Por Anaïs Fernandes e Marta Watanabe — De São Paulo
12/12/2022 05h00 Atualizado há 3 horas
Começar o próximo governo com mais R$ 200 bilhões em gastos, como sugere a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição aprovada no Senado, “traz risco muito grande” e criaria uma trajetória “preocupante” para a dívida pública, alerta Mansueto Almeida, economista-chefe do BTG Pactual e ex-secretário do Tesouro Nacional. Apesar disso, ele diz que é preciso “dar o benefício da dúvida” para o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Teve uma série de declarações que assustaram um pouco o mercado, mas acho que não devemos tirar o que será o governo Lula do que aconteceu nas últimas três, quatro semanas”, afirma.
Para Mansueto, o Brasil está bem posicionado global e até domesticamente e, com os sinais corretos de conciliação entre responsabilidade fiscal e social, o novo governo pode começar “muito bem”, diz. “Se der o sinal errado, não colocar uma regra fiscal crível, começar gastando muito, o Banco Central não corta juro, a inflação aumenta, o risco fica maior, nossa moeda perde valor. Aí, podemos ter um cenário bem desafiador.”
Se for a opção do governo brasileiro começar gastando tanto, eles terão de definir fonte de receita”
Como está, a PEC de Transição poderia levar a dívida/PIB de algo entre 74% a 75% do PIB em 2022 para 92% em 2026, estima. Caso os gastos adicionais de R$ 200 bilhões se confirmem, o economista também não descarta a possibilidade de agências de classificação de risco rebaixarem a nota de crédito do Brasil já no primeiro semestre de 2023.
O mercado financeiro, segundo Mansueto, já aceitava um ajuste mais gradual, com a dívida se estabilizando só mais ao fim do novo governo. Atualmente, porém, a preocupação adicional com as contas públicas aparece na curva de juros, que sinaliza um país com juros acima de 12% ao ano até o fim da década, observa Mansueto. “Agora, para o mercado se animar, ele não está olhando detalhe, ele quer apenas a mensagem correta.”
Por ora, o ex-secretário do Tesouro considera baixo o risco de o BC voltar a subir a Selic em 2023, ainda que não desprezível. Mas um cenário em que o BC pode perder espaço para cortar juros já é “muito ruim”, diz. O câmbio, aponta, ainda não reagiu tanto às turbulências fiscais como a curva de juros porque o investidor estrangeiro “está animado com o Brasil”, avalia. “Mas, se a gente não estivesse dando esses sinais dúbios no fiscal, o local também estaria animado, e o dólar não estaria R$ 5,20, estaria R$ 4,80, R$ 4,90.”
“Não precisamos de dois anos para definir regra fiscal. O teto de gastos foi elaborado em menos de 30 dias”
Neste momento inicial, mais importante do que tratar do novo arcabouço fiscal – que, para Mansueto, deve manter alguma regra de limitação das despesas -, é fundamental que o governo sinalize como vai bancar o déficit proposto. Aumentar ou não gastos, diz, é direito de qualquer governo e uma decisão política, mas, se a opção do novo governo for começar gastando tanto, eles terão de definir fonte de receita, afirma. E será preciso debater arrecadação de impostos, um assunto difícil, dada a alta carga tributária brasileira.
Nessa área, ele aponta como alvos alguns regimes tributários especiais, como lucro presumido ou dedução de despesas de saúde no Imposto de Renda, embora não sejam medidas fáceis de aprovar.
Sobre o futuro ministro da Fazenda, Mansueto diz que Fernando Haddad é “um político experiente” e “uma pessoa inteligente”. “Tenho certeza de que ele sabe que precisa dar sinal de responsabilidade fiscal”, afirma.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Qual sua avaliação sobre a PEC da Transição?
Mansueto Almeida: A expectativa do mercado era que começaríamos o próximo governo com autorização para gastar a mais com o Bolsa Família, entre R$ 50 bilhões e R$ 70 bilhões, e isso levaria a déficit primário de R$ 50 bilhões do governo central em 2023. A PEC abre espaço de cerca de R$ 200 bilhões, considerando os R$ 145 bilhões e despesas acima do teto. Isso pode levar o próximo governo a terminar com dívida bruta de 92% do PIB, partindo de estimados 74% a 75% neste ano. A trajetória da dívida pública fica preocupante. A expectativa do mercado era o próximo governo mostrar que a dívida não crescerá fortemente e que parará de crescer no fim do mandato. Não se espera parar de crescer em 2023, 2024 ou 2025. É parar de crescer só em 2026. Não é um esforço fiscal muito agressivo. Pelo contrário, o mercado já aceitava ajuste gradual. Mas começar com PEC de R$ 200 bilhões traz risco muito grande.
