atingir seu teto neste ano.
Perguntado sobre como a desaceleração da economia chinesa poderia afetar a demanda interna por petróleo, o executivo-chefe da China National Offshore Oil Corporation (Cnooc), Zhou Xinhuai, previu que o segundo semestre de 2023 será mais fraco que o primeiro, indicando que a demanda crescerá menos em ternos anuais e que “talvez neste ano a demanda interna por petróleo atinja seu pico”.
Pode ter sido uma projeção exagerada, a Agência Internacional de Energia (AIE) prevê que a demanda só parará de crescer significativamente e se estabilizará por volta de 2027 e que atingirá seu teto em 2030, como parte da tendência geral de afastamento em relação a todos os combustíveis fósseis. Seja qual for a data, analistas concordam que a China – cuja demanda por petróleo triplicou nos últimos 20 anos, segundo a AIE – se aproxima de um ponto de inflexão que terá repercussões por toda a indústria petrolífera.
“Veremos o pico da demanda chinesa por petróleo até o fim da década e, em seguida, o da demanda mundial por petróleo”, disse Neil Beveridge, analista sênior de energia da AB Bernstein.
Ciarán Healy, analista de mercado de petróleo da AIE, disse que o “mercado chinês é um microcosmo do mundo”. “O que ocorre lá é um reflexo das mudanças no mercado mundial de petróleo.”
No cerne da diminuição do apetite chinês por petróleo está a rápida adoção dos veículos elétricos (VEs) no país, segmento liderado pelas próprias montadoras locais. Os VEs representaram 37% de todas as vendas de carros novos na China em agosto, segundo dados do HSBC Global Research.
À medida que os VE vão tomando conta do mercado automotivo na China, o país passa a depender menos do petróleo importado, o que acelera a mudança na matriz energética chinesa.
Matriz energética da China está mudando para carvão e renováveis. A China tem sido o motor da demanda mundial por petróleo desde sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001. Cerca da metade do aumento mundial na demanda por petróleo desde 2000 veio da China, que triplicou seu consumo durante o período, de acordo com estimativas da BP.
Mas o fato de a China, mesmo com um crescimento econômico menor, ser um pilar do mercado mundial de petróleo ajuda a ofuscar o fato de que a commodity possivelmente não é o elemento mais importante da matriz energética da China. Além disso, a China vem passando rapidamente a depender menos do petróleo em função da disseminação dos VEs.
Michal Meidan, chefe de análises sobre a China no Oxford Institute of Energy Studies, diz que o petróleo representa apenas 19% da matriz energética do país. “Do ponto de vista do sistema energético, a China é provavelmente autossuficiente em 85% de suas necessidades energéticas”.
Ao incrementar a frota de VEs, “eles gradualmente passam a depender menos da gasolina e do petróleo importado”. “É aí que o carvão e as energias renováveis entram em cena”, acrescenta Meidan.
Segundo o relatório Statistical Review of World Energy mais recente da BP, o carvão representa 56% do suprimento de energia na China, em comparação aos 27% da média mundial e aos 28% dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O petróleo e gás representam apenas 26% da oferta de energia na China. O restante vem das fontes de energia renováveis.
À medida que os carros na China passam a ser cada vez mais elétricos, o país passa a depender mais das fontes renováveis e do carvão, produzidos localmente, e menos dos demais países.
Enquanto outros países da OCDE vêm trocando o carvão por fontes de energia fósseis mais limpas, como o gás natural, a China optou por saltar do carvão diretamente para as fontes renováveis. Uma transição intermediária para o gás aumentaria sua dependência em relação ao mercado internacional de fontes de energia.
“A grande história de independência energética da China no futuro é essa camada de base da pirâmide [de carvão e outros combustíveis fósseis], com uma camada em cima impulsionada por energias renováveis e baterias”, disse Lin Ye, analista da empresa de pesquisas de mercado Rystad.
O que menos petróleo para a China significa para as metas climáticas. Em 2012, a China alterou sua Constituição para fazer da sustentabilidade um ponto central nas políticas nacionais. Em setembro de 2020, em discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, o presidente da China, Xi Jinping, comprometeu o país a atingir o pico de emissões antes de 2030 e a neutralidade de carbono até 2060.
As metas de emissão de carbono da China são mais modestas que as de outros países da OCDE, que, em sua maioria, prometeram reduções entre 25% e 30% antes de 2030 e a neutralidade de carbono antes de 2050. A meta da Índia é chegar à neutralidade em 2070.
Ainda assim, analisadas dentro do contexto, as metas chinesas são ambiciosas. Embora seja grande, a economia da China também é relativamente pobre em termos per capita. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o PIB per capita chinês não chega nem a 25% do americano.
Isso significa que a China precisa equilibrar por um lado programas de crescimento que exigem uso intenso de recursos e por outro iniciativas de redução nas emissões carbono. De acordo com dados de 2020 da União Europeia, as emissões de carbono anuais per capita chinesas são só 60% das americanas.
