Por Marta Watanabe — De São Paulo
15/02/2023 05h00 Atualizado há 5 horas
O déficit primário do governo central só será de 1% do PIB, dentro da meta anunciada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se a inflação acelerar, for para mais de 6%, ficar desancorada e sair da rota de convergência para as metas do Banco Central (BC), diz Marcos Mendes, pesquisador do Insper. Sem a inflação, diz ele, o déficit deve ficar em 1,5% do PIB em 2023.
O problema é que a inflação é como uma droga, que inicialmente ajuda nas receitas, “começa com um barato, mas depois vêm a rebordosa, a ressaca”, diz. O risco é de piora do quadro fiscal em 2024, quando a inflação trará efeito nos gastos e na economia. Para Mendes, o pacote divulgado por Haddad, com meta de déficit primário entre 0,5% e 1% do PIB em 2023, foca em receitas e é muito otimista. Além disso, afirma, há um total de R$ 53,9 bilhões em gastos já definidos pelo Congresso e que precisam entrar no orçamento. O pacote, aponta, coloca um “band-aid” neste ano, mas não resolve 2024 em diante. O déficit primário em 2024, diz, pode chegar a 1,6% do PIB.
Segundo o ex-assessor especial do Ministério da Fazenda na gestão de Henrique Meirelles e Eduardo Guardia – de maio de 2016 a dezembro de 2018, período em que foi aprovado o atual teto de gastos -, o novo arcabouço fiscal prometido, portanto, diz, deverá ter “regra bastante frouxa, com excesso de cláusulas de escape”. “Não dá para esperar muito vindo de um governo que acha que gastar mais vale a pena.”
A reforma tributária sobre consumo, defende Mendes, é o “grande ativo desse governo”, mas precisa ser aprovada no primeiro semestre de 2023. Caso isso não aconteça e o quadro fiscal piore ao fim do ano, há risco de a reforma ser superada entre as prioridades legislativas por “remendos tributários” para garantir receitas.
Inflação é mais ou menos como uma droga. No primeiro momento dá barato e depois vem a ressaca, a rebordosa”
O governo, afirma ele, gasta energia na direção errada com a briga com o BC. “Há uma avenida aberta para o governo gerar boas notícias.” Por exemplo, na área ambiental, aproveitando que “o presidente [Lula] tem aceitação internacional enorme” para conseguir financiamentos à preservação ambiental no Brasil, além de regular novas fontes de energia. “São temas sobretudo que ajudam a unificar o país. Quando as baterias vão para o lugar errado, perde-se o senso de prioridade, de urgência onde há oportunidade para avançar.”
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Como o sr. avalia o quadro fiscal do governo central em 2023?
Marcos Mendes: Em 2022 tivemos superávit primário, mas os principais itens de crescimento de receita de 2022 não vão se repetir. A arrecadação de IR e CSLL [Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido], além de royalties, por exemplo, foi influenciada por alta de preços de commodities. A experiência histórica mostra que esses preços não ficam altos pelo resto da vida. Houve também aumento de recursos de dividendos e participações de estatais, além concessões de serviços públicos, receitas que não devem se repetir porque o governo já disse que mudará essas políticas. Na despesa, poucos itens seguraram o gasto em 2022, como a não correção real do salário mínimo. Está resolvido que terá correção real. E o congelamento de salários dos servidores, para o qual foi anunciada política permanente de reajuste, o que impactará 2023 e os anos à frente. Em cima de tudo isso veio a PEC da Transição colocando 2% do PIB a mais de despesa – R$ 200 bilhões – mais uma superestimativa na correção do teto de gastos com IPCA inflado pelo Congresso. Há tendência de piora do resultado.
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Valor: E qual o efeito do pacote divulgado em janeiro?