Valor: Há possibilidade real de termos rebaixamento pelas agências de classificação de risco?
Mansueto: Sim. Após as eleições, estive com todas as agências de classificação de risco. Nas reuniões havia o debate de um perdão para o início do próximo governo, para cumprimento de promessas de campanha. Uma das agências falou que não ia ser de R$ 200 bilhões porque o Congresso barraria. Mas o Senado aprovou esse valor. Então, creio que há risco concreto. Claro que isso pode mudar. O governo pode definir fonte de recursos e mostrar que o déficit em 2023 não será de R$ 200 bilhões. Mas com o que se tem agora há risco de o Brasil ser rebaixado no primeiro semestre de 2023.
Valor: E faz diferença parte dos R$ 200 bilhões ficar sob o teto?
Mansueto: Não faz muita diferença porque grande parte do aumento de despesa será com despesa praticamente permanente, que no jargão orçamentário é aquela com impacto por mais de dois exercícios fiscais. É importante destacar que todo governo tem direito a gastar mais, ou menos. É decisão política. Mas, se a opção for começar gastando tanto, eles terão de definir fonte de receita.
Valor: E a arrecadação não deve continuar ajudando?
Mansueto: Nos últimos dois anos, houve aumento forte de arrecadação, que ninguém esperava. Terminaremos este ano com aumento de carga tributária de 2,5 a 3 pontos percentuais [p.p] do PIB, em relação a 2019. Parte disso deve ir embora porque veio de dividendos de estatais. A Petrobras continuará lucrativa com barril do petróleo em US$ 70, US$ 80, como se espera, e pagará dividendos, mas não baseada em barril a US$ 120, como tivemos neste ano. Também houve receitas extraordinárias, como da privatização da Eletrobras. Estima-se queda de receita líquida do governo central em torno de 1% do PIB. Alguns falam em 0,6 p.p.
Valor: E o que se pode fazer do lado das despesas?
Mansueto: Reduzimos o peso da folha federal de 4,3% do PIB ao fim de 2018 para 3,5% do PIB ao fim deste ano, o menor valor desde 1991. O desafio em 2023 é fazer recomposição salarial, mas não integralmente. Se a despesa de pessoal for a 3,7% ou 3,8% do PIB, já haveria ganho. O gasto com Bolsa Família [atualmente Auxílio Brasil] também cresceu. É um programa excelente, mas a despesa cresceu de 0,5% do PIB, custo máximo anual entre 2003 a 2019, para 1,7% do PIB ao ano. Mesmo com ajustes indicados por especialistas, o gasto com o programa será três vezes o anterior. No Brasil o gasto social é alto, mas a eficácia em reduzir desigualdade e pobreza é baixo. O desafio é mudar a composição para programas mais eficientes. Só que, em vez disso, estamos aumentando gastos novamente. Com essa opção, tem que discutir a arrecadação, o que ninguém quer, porque a carga tributária é elevada. Mas não podemos brincar porque a taxa de juros está muito alta. Não podemos achar que o nível de juros de hoje do Brasil é normal. Após a eleição, a curva de juros de cinco, dez, 15, 20 anos, subiu 2 p.p. Depois melhorou, mas está entre 1 a 1,3 p.p. acima do que era ao fim da eleição. Se acreditamos na curva de juros hoje, ela sinaliza um país que até o fim dessa década terá juros acima de 12% ao ano. Há dois cenários para isso. Um em que o governo mostra o plano fiscal, dizendo que a dívida vai crescer um pouco mais, mas será controlada e ficará estável lá na frente, e a curva de juros recua. No outro, o governo não faz plano algum e a inflação volta, o que ninguém quer.
Valor: Qual o risco de o BC voltar a subir juros no ano que vem?
Mansueto: Por enquanto é baixo, mas não desprezível. No cenário que se tinha antes, a inflação, que em 2021 foi 10,1%, cairia para a casa de 5,5% em 2022, 5% em 2023 e 3%, 3,5% em 2024, com centro da meta de 3%. O BC começaria a cortar juros no terceiro trimestre do próximo ano e terminaríamos 2023 com a Selic entre 10% e 11%. Em 2024, os juros iriam para 7% ou 8%. Mas, no cenário atual, o déficit inicial será muito grande. Em um contexto com mercado de trabalho aquecido, começamos com expansão fiscal além dos programas sociais, sem ter âncora fiscal, com o mercado um pouco assustado com a potencial trajetória de crescimento da dívida. Isso tudo pode trazer inflação. Podemos ter inflação maior que 5% em 2023. Se isso começar a afetar expectativa em 2024, o BC não poderá começar a cortar os juros a partir de julho, como se esperava. Não se tem falado tanto em risco de aumento, mas o fato dele já não cortar é muito ruim. A taxa de juros está em 13,75%, a expectativa de inflação está 5% para o próximo ano, o que dá juro real de quase 9%. Se a inflação for para 6%, com Selic de 13,75%, o juro real é de quase 8%. Nenhum país do mundo tem juro real no nível esperado para o Brasil nos próximos 12 meses. Todos esperavam, inclusive, que o BC pudesse antecipar o corte de juros, com o novo governo dando a sinalização correta, mostrando responsabilidade fiscal.
