O ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore afirma, em relatório de sua empresa de consultoria, que o bom desempenho da economia brasileira em 2023 reflete apenas um surto de crescimento, puxado pelo forte impulso fiscal, em particular as transferências de recursos à população.
Ele questiona se a taxa neutra de juros, aquela que não acelera a inflação, não teria subido a um percentual próximo de 6 % ao ano, em termos reais (descontada a inflação). Também diz que a aceleração em dezembro da inflação subjacente de serviços “coloca um alerta para o plano do Banco Central das quedas de juros em ritmo de 0,5 ponto percentual”.
“Embora tenha seduzido pessoas influentes, a narrativa de que estaríamos nos beneficiando da maturação de reformas ocorridas no passado não sobrevive diante das claras evidências”, diz relatório distribuído a clientes pela consultoria A. C. Pastore & Associados.
O verdadeiro motor do crescimento da economia em 2023, que deverá ficar em cerca de 3%, é um assunto que vem dividindo as opiniões de economistas. Alguns sustentam que a sequência de reformas econômicas feitas a partir do governo Temer teria aumentado a capacidade de a economia crescer sem gerar desequilíbrios, como a aceleração da inflação – tecnicamente, teria havido um aumento do Produto Interno Bruto (PIB) potencial.
“Está ficando cada vez mais claro que o crescimento de 2023 não se deve ao crescimento do PIB potencial”, afirma o relatório.
A consultoria compara, no relatório, a situação atual com o último surto de crescimento do PIB potencial, ocorrido em 2010. O que salta aos olhos é que, naquele período, a taxa de investimentos chegou a 21% do PIB, comparada com 17% do PIB no terceiro trimestre de 2023.
Ele destaca dois fatores que permitiram, naquele período, o bom desempenho dos investimentos. De um lado, houve uma forte alta dos preços das commodities, que atuou para valorizar a taxa de câmbio e baratear a importação de bens de capital pelas empresas. De outro, a política fiscal responsável abriu espaço para o Banco Central cortar os juros, reduzindo o custo de capital pelas empresas.
Ultimamente, argumenta Pastore, a taxa de investimento tem oscilado muito próximo da taxa de depreciação – ou seja, mal dá para repor máquinas e equipamentos que ficam obsoletos.
“A comparação entre o que se passou em 2010 e o que vem ocorrendo agora é o suficiente para que deixemos de lado a narrativa de que em 2023 também tivemos um aumento do PIB potencial”, diz o relatório.
A força por trás do crescimento do PIB, para ele, é o impulso fiscal, em particular as transferências de renda por meio de programas sociais. “Grande parte deste estímulo ocorreu através das transferências de renda, com os gastos do programa Bolsa Família tendo saído de algo próximo a R$ 40 bilhões em 2019 para R$ 168 bilhões em 2023”, diz o relatório.
Além de ajudarem a turbinar o consumo, os programas sociais têm também implicações no mercado de trabalho, ou seja, afetam as condições de oferta na economia.
Ele cita um estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV que mostra que altas de 10 pontos percentuais no pagamento de benefícios sociais são associadas com redução de 1,1 ponto percentual na taxa de participação no mercado de trabalho.
“A diminuição da força de trabalho aquece ainda mais o mercado, elevando salários reais”, afirma o relatório. “O consumo forte durante o ano elevou a demanda por trabalhadores nesses setores, e a oferta diminuída reforçou seus ganhos salariais.”
Conflito fiscal e monetário
A moldura mais geral dessa situação é o que Pastore vem chamando de conflito fiscal e monetário. No passado, argumenta, os grandes ciclos de queda de juros estão associados à política fiscal. Quando o fiscal vai mal, tem pressão na taxa de juro.
A política fiscal de 2002 a 2010, por exemplo, gerou superávits primários que baixaram a dívida bruta. A taxa de juros neutra (aquela que mantém a economia em equilíbrio, sem gerar pressões inflacionárias) caiu de 12% reais ao ano para 4% ao ano. Voltou a subir, sustenta, no governo Dilma Rousseff, quando houve um desmonte da política fiscal anterior que reduzia o endividamento.
Pastore questiona se, hoje, a taxa neutra de juros não estaria em 6% ao ano em termos reais, em vez dos 5% ao ano estimados no consenso do mercado financeiro e os 4,5% usados pelo Banco Central no seu modelo de projeção de inflação.
“A taxa neutra nada mais é do que a taxa real de juros livre de riscos que iguala a demanda agregada ao PIB potencial”, afirma o relatório. “O que acabamos de descrever é uma política fiscal cujo efeito é o de expandir a demanda agregada e, consequentemente, elevar a taxa neutra de juros.”
“Será que não teríamos que considerar uma taxa neutra mais próxima de 6% do que 5%?”, questiona, no relatório. “A resposta a essa indagação pode mudar as estimativas em relação à taxa de juros ao final do atual ciclo de normalização monetária.”
Hoje, a previsão consensual do mercado é que os juros nominais encerrem o ano em 9% e que, em 2025, caiam a 8,5% ao ano. Uma taxa neutra real de 6% ao ano significa, em termos nominais, uma taxa na casa dos 9,5%, considerando a projeção de inflação de longo prazo do mercado de 3,5%.
“Se o governo abandonar esforços para cumprir o arcabouço fiscal e elevar gastos para estimular a economia, poderá colocar pressões adicionais no mercado de trabalho apertado e na inflação.”
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Affonso Celso Patore, ex-presidente do BC e sócio da A C Pastore Consultores, afirma, em relatório de sua empresa, que o bom desempenho da economia brasileira em 2023 reflete apenas um surto de crescimento — Foto: Leo Pinheiro/Valor
Fonte: Valor Econômico

