Na avaliação do economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, o Brasil não chegará a 2027 em uma situação de insolvência, mas a conjuntura fiscal do País será “mais grave do que temos hoje“ — com crescimento menor e juros ainda elevados. De acordo com ele, a próxima administração terá de apresentar um plano para as contas públicas logo do início do mandato.
“E se não fizer? Se não fizer, a dívida vai explodir”, afirma. “Também não acho que, mesmo nesse cenário de estresse, a gente vai para a insolvência, mas vamos para um crescimento quase constante — e por muito tempo — da dívida pública. Ela pode passar facilmente de 100% do PIB (Produto Interno Bruto) no horizonte de dez anos. Isso é grave.”
Ex-secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, Salto avalia que o Brasil tem uma agenda ampla na área fiscal. Ele diz que o País precisa avançar na revisão dos subsídios concedidos e das políticas públicas em vigor.
“O Orçamento deveria ser o ápice do processo democrático, mas hoje ele virou um piloto automático”, afirma.
A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão para a série Ajuste Fiscal: A encruzilhada do próximo governo.
Qual será a situação das contas públicas no próximo mandato?
Não vejo as contas públicas tão ruins quanto a maior parte dos colegas especialistas. Sim, a dívida pública é muito alta. Sob o critério de comparação internacional, a nossa dívida é cerca de 18 pontos do PIB mais alta do que a média da dívida dos países emergentes, se pegar a dívida bruta no conceito do FMI (Fundo Monetário Internacional). E também é crescente, mas não é explosiva. E esse é o primeiro ponto. O segundo é que o Tesouro tem um caixa gigantesco. Se o Tesouro quiser ficar dez meses sem emitir um centavo de dívida pública, ele consegue financiar as necessidades de financiamento todas. E o terceiro são as contas externas, que até pioraram recentemente. Mas o Brasil tem essa vantagem. A gente tem US$ 345 bilhões de reservas internacionais. Mas dizem: ‘Ah, a dívida é muito cara’. Sim, porque a taxa real de juros é impeditiva. Está na estratosfera. Em parte, é explicada pelo fiscal, mas não é só. Nós adotamos uma meta de inflação que não tem nada a ver com a nossa realidade. Talvez a taxa de juros hoje real pudesse estar não em 10%, mas na metade disso ou, pelo menos, em 7%, 8%. Mais baixa do que está hoje em termos reais.
Na avaliação do sr., quais são os principais problemas?
A gente tem problemas graves, porque a qualidade do gasto é muito ruim. E temos um modus operandi da gestão fiscal simplesmente surreal, que é a história do contingenciamento e do bloqueio, com um Orçamento super-rígido e que vai espremendo a despesa discricionária. Leia-se investimento. O Estado brasileiro está caminhando para ter um investimento zero daqui a alguns anos. As emendas parlamentares, que eram uma fração do que são hoje, estão ocupando espaço na discricionária (não obrigatória). Tem a parte da saúde e da educação. As duas áreas voltaram a ser vinculadas à receita, e elas também ocupam um espaço relevante na discricionária.
O que precisa mudar?
Você vai espremendo a despesa para conseguir sustentar o crescimento do gasto obrigatório. Isso tem de mudar. Precisa mudar a composição do gasto. E não é sair cortando, porque, se fosse fácil assim, alguém já teria feito. Nós tivemos um ministro claramente liberal, de orientação liberal, no governo anterior, e estamos agora com um governo, digamos, mais desenvolvimentista ou mais de centro-esquerda. Nenhum dos dois conseguiu resolver o problema. Na verdade, é um problema estrutural. A lei orçamentária, a lei de finanças públicas, vem do governo de João Goulart (1961-1964) ainda. Várias regras fiscais foram tentadas. Agora, mais recentemente, o novo arcabouço fiscal.
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A prática do processo orçamentário foi sendo adaptada sem uma modernização à altura dessa legislação. A confusão que se fez no processo orçamentário é um problema muito mais grave do que esse que nós discutimos diuturnamente, se o Brasil vai fazer um superávit x ou y. É um problema importante também. Só que nós não estamos conseguindo fazer o bendito superávit para estabilizar a dívida, porque tem todo esse monstrengo orçamentário por trás disso. Por que o gasto obrigatório cresce sem parar e a gente não consegue fazer reformas? Por que não se discute se o orçamento do Fundeb está adequado? Isso também tem de mudar. Nós temos de estabelecer regras que permitam, primeiro, avaliar o que a gente já faz para depois tomar a decisão se precisa aumentar, se precisa diminuir ou até extinguir alguns programas.
O sr. poderia exemplificar?