Valor: Que impacto isso terá na economia?
Mansueto: Se mantivermos juros tão altos, machucará o crescimento. No terceiro trimestre de 2022, a alta de 0,4% do PIB ficou abaixo da esperada. No último trimestre deste ano, o PIB deve cair na margem. Teríamos crescimento na margem próximo de zero no primeiro e segundo trimestres de 2023. Isso já era dado, quem quer que fosse o novo presidente, e não tem nada a ver com questão estrutural, é política monetária. Mas quando o BC começasse a cortar o juro, iríamos para o segundo semestre de 2023 com investimento e economia se recuperando e em 2024 cresceríamos bem.
Valor: Seria importante o governo eleito indicar qual será a nova regra fiscal?
Mansueto: Neste momento acho que não era nem possível já definir qual é a nova regra fiscal. Agora é mais importante o novo governo dar sinalização correta. Dizer: estamos aprovando esse gasto, mas haverá fonte de receita, o déficit não será de R$ 200 bilhões em 2023 porque tomaremos medidas. Uma nova regra depende do governo. Não há regra ótima, mas não precisamos de dois anos também para definir isso. O teto de gastos foi elaborado em menos de 30 dias. A nova regra pode ser elaborada em seis meses, discutindo as várias propostas.
Valor: A nova regra fiscal deve estar relacionada com a dívida?
Mansueto: A dívida é importante como parâmetro. Das variáveis que determinam a dívida, o resultado primário é a que o governo controla. O que se estima é que para a dívida pública parar de crescer é preciso superávit primário entre R$ 150 bilhões e R$ 200 bilhões. Se começarmos com déficit de R$ 200 bilhões, falamos de um ajuste fiscal de R$ 350 bilhões a R$ 400 bilhões em quatro anos. É um número muito grande.
Valor: Uma nova âncora fiscal teria de continuar levando em consideração despesa, então?
Mansueto: Teria, porque se você adotar âncora em que diz que quer controlar a dívida, mas que não quer reduzir nada da despesa, que vai mantê-la constante como proporção do PIB, é a mesma coisa que falar que vai ter de aumentar a carga tributária em três, quatro pontos do PIB. Se você faz a discussão separada, as pessoas acham que não tem custo. Tem como aumentar algumas coisas. Mexer em imposto não é popular em nenhum lugar do mundo, mas, se quiser gastar mais, vai ter de fazer isso.
Valor: E o câmbio, ainda deve ser mais afetado?
Mansueto: O cenário é bom para o câmbio, mas poderia estar melhor. O dólar está a R$ 5,20 porque o Brasil está em um momento bom em relação a outros emergentes. Em 2021, tivemos superávit da balança comercial de US$ 60 bilhões, para este ano esperamos superávit de US$ 65 bilhões. Em 2021, o investimento direto externo foi de US$ 46 bilhões. Em 2022, esperamos fechar em US$ 90 bilhões. Os investidores internacionais têm uma visão ultraotimista do Brasil. Eles não estão olhando, neste momento, detalhe de PEC. Estão olhando um país que aprovou reforma da Previdência e independência do BC, que melhorou marco regulatório, em que o mercado de capitais se expandiu e onde não teve invasão do Congresso ou fechamento do Supremo Tribunal Federal, o que eles mais temiam. Eles não tinham medo do resultado da eleição, mas do processo eleitoral. O investidor de fora está animado e é o que segura o dólar a R$ 5,20. Mas, se a gente não estivesse dando esses sinais dúbios no fiscal, o local também estaria animado, e o dólar não estaria R$ 5,20, estaria R$ 4,80, R$ 4,90. O Brasil hoje tem baixa vulnerabilidade externa, mas, se o investidor estrangeiro se assustar e deixar de entrar, o dólar vai ficar mais caro.
Valor: Qual sua expectativa com Fernando Haddad na Fazenda?