Calcula-se que o país cumprirá suas metas, mas a tensão entre a transição verde e a segurança energética continua sendo um desafio.
“A segurança energética tornou-se uma prioridade para o país desde o ano passado, por questões geopolíticas”, disse Evan Li, chefe de análises de transição energética na região Ásia-Pacífico do HSBC.
Os altos preços da energia e a escassez de oferta causaram “obviamente muita apreensão”, segundo Li. “Portanto, recentemente vimos um relaxamento no uso do carvão e dos combustíveis fósseis em geral. Isso é uma das coisas que poderiam retardar a China.”
Petroquímicos começam a guiar mercado de petróleo da China. À medida que o uso do petróleo se aproxima de seu pico, a China e outros países vêm sendo cada vez mais movidos pela demanda por petróleo para uso em produtos não relacionados a combustíveis – principalmente petroquímicos. Segundo a AIE, 85% do crescimento adicional da demanda mundial por petróleo até 2029 será para uso em petroquímicos.
Isso levará as refinarias de petróleo na China e em outros países, que tradicionalmente eram guiadas pela necessidade de produzir combustíveis para transporte, a investir alto para reconfigurar o que são capazes de produzir.
“Você não pode mais olhar para o quadro macro, precisa começar a pensar em produtos individuais”, disse Mukesh Sahdev, chefe de comercialização de petróleo na Rystad Energy. “Para as refinarias, os negócios não serão mais como costumavam ser.”
A China já é o maior produtor de produtos petroquímicos do mundo e ruma a ampliar essa liderança. De acordo com dados do JPMorgan, a China aumentou a capacidade anual de produção de etileno em 22,2 milhões de toneladas desde 2017 e deve elevá-la em mais 15,1 milhões de toneladas até o fim de 2025.
“A transição que já ocorreu na China está ocorrendo cada vez mais em outras partes do mundo”, disse Parsley Ong, chefe da área de energia na Ásia do JPMorgan. “A nova capacidade [produtiva] pelo mundo está cada vez mais sendo direcionada aos produtos químicos.”
Além disso, como a nova capacidade sendo instalada inclui tecnologias que permitem a produção de matérias-primas químicas diretamente a partir do petróleo e do óleo combustível, a China poderá depender menos de importações de produtos petroquímicos – e fortalecer a resistência das cadeias de suprimentos para o setor industrial.
Mais acordos voltados ao novo mundo do petróleo. A demanda na China por tecnologias e experiência no ramo petroquímico tem motivado uma série de acordos com empresas estrangeiras. A entrada de investimento estrangeiro em petroquímica na China desde o início de 2022 passou dos US$ 5 bilhões, de acordo com dados da Dealogic.
Em agosto, a Sinopec criou um empreendimento conjunto com a Ineos, do Reino Unido, para um projeto de produção de etileno em Tianjin. Em julho, a Saudi Aramco, petrolífera estatal Arábia Saudita, adquiriu participação de 10% na Rongsheng Petrochemical, de Zhejiang, proprietária de 51% da Zhejiang Petrochemical, por 24,6 bilhões de yuans (US$ 3,4 bilhões).
Esse é mais recente em uma série de acordos petroquímicos assinados entre chineses e sauditas nos últimos 12 meses, nos quais a Saudi Aramco fornece grande financiamento e know-how petroquímico para refinarias chinesas em troca de longos contratos de compra de petróleo.
As estatais chinesas também passam por transformações, tendo elevado os investimentos em bens de capital, o que, segundo analistas, reflete um esforço para impulsionar a produção local de petróleo e aumentar a presença no setor de fontes de energia renováveis.
O orçamento de gastos de capital da Sinopec aumentou 22%, de 141,6 bilhões de yuans, em 2019, para 172,5 bilhões de yuans, em 2022. O orçamento da Cnooc aumentou 30%, de 72 bilhões de yuans para 94 bilhões de yuans no mesmo período.
“A PetroChina está entrando nas energias renováveis, a Cnooc está usando o que sabe sobre exploração marítima para produzir energia eólica”, disse Meidan. “A Sinopec, em função de sua grande presença no varejo, está tentando entrar no [segmento de] hidrogênio e nos veículos a célula de combustível […] Essas coisas complementam o que elas já estão fazendo.”
A forma como a China vê a segurança no abastecimento foi se desenvolvendo com sua matriz energética e sua experiência no mercado de petróleo, segundo Meidan, o que dá a Pequim mais confiança de que seu suprimento de petróleo transportado por mar seja capaz de resistir a choques de mercado e riscos geopolíticos.
“Eles estão mais otimistas, e acho que há um reconhecimento maior de que depender do Oriente Médio também significa interdependência”, disse ela. “A China precisa deles, mas os grandes fornecedores também precisam da China.” (Tradução de Sabino Ahumada)
Fonte: Valor Econômico