Por exemplo, na área social. É uma área tão cara a este governo e a outros que também passaram. Mesmo o governo anterior, na hora do vamos ver, quando a pandemia pegou, fez um gasto importante, porque a pressão social e as instituições funcionam. Só que nós temos o abono salarial, o seguro-desemprego, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), têm os subsídios e subvenções, têm os auxílios, tem a Previdência. Tudo isso precisa ser reorganizado. Será que o abono salarial é um gasto que ainda se justifica? Ele está gerando o emprego e a renda que eram preconizados por esse programa de décadas atrás? A avaliação e o monitoramento das políticas públicas têm de entrar para valer. Não adianta só colocar na Constituição, como já foi colocado, e no arcabouço fiscal. Só que vai ver o Congresso. O Congresso só se importa, em geral, com honrosas exceções, com quanto vai levar de emenda parlamentar. Se pegar a média anual de 2016 e 2017 de emendas e comparar o quanto se gastou ano passado, houve 700% de aumento. O ministro Flávio Dino, do STF, entrou nesse tema. Ainda bem, porque essa coisa está virando caso de polícia. O problema fiscal é muito mais complexo do que apenas a discussão de que precisamos gerar um superávit de tanto. Precisamos. A Instituição Fiscal Independente calcula algo como 2% do PIB de superávit para estabilizar a dívida/PIB, se você voltar a ter juros civilizados. O que também depende dessas sinalizações na direção da responsabilidade fiscal.
E como chegar lá, então?
Todas as medidas são difíceis. Primeiro, é voltar o Fundeb ao que era antes ou, pelo menos, a um caminho intermediário. Em vez de deixar ir para os 23% (a complementação da União), volta para 19%, 18%. Com isso, já economiza uns R$ 30 bilhões por ano. Tem o gasto tributário. O Haddad fez muita coisa boa. Isso precisa ser reconhecido porque, quando a gente conversa com alguns setores do mercado, parece que o Brasil está à beira do precipício. Não faltam pregadores do caos. No gasto tributário, o Haddad fez algumas coisas nisso, mas muito pouco ainda. E é difícil fazer. Veja esse projeto do deputado José Guimarães, do PT, que foi enviado com o projeto de Lei Orçamentária Anual. O que ele faz? Ele pega todo o gasto tributário, tira as figurinhas carimbadas de sempre, como Zona Franca de Manaus, filantrópicas e o Simples Nacional. Sobra lá um volume de uns R$ 120 bilhões de gasto tributário, e aí o projeto manda cortar 10% de forma linear. Vai dar uns R$ 12 bilhões. Como tem uma parte que é Imposto de Renda, tem de partilhar com Estados e municípios, vai sobrar uns R$ 10 bilhões para a União. Já é alguma coisa. Mas nós temos de ir além disso. Para 2027, dá para pensar num projeto mais ambicioso.
O que seria um projeto mais ambicioso?
Pela estimativa que o Josué Pellegrini e eu fizemos na Warren, o gasto tributário está em R$ 621 bilhões. Todo mundo tem de dar sua cota de colaboração. Eu faria duas coisas. Primeiro, corte linear, que seja 10% de tudo, inclusive da Zona Franca de Manaus, do Simples, de todo mundo. Em paralelo, não pode deixar para depois, tem de instituir um programa de avaliação de todos os gastos tributários. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) pode ser o locus para colaborar com o governo nessas avaliações. Com base nessas análises, aí, sim, nós vamos decidir. Por exemplo, os abatimentos de gastos de despesas médicas no Imposto de Renda. É uma coisa que me beneficia, beneficia a classe média, a média-alta e a alta. Elas representam quase R$ 30 bilhões por ano que você deixa na mesa. Por que não acaba com isso? Têm alguns programas que nem deveriam existir mais, como esse que eu falei agora. É um exemplo.
Agora, têm outros que a gente pode concluir que: ‘Olha, esse daqui a avaliação está mostrando que ele gerou o resultado, está gerando emprego’. E isso tem de ser bem feito. Tem de ter a participação da academia. Tem de ter gente que entenda do riscado. E aí, para cada gasto tributário, você vai ter uma avaliação diferente. Então, você vai fazer o ajuste emergencial de 10%. Já vai dar R$ 60 bilhões. Mesmo que o valor de gasto tributário seja metade. Se cortar 10%, vai dar R$ 30 bilhões. Já houve algum avanço nessa direção com a ministra Simone Tebet. Ela instituiu, por meio do novo Orçamento, as spending reviews, as revisões periódicas do gasto. Só que ainda muito tímido. É relevante como um sinal, como um início, mas, do ponto de vista agregado, o Orçamento tem R$ 2,5 trilhões, e você está revisando R$ 10 bilhões, R$ 9 bilhões. É muito pouco. Precisa ser uma revisão total. E aí sim a gente vai poder começar a discutir as obrigatórias.
