O encontro entre os dois presidentes será ofuscado pelo conflito de Israel com o grupo terrorista Hamas, baseado em Gaza. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, conclamou a China no fim de semana a usar seus laços de amizade com o Irã – que apoia o Hamas – e sua influência mais ampla no Oriente Médio para evitar uma escalada do conflito. A pressão para que Xi – e indiretamente sobre Putin, que também é próximo de Teerã – atuem na crise deverá ser intensificada.
Por enquanto, os dois líderes deverão se concentrar no fortalecimento de suas relações. A dependência que a Rússia tem da China atingiu todos os aspectos de sua economia nos 20 meses desde a invasão da Ucrânia. Com o Ocidente cortando os laços comerciais, as exportações chinesas para a Rússia aumentaram 57% neste ano até agora. O yuan respondeu por quase metade do valor das transações cambiais em Moscou em setembro – sendo que esse número era de apenas 0,4% em janeiro de 2022, segundo dados compilados pela Bloomberg Economics. A China é agora o maior importador de combustíveis fósseis da Rússia, com os embarques de carvão mais do que duplicando deste 2020.
A participação do líder russo no Fórum da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês), organizado por Xi e que começou ontem, é sua primeira viagem ao exterior – além de visitas a ex-Estados soviéticos – desde que o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu uma ordem de prisão contra ele em março, por supostos crimes de guerra na Ucrânia. A visita permitirá à Rússia consolidar esse apoio econômico crítico e pressionar Pequim para assinar acordos sobre um novo gasoduto.
De sua parte, Xi procura uma Rússia confiável como parceira poderosa na construção de sua visão de uma ordem mundial alternativa. Uma ordem baseada na velha desconfiança em relação ao Ocidente – especialmente os EUA e seus aliados da Otan – e um desejo de reforçar sua posição sobre Taiwan, que Pequim vê como uma província rebelde, mas que os EUA se comprometeram em apoiar.
Putin é uma parte fundamental disso. De fato, se a China invadir Taiwan – algo improvável no curto prazo -, a Rússia poderia se mostrar fundamental para garantir o fornecimento de alimentos e combustíveis e, possivelmente, oferecer cobertura política no Conselho de Segurança da ONU.
Mas há uma inquietação entre alguns especialistas e acadêmicos em Pequim, que acreditam que a China está ganhando pouco com a relação, além de um novo mercado para seus automóveis, televisores e smartphones e do acesso a petróleo e gás russos baratos. Isso tem levado a questionamentos sobre a possibilidade de Pequim ter apostado demais no líder russo.
“Acho que Putin não é um parceiro ideal para Xi Jinping – ele esperava muito mais”, diz Jakub Jakobowski, vice-diretor do Centre for Eastern Studies de Varsóvia. “Ele é cada vez mais um fardo para Xi internamente, para aqueles segmentos da elite chinesa que não querem endossar essa grande relação que a Rússia começou.”
Xi está tentando encontrar um ponto de equilíbrio, que fica cada vez mais difícil à medida que o conflito se arrasta. Não forneceu nenhuma grande ajuda militar à Rússia capaz de provocar sanções dos EUA contra a China, e já alertou contra o uso de armas nucleares e ataques contra civis. Ao contrário de Putin, que é tratado como um pária pelo Ocidente, Xi quer uma relação estável com os EUA e pode se encontrar com o presidente Joe Biden em novembro.
Mas sua recusa em condenar explicitamente a invasão minou a reivindicação de neutralidade de Pequim e reforçou o ceticismo entre alguns países do G-7 (grupo das sete maiores economias ricas) sobre sua proposta de 12 pontos para a resolução da crise na Ucrânia.
O esforço de paz de Xi rendeu-lhe alguma credibilidade entre países emergentes, como o Brasil. De fato, ele passou a primeira parte do ano tentando atuar como um pacificador global, ajudando os rivais de longa data Arábia Saudita e Irã a alcançarem uma trégua diplomática. Posteriormente, ele propôs uma conferência de paz entre Israel e a Palestina, motivo pelo qual ele agora está sendo estimulado a assumir um papel para apaziguar o conflito com o Hamas. Pequim pediu um cessar-fogo, mas, além disso, sua influência não está clara. Para Putin, o conflito poderá ser útil se significar um desvio do público e das potências ocidentais dos combates na Ucrânia.
Xi tem preocupações mais imediatas em casa. Uma desaceleração econômica aumenta o risco de distúrbios sociais. Os ministros das Relações Exteriores e da Defesa parecem ter sido depostos nos últimos meses e houve uma reformulação dos generais responsáveis pela gestão do arsenal nuclear.
Os EUA estão aumentando as restrições às exportações de tecnologias avançadas, a UE está investigando os subsídios a veículos elétricos da China e alguns vizinhos asiáticos aumentaram seus gastos militares em meio ao aumento das tensões sobre Taiwan. O principal negociador comercial da UE, Valdis Dombrovskis, alertou que a posição da China sobre a Ucrânia está prejudicando a disposição das empresas de investir na segunda maior economia do mundo.
Pequim “teme que enquanto continuarem colocando a China e a Rússia na mesma categoria”, isso poderá demolir a relação com a Europa, os EUA e outros países, diz Ngeow Chow Bing, diretor do Instituto de Estudos da China da Universidade de Malaya. “A China quer se apresentar como alguém que os dois lados possam confiar.”