Mendes: O pacote tem meta de chegar a um déficit primário de até 1% do PIB. O problema é que, de forma estrutural, o ajuste está pelo lado da receita, sem conter despesas, nosso grande problema fiscal. Há também números muito otimistas. Por exemplo, falam que renegociar contratos vai reduzir em R$ 25 bilhões a despesa em 2023. Isso é mais de 10% de toda a despesa discricionária, que é onde se pode renegociar. Dificilmente vão conseguir isso. Outro problema é eles dizerem que não vão executar integralmente o Orçamento. Não há respaldo legal para isso. A Constituição explicita que o Orçamento deve ser integralmente executado a menos que haja risco de descumprimento de regras fiscais. Mas como jogou-se o teto de gastos para cima com a PEC da Transição e abriram várias exceções no resultado primário, dificilmente um desses limites será restritivo. E tem a ideia de arrecadar mais mudando a regra do Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais], uma grande interrogação.
Valor: Isso não será viável?
Mendes: O que parece é que não dá dinheiro de imediato, porque, se o Carf passa a decidir contra o contribuinte, o contribuinte pode ir à Justiça e não entrará dinheiro em caixa imediatamente. Outro problema no pacote é que foca em fechar a conta de 2023. Em 2024 os problemas voltam. Por exemplo, boa parte do incentivo à denúncia espontânea entrará em 2023.
Valor: Mas então não será possível o déficit primário de 1% do PIB?
Mendes: Se mesmo com todo otimismo e falta de respaldo legal chegarmos a isso, ainda assim não será 1% do PIB porque há uma série de despesas já definidas no Congresso que não estão no Orçamento e vão precisar entrar. Por exemplo, o piso da enfermagem, cujo custo ficou com a União, trará mais R$ 16 bilhões em despesa [ver quadro ao lado]. Somando tudo que já é despesa contratada e precisará entrar no Orçamento, o déficit primário de 2023 sobe a R$ 159 bilhões, o que dá 1,5% do PIB.
O governo está gastando energia com a coisa errada, nessa briga com o BC e nesse discurso contra a estabilidade”
Valor: O senhor considera possível nova rodada de ajuste?
Mendes: É cada vez mais improvável, dado os discursos do presidente e seus líderes políticos. Medidas adicionais que poderiam ajudar no ajuste têm grande dificuldade política. São medidas como reoneração de PIS e Cofins na gasolina, etanol e outros combustíveis. Há também a reoneração do IPI, que teve alíquotas reduzidas em 2022 e que o próprio Alckmin [vice-presidente, Geraldo Alckmin] disse que não vai acontecer. Poderia haver redução de benefícios tributários, aqueles que todo mundo diz que quer acabar, mas ninguém acaba. Com a reforma do Bolsa Família para reduzir os vazamentos do programa, seriam R$ 10 bilhões. O governo pode até fazer isso, mas o dinheiro que sobrar vai para outros benefícios, não será economizado. Manutenção do salário mínimo em R$ 1.302, e não reajustar em maio para R$ 1.320. E dar vazão ao empoçamento de recursos de todo fim de ano. Com essas medidas muito difíceis de fazer, o déficit primário de 1,5% poderia cair para 0,8% do PIB.
Valor: A reoneração de PIS e Cofins em gasolina e álcool foi colocada no pacote de janeiro, não?
Mendes: Está na conta do pacote, mas no anúncio o ministro [Haddad] falou que a medida não entrava naquele momento. Agora estão dizendo que a partir de março haverá a reoneração. Vamos ver se não há reviravolta política. Ainda coloco na conta da incerteza. Com todas essas medidas politicamente difíceis, 2023 fecharia com déficit de 0,8% do PIB, mas ainda não resolveria 2024 em diante. Na hora que eu tento verificar o déficit mais permanente, pego esse 0,8% do PIB, tiro as medidas que só têm impacto em 2023 e coloco as despesas permanentes, chego a um déficit de 2024 em diante de 1,6% do PIB. O pacote está tentando colocar um band-aid em 2023 e não resolve 2024 em diante. E temos outros problemas, como os precatórios, que estão se acumulando. Se eu colocar isso, o déficit primário efetivo, digamos, vai a quase 2% do PIB a partir de 2024.