Então, como avalia questão a indexação das despesas ao salário mínimo?
A indexação das despesas ao salário mínimo é um problema. Por quê? Porque não vai mais dar reajuste para as despesas sociais? Não. É porque o salário mínimo é uma política de mercado de trabalho. Só que, por conveniência e por outras razões, a gente acabou atrelando a política de mercado de trabalho à política social. Isso é ruim, porque o salário mínimo tem de evoluir com a produtividade. Os trabalhadores que estão na base da pirâmide têm de perceber e usufruir dos eventuais ganhos de produtividade. Eu não acho que tem de parar de corrigir o salário mínimo. Tem de ter uma regra de correção pela produtividade. Só que as despesas sociais não podem crescer quando eu faço essa correção. E aí é uma briga importante que precisa ser comprada. Tem de conversar com o Supremo, com o TCU (Tribunal de Contas da União), com a academia, para que se faça de maneira adequada uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que trate os gastos previdenciários e sociais de maneira apartada da política salarial de mercado de trabalho. Aí já são mais R$ 35 bilhões se você conseguir essa desindexação.
E a questão de saúde e educação?
A antiga Emenda 95, de 2016, do teto de gastos, promoveu a mudança da vinculação à receita dessas duas áreas para uma correção permanente pela inflação. Só que o governo atual, em 2022, na transição, com a PEC da Transição, decidiu ressuscitar essa regra de vinculação à receita. O que foi um erro, porque eles não fizeram uma avaliação para saber se a regra da inflação estava sendo insuficiente para suprir essas duas áreas. O orçamento da saúde, se incluir as emendas parlamentares, já está em R$ 235 bilhões por ano. Não é pouco. Precisa ter uma avaliação. Nós estamos gastando pouco ou muito com saúde e educação? Para padrões internacionais, não é pouco. Agora, o dinheiro está chegando na ponta? Não é que não pode ter mais recurso para essas áreas.
Ano a ano, você tem de discutir com o Congresso. Se o Executivo, que tem o poder de iniciar o Orçamento, achar que tem de ter mais dinheiro para essas áreas, ele vai propor para o Congresso, dadas as regras fiscais e vai para o debate político. O Orçamento deveria ser o ápice do processo democrático, mas hoje ele virou um piloto automático. Para mim, essa é a raiz do problema fiscal no Brasil: o processo orçamentário entrou num piloto automático.
Qual será o papel dos outros poderes nesse debate?
Os parlamentares, com honrosas exceções, de novo, estão pouco se importando. Eles querem saber das emendas impositivas, que estão chegando a mais de R$ 52 bilhões no ano que vem. Talvez, até mais do que isso, porque, se você pegar o projeto de Lei Orçamentária Anual de 2026, que nem foi apreciado ainda pelo Congresso, o Executivo mandou, por exemplo, as emendas de comissão sem nada. Eles vão querer uns R$ 12 bilhões, R$ 13 bilhões. As emendas vão se aproximar de uns R$ 60 bilhões, provavelmente, para o ano que vem, o que é muito dinheiro. Com o Bolsa Família, por exemplo, estamos gastando uns R$ 170 bilhões. E o BPC, que cresceu bastante, está em R$ 120 bilhões. Só com as emendas, nós estamos gastando metade do BPC.
A gente perdeu qualquer padrão de referência, porque o Orçamento foi crescendo, o gasto foi crescendo, sem que houvesse um controle, uma avaliação e um planejamento para saber onde nós queremos chegar. O processo orçamentário deveria ser, no fundo, uma discussão do financiamento do desenvolvimento, aonde queremos chegar enquanto nação e quais são as prioridades, dado que os recursos são escassos. A dívida já é muito alta e a carga tributária também é alta. O que mais dá para fazer? Dá para você cortar também os subsídios e subvenções. Pega, por exemplo, o plano Safra. Já está indo para R$ 20 bilhões de equalização de juro. É despesa primária. Já é um setor que paga pouquíssimo imposto, ainda tem mais essa ajuda camarada, que está lá no Orçamento.