Putin foi o primeiro líder estrangeiro que Xi visitou após se tornar presidente da China em 2013. E nos últimos dez anos os dois frequentemente foram descritos como tendo uma relação próxima, apesar de não partilharem uma língua comum. Em 2019 eles comemoraram o aniversário de Xi juntos no Tajiquistão: Putin deu como presente ao líder chinês uma caixa de sorvete. Os dois presidentes – que mudaram as regras de seus países para se perpetuarem no poder – se encontraram pela última vez em Moscou em março, dias depois que o TPI emitiu sua ordem de prisão contra Putin. Em uma entrevista transmitida pela televisão russa na segunda-feira, Putin disse sobre sua relação com Xi: “Se concordamos com algo, podemos ter certeza que os dois lados cumprirão a sua parte do acordo”.
Ainda assim, segundo um diplomata na Europa, existe também um elemento de rivalidade na dinâmica entre os dois líderes. As relações bilaterais sempre foram tensas – às vezes abertamente hostis. Em 1969, choques de fronteira levaram a União Soviética a ameaçar usar armas atômicas contra a China. Aquela “chantagem nuclear” é um dos motivos pelos quais Pequim se opõe a qualquer ameaça parecida da Rússia na Ucrânia, segundo Wang Yiwei, um ex-diplomata da China na UE.
Outra “linha vermelha” para Pequim, acrescenta ele, é o princípio da soberania territorial consagrado na Carta da ONU. Isso é algo que a China usa regularmente para reforçar sua reivindicação sobre Taiwan. E embora Xi pareça compartilhar das preocupações de Putin sobre a expansão da Otan, isso não é um apoio total à Rússia.
Wang diz que aqueles que apoiam Moscou “não apoiam” a invasão da Ucrânia, e sim celebram “o comportamento russo contra a hegemonia ocidental”. Wang, influente acadêmico e diretor do Instituto de Assuntos Internacionais da Universidade Renmin, acrescenta: “Muitas pessoas odeiam a Rússia e criticam a Rússia”.
Uma área de tensão tem sido a BRI – o programa histórico de política externa de Xi para ampliar a influência da China por meio de projetos avaliados em US$ 1 trilhão -, que tem feito incursões na Ásia Central, um quintal da Rússia.
Por hora, a Rússia pouco pode fazer sobre o desequilíbrio nas relações. “Moscou necessita demais da cooperação de Pequim para manter sua economia funcionando”, diz Alexander Isakov, economista para Rússia na Bloomberg Economics. “Moscou terá de arcar com a maior parte dos custos.”
O crescimento do comércio com a Rússia é um raro ponto positivo para a China. O aumento das exportações para a Rússia é em parte atribuído ao fato de as empresas chinesas de bens de consumo estarem preenchendo o vácuo deixado pelas marcas ocidentais, que saíram do país em virtude das sanções. As remessas de veículos, peças e acessórios chineses aumentaram para US$ 14 bilhões entre janeiro e agosto, um crescimento de mais de cinco vezes em relação ao mesmo período de 2021, segundo dados da Administração Geral Alfandegária da China.
A longo prazo, Moscou precisa de investimento chinês na produção nacional. Setores como o automotivo precisam de ajuda para preencher o vácuo deixado pelas montadoras ocidentais. Só oito das 14 fábricas de automóveis da Rússia estão operacionais. Pequenas montadoras chinesas já produzem na Rússia, mas para retornar à produção pré-invasão, de cerca de 1,4 milhão de veículos (em 2022, foram 451 mil unidades), outras duas ou três grandes companhias teriam que estabelecer linhas de montagem na Rússia, segundo a Bloomberg Economics.
“Para a Rússia, uma integração mais estreita com a China é necessária, pois precisa encontrar um substituto para a tecnologia, capital que antes era fornecido pela UE e outros países do G-7”, diz Isakov. “Para a China, o risco é que o capital investido na Rússia possa perder valor quando e se as sanções contra Moscou forem relaxadas ou derrubadas e seus fabricantes terão que competir novamente por participação de mercado com montadoras de países do G-7.”
Pequim está proporcionando um alívio às preocupações financeiras mais urgentes de Moscou. A China se tornou o maior comprador do barato petróleo e gás russos. A China comprou US$ 37,5 bilhões em petróleo da Rússia nos primeiros oito meses de 2023, segundo dados chineses. No fim de 2022, as remessas de carvão subiram para mais de 64 milhões de toneladas, um recorde que deverá ser quebrado este ano, pois as importações já superaram 70 milhões de toneladas até agosto.
Ao mesmo tempo em que fornece essa tábua de salvação financeira, Pequim espera um acordo mais favorável com Moscou sobre o gasoduto Power of Siberia 2. Moscou alardeia um acordo iminente, mas Pequim tem sido muito mais reticente e nenhum contrato foi assinado até agora. Analistas acreditam que a Rússia fará mais pressões por negócios e acordos de cooperação nesta semana.
A internacionalização do yuan, que representa só 3% das reservas cambiais mundiais, é vista por Pequim como outra frente em seus esforços para desafiar o domínio dos EUA sobre o sistema financeiro global. O uso do yuan pela Rússia nos pagamentos a exportações aumentou para 29% em agosto, de zero antes da invasão, enquanto representou 38% das importações contra 4% no mesmo período.
Mas Pequim não pode pressionar demais, diz Yun Sun, pesquisadora sênior e diretora adjunta do programa East Asia do “think-tank” Stimson Center. “O atual atoleiro estratégico da Rússia não vai durar para sempre”, diz ela. “Para Pequim, o foco não é necessariamente quanto a Rússia está pronta para ceder, e sim quais os custos que a China precisa suportar.” (Tradução de Mario Zamarian)
Fonte: Valor Econômico