Mansueto: Haddad é político experiente e uma pessoa inteligente. Tenho certeza de que ele sabe que precisa dar sinal de responsabilidade fiscal e ganhar a confiança dos investidores logo no primeiro ano de governo. O trabalho bom de um ministro da Fazenda envolve três coisas: primeiro, paciência. Segundo: ter equipe boa. O Ministério da Fazenda tem quadros muito bons. Desde o início deste ano, sem exceção, todos os secretários imediatamente abaixo do [ministro da Economia] Paulo Guedes são funcionários públicos com mais de 20 anos de carreira. O novo ministro deve, e é salutar, trazer três ou quatro pessoas de fora para ajudá-lo na formulação de políticas, mas hoje o Brasil tem servidores competentes. E o terceiro ponto, importantíssimo, é ter bom relacionamento com o Congresso. Quem tem posição alta em cargo público precisa saber que todo dia vai conversar com o Congresso e a imprensa. Setor público é como se você publicasse balanço de empresa todos os dias.
Valor: E Nelson Barbosa no Planejamento, como se tem cogitado?
Mansueto: Precisamos dar o benefício da dúvida para o início do governo. Creio que eles próprios reconhecem que essas primeiras semanas após a eleição foram muito tumultuadas, os sinais não foram muito claros, foi dada uma mensagem de que tem de escolher entre o fiscal e o social. A própria história do Lula como presidente mostrou que não há essa contradição. Teve uma série de declarações que assustaram um pouco o mercado, mas acho que não devemos tirar o que será o governo Lula do que aconteceu nas últimas três, quatro semanas. Lula começou a articulação política apenas há duas semanas, quando veio para Brasília. É um governo que ainda nem começou. O Nelson Barbosa [se assumir] no Planejamento também é economista experiente, já participou do governo, reconhece os limites, o que pode ser feito ou não, entende os sinais de mercado. Se derem os sinais corretos, eles têm tudo para começar um governo muito bom. Mas têm de sinalizar que vão ter responsabilidade fiscal, reforma tributária boa. Tem um economista, não sei se ele estará ou não no governo – já esteve no governo Lula por oito anos – que é o Bernard Appy, uma das pessoas no Brasil que mais entendem da questão tributária. Agora, para o mercado se animar, ele não está olhando detalhe, ele quer apenas a mensagem correta.
Valor: Mas mensagem correta permite manter os R$ 200 bilhões?
Mansueto: Acho muito alto. Acho que isso será reduzido. Primeiro, acho difícil o governo conseguir elevar o gasto em R$ 200 bilhões em um ano. Ele só conseguiria se fosse tudo transferência de renda, que tem execução rápida. Mas em investimento, por exemplo, você não consegue sair de R$ 40 bilhões para R$ 80 bilhões em um ano. Segundo ponto: eles podem voltar com algum tipo de imposto. Não há lógica em um imposto federal zero em gasolina. Inclusive, é contra a agenda ambiental. Foi uma medida emergencial e talvez tenha volta gradual, à medida que o preço da gasolina baixar.
Valor: Só voltar com isso não resolve o financiamento, não?
Mansueto: Se você conseguir sinalizar que vai fazer isso ao longo de 2023, mesmo que tenha impacto só em 2024, acho que o mercado já melhora. A conta não será de R$ 200 bilhões. A volta do imposto sobre combustível já daria R$ 50 bilhões. Eventualmente, vão ter de mexer em alguns benefícios tributários especiais, o que poderia dar uns R$ 50 bilhões. Nada disso é fácil, mas tem de sinalizar.
Valor: Em quais benefícios especiais tributários é preciso mexer?
Mansueto: É preciso mexer nos regimes especiais, mas é difícil. O próprio Lula tentou mexer no lucro presumido, por exemplo, duas vezes. Outra coisa é o abatimento de despesa de saúde. O Brasil tem o SUS, sistema público e universal de saúde. Todo país com sistema assim não deixa abater integralmente gasto de saúde no sistema privado. O Brasil limita dedução de gasto com educação no IR, mas não os de saúde.
Valor: As reformas precisam sair em 2023?
Mansueto: Todos os governos do Brasil desde o Plano Real fizeram grande parte dos ajustes no primeiro ano. Eles terão de dar sinais no primeiro ano de parte do que será, mais ou menos, o governo Lula. A gente vem de dois anos de crescimento forte. Se o novo governo der os sinais corretos e conciliar a responsabilidade fiscal com a social, que é o que todo mundo espera, eu acho que eles vão começar o governo muito bem.
Valor: O sr. foi sondado para voltar para o governo Lula?
Mansueto: Não, eu acabei de sair do setor público em 2020. Acho que todo mundo tem de torcer para o governo dar certo e tem que tentar ajudar. A forma de ajudar é justamente fazendo advertências, apontando alternativas melhores, porque eu acho que o Brasil está em uma posição muito boa.
Fonte: Valor Econômico