29 Feb 2024 ÍTALO LO RE
Facção criminosa diversificou formas de lavar dinheiro à medida que avançou no tráfico internacional de drogas. Uso de criptomoedas, fintechs e igrejas substituiu táticas antigas para esconder o dinheiro sujo como compra de casas para abrigar cofres. Maior sofisticação dificulta trabalho de investigadores.
Pix liberado “Facções estão usando Pix, contas falsas e até fintechs para coletar dinheiro”, diz promotor
Do uso de igrejas como fachada até a criação de contas em bancos digitais, o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa do País, tem diversificado as formas de lavar dinheiro para esconder os ganhos obtidos com o tráfico internacional de drogas e driblar a fiscalização da polícia. A estimativa é de que a facção lucra US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5 bilhões) ao ano, em atuação que extrapola as fronteiras.
Autoridades policiais ouvidas pelo Estadão apontam que o avanço do tráfico de cocaína criou uma maior necessidade não só de o PCC, como de outras organizações criminosas, de sofisticar as formas de lavar dinheiro e tirar o peso de estratégias já conhecidas pelos investigadores. “Seguir o caminho do dinheiro”, afirmam promotores e delegados, tem se tornado algo cada vez mais complexo. “Antes, o PCC mandava 100 kg, 200 kg, 300 kg. Hoje são de 4 a 5 toneladas por mês”, afirmou o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP).
A venda de cocaína para a Europa é considerada o atual carro-chefe. Segundo maior consumidor de pó do mundo e vizinho de países produtores, o Brasil tem forte atuação no envio para África e Ásia. Essa maior movimentação, acrescentou o promotor, criou uma maior necessidade do PCC de ampliar as formas de lavar dinheiro. Não à toa, esse tem sido um dos focos principais das denúncias mais recentes oferecidas no âmbito da Operação Sharks, do MP-SP, além de ser abordado em investigações em outros Estados.
DAS ‘CASAS-COFRE’ AO SISTEMA DIGITAL. Um reflexo da sofisticação das formas de lavar dinheiro tem sido o gradual abandono das chamadas “casas-cofre”, tradicionais nos esquemas de lavagem de dinheiro do PCC. “Antigamente, se arrecadavam, por exemplo, R$ 10 milhões, compravam uma casa, construíam um cofre – ou enterravam o dinheiro – e colocavam uma família para morar. Depois, de vez em quando, abriam o cofre para pagar um fornecedor”, disse Gakiya. Outra forma tradicional de lavagem são postos de gasolina.
Com o fortalecimento da facção, um dos métodos que crescem é o de se infiltrar na administração pública. Fora dos contratos com governos, as estratégias incluem até aplicar o rendimento ilícito em criptoativos. “Há situações também, que ainda estamos investigando, de criminosos ligados ao PCC criarem as próprias fintechs, os bancos digitais. São pelo menos duas ou três instituições, que estão sob investigação, ligadas a criminosos até famosos do PCC”, disse Gakiya.
Em 2023, uma das fases da Operação Sharks prendeu dois operadores que se reportavam diretamente a dois dos principais líderes do PCC, Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, e Odair Mazzi, o Dezinho. Dezinho está preso desde julho e Tuta é considerado foragido. Os operadores usavam criptomoedas e contas em bancos digitais, conforme a investigação, para driblar o rastreamento dos caminhos percorridos pelo dinheiro.
As movimentações diluídas e capilarizadas e a fragilidade do sistema de fiscalização dificultam o trabalho dos investigadores. “As facções estão usando Pix, contas falsas e inclusive fintechs para coletar dinheiro do tráfico. É muito fácil criar e descartar uma conta, então se aproveitam disso. Pegam CPF e dados pessoais de quem não tem envolvimento com o crime, são (réus) primários, e criam contas, especialmente nas fintechs, e passam a movimentar valores”, disse Augusto de Lima, promotor do Ministério Público do Rio Grande do Norte.
IGREJAS. O MP potiguar deflagrou em 2023 uma importante fase da Operação Plata, criada para desmantelar um esquema encabeçado por nomes ligados ao PCC investigados por usar sete igrejas para lavar dinheiro em diferentes Estados: além do Rio Grande do Norte, havia unidades na Paraíba e em São Paulo. “As igrejas não foram criadas para esse fim, mas eram usadas para fazer o que chamamos de mescla: uma mistura de recursos lícitos – dízimos e doações dos fiéis – e também recursos ilícitos”, disse Lima, um dos responsáveis por oferecer a denúncia à Justiça. Unidades da Assembleia de Deus para as Nações de Jardim de Piranhas (RN) e Sorocaba (SP) estão entre as investigadas. Procuradas pela reportagem, nenhuma das igrejas se manifestou.
A ofensiva teve como alvo principal Valdeci Alves dos Santos, o Colorido, de 52 anos, criminoso que já foi apontado como n.º 2 do PCC nas ruas – hoje ele está preso da Penitenciária Federal de Brasília. Além dele, havia seu irmão, Geraldo dos Santos Filho, de 48 anos. Ele é acusado de se passar por pastor no esquema.
A suspeita é de que o grupo, composto por aproximadamente 12 integrantes, tenha lavado mais de R$ 23 milhões ao longo dos últimos dez anos, em esquema que também envolvia compra de fazendas e imóveis para “esconder” o dinheiro do tráfico.
NÃO SE RESTRINGE AO PCC. Usar o comércio local para se esconder das autoridades também segue como tática comum – tanto do PCC quanto de organizações criminosas menores. Mas, agora, esse modelo também é combinado com esconderijos digitais pelas facções locais. No fim de 2023, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul deflagrou a Operação Mercado, que teve como foco um supermercado em São Leopoldo. Ordens judiciais também foram cumpridas em Novo Hamburgo, Canoas e Uruguaiana.
As investigações indicam que o Super Machado seria usado para lavar dinheiro da facção Os Manos, considerada a principal força em algumas regiões gaúchas. Com a quebra do sigilo fiscal, houve a constatação: de 2017 e 2021, o Super Machado teria movimentado R$ 473 milhões.
Procurado agora, o estabelecimento não se manifestou. Já a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), sobre a suspeita do uso de fintechs pelo crime organizado, afirmou, em nota, que as instituições “adotam rígidas medidas de controle e monitoramento de transações financeiras, seguindo as legislações, os normativos e boas práticas nacionais e internacionais, trabalhando em parceria com os órgãos de prevenção e combate a crimes financeiros”. A entidade frisou ainda que os bancos não têm poder de polícia, mas buscam repassar informações continuamente às autoridades. •
Fonte: O Estado de S. Paulo