Mas tem uma bancada muito forte e grande…
Tem uma bancada forte. Politicamente, é difícil. Por trás dessa discussão também da reforma orçamentária, que tem de ser a prioridade em 2027, tem também a reforma política. A discussão da representatividade é muito importante. No passado, o Executivo negociava cargos e emendas. Hoje, nem isso consegue mais fazer. Ele negocia os cargos com as lideranças principais do Congresso e aqueles que compõem a base e os ministérios. A base do governo Lula é uma base de centro-direita, majoritariamente. Ele depende dessa turma, e essa turma não está muito antenada com o programa de governo, com as propostas de médio e longo prazos. Como que a gente retoma uma lógica em que o governo e o Congresso tenham instrumentos para negociar, mas que o Congresso devolva ao Executivo, em troca dessa negociação, o apoio necessário para as medidas estruturais?
Ou como se cria esse consenso entre os Poderes e com a população para avançar na questão fiscal…
A nossa Constituição é muito detalhada. A gente reclama muito da judicialização. Eu vejo de outra forma: graças a Deus, tem a judicialização. Se não fosse a judicialização, ninguém saberia, por exemplo, do problema das emendas Pix. Só os especialistas. O dinheiro voa de Brasília para a entidade ou de Brasília para o prefeito lá na ponta, sem controle. Ainda bem que o Supremo entra em alguns temas, e eu acho que é aí que vai ser um pouco da saída, porque, nesse caso, por exemplo, do Orçamento, quando o ministro Flávio Dino entra, faz audiências públicas, começa a colocar o dedo na ferida, o Congresso começa a se mexer: ‘Opa, vamos perder essa bolada que conseguimos, não queremos perder’. Aí é o espaço para negociação. Só que o Executivo precisa comprar essa briga também, porque o Judiciário não pode legislar. O Executivo tem de aproveitar esse ensejo da atuação do Judiciário para colocar na mesa uma reforma orçamentária.
O sr. disse que as contas públicas não estão tão ruim. Mas o que acontece se nada for feito?
Eu tenho dito que essa política atual é uma política de arroz com feijão. Ela está distante da ideal, mas também não flerta com o precipício. Se você conseguir fazer o mínimo, vai entregando um resultado primário ainda deficitário, a dívida cresce, mas a taxas decrescentes. Só que ela é muito grande. O ano de 2027 é o encontro marcado.
Eu entendo que, em 2027, nós não vamos ter uma situação de insolvência, de dificuldade de financiar a dívida. Só que vai ser uma situação mais grave do que nós temos hoje, porque o crescimento vai estar mais baixo — já está desacelerando —, e o juro ainda vai estar bem alto. Eu acho que o Banco Central começa a reduzir o juro já no começo do ano que vem, mas vai terminar o ciclo de queda ainda com dois dígitos. A taxa real de juros ainda vai estar alimentando a dívida. O que que vai ter de fazer? Em janeiro de 2027, vai ter de ter um programa pronto para implementar com medidas de ajuste. E se não fizer? Se não fizer, a dívida vai explodir. Nós vamos para uma trajetória em que a dívida vai crescendo mais rapidamente, porque o mercado vai precificar que a taxa de juros não vai cair tão cedo ou que vai ter de voltar a aumentar. Isso vai encarecer a dívida. Também não acho que, mesmo nesse cenário de estresse, a gente vai para a insolvência, mas vamos para um crescimento quase que constante — e por muito tempo — da dívida pública. Ela pode passar facilmente de 100% do PIB no horizonte de dez anos. Isso é grave. Nós vamos ter uma situação ainda mais distante da média dos países comparáveis.
E a consequência desse cenário?
Se nós formos para esse cenário de abandono de regra fiscal, de dívida crescendo sem parar, de não fazer um ajuste fiscal para valer estrutural, aí é crescimento baixo, inflação e juro alto. Essa combinação é muito ruim para a sociedade. No fundo, o que nós queremos é crescimento econômico. Também não tem ajuste se você não tiver o mínimo de crescimento. A receita precisa colaborar. A gente não pode achar também que, faz-se o ajuste fiscal, ato contínuo, vamos crescer. Não. O ajuste fiscal tem um componente recessivo também quando você contém o crescimento do gasto.
A questão é ter uma programação de dizer: ‘Olha, vamos fazer um ano de ajuste, vai ser um ano duro e, depois, nós vamos ter espaço para crescer’. Agora, esse ajuste não pode ser só para pagar dívida, só para estabilizar a dívida. Tem de ter também um compromisso com investimento, porque o Estado brasileiro foi à falência. Só com o crescimento é que você vai distribuir mais renda e ampliar políticas que dão resultado para aqueles que mais dependem do Estado. Se não conseguir recolocar o crescimento no centro da agenda, não vai adiantar ajuste fiscal, não vai adiantar nada. Nós temos de ter um planejamento. Tem de ter uma visão de futuro. Por isso, eu acho também que a reforma orçamentária pode ser o locus para discussão de tudo isso.
Fonte: Estadão