Valor: Então em 2023 o déficit mais factível é de quanto?
Mendes: Sem efeito inflacionário o déficit em 2023 fica na casa de 1,5% do PIB, algo como R$ 160 bilhões. Só ficará em 1% do PIB com inflação mais alta, outra forma de financiar o déficit. Se o presidente continuar atacando o Banco Central, se deteriorar as expectativas e o BC não conseguir segurar isso, mesmo com juros mais altos, teremos inflação mais alta, o que no primeiro momento ajuda as contas públicas porque a arrecadação reage de imediato. As despesas demoram a reagir, vai se corroer salários, pagamento a fornecedores e a parte da dívida pública não indexada à inflação. A inflação é mais ou menos como uma droga. No primeiro momento dá o barato e depois vem a rebordosa, a ressaca, a dependência, os problemas.
Valor: E isso levaria a déficit primário acima de 1,6% do PIB em 2024?
Mendes: Sim, porque vem todo o impacto da inflação na despesa, toda a deterioração econômica associada a ela. O país cresce menos, se arrecada menos.
Valor: Isso seria com aceleração de inflação para quanto?
Mendes: Difícil dizer, mas com o IPCA chegando a 6% ao ano e passando disso, desancorando e perdendo a trajetória convergente para a meta do BC. O problema é o que significa déficit nessa magnitude. Para estabilizar a dívida líquida, hoje em 57,5% do PIB, precisamos de superávit primário de cerca de 2% do PIB. Se tiver déficit de 1,5% do PIB, precisaremos de ajuste de 3,5% do PIB, algo como R$ 360 bilhões ou R$ 370 bilhões. Um ajuste que não dá para fazer sem forte reforma fiscal e não se faz de uma hora para outra porque a despesa é muito rígida. A consequência é que a dívida vai subir, a expectativa interna da condição de solvência do governo vai piorar e as taxas de juros de longo prazo vão subir, elevando também a despesa com juros. Na verdade, os juros já estão subindo. Na NTN-B do Tesouro que vence em 2035 a taxa paga além do IPCA já está acima da faixa de 6,5%, caminhando em direção ao pico da remuneração desse título, que foi de 7,8% acima da inflação, exatamente no auge da crise do governo Dilma.
Valor: Isso deve acontecer no decorrer desse mandato?
Mendes: Se não mudar o rumo do que está sendo anunciado, teremos muito problema fiscal e muito problema com inflação. Não é só o enfrentamento agressivo do presidente em relação ao BC. Há coisas já consolidadas, como uma política permanente de aumento real do salário mínimo, o programa Desenrola, para refinanciamento de dívida das famílias, que vai na direção contrária do que um banco central faz quando sobe juros. Isso terá custo fiscal alto, porque o garantidor final vai ser o Tesouro. Há a retomada do BNDES. Por mais que se diga que não haverá subsídio no crédito, o que o presidente tem falando aponta para subsídio creditício. É claro que dificilmente voltamos para o BNDES com o nível de desembolso de 2013, mas no mínimo o BNDES vai expulsar do mercado a parte privada de financiamento de longo prazo. Há também sinalização de interferência nos preços dos combustíveis. Dado o perfil do presidente da Petrobras, o que deve caminhar é o fundo de estabilização de preços. A maioria dos países que tentaram fazer isso já recuou porque o custo fiscal é alto. A ideia do fundo é ser alimentado pelo Tesouro e os recursos subsidiam o preço da bomba quando o preço do combustível sobe muito. Quando o preço cai, a ideia é não baixar o preço na bomba e com isso se recapitaliza o fundo. O problema é que, prática, quando o preço do combustível sobe, há todo incentivo político para fazer o subsídio. Mas na hora que o preço cai, é muito menor o incentivo para manter o preço mais alto. Aí o fundo fica sempre furado. Outro problema é que o sobe e desce de preço de commodities não é rápido, o que pode demandar capitalização do fundo várias vezes.
Valor: E um novo arcabouço fiscal poderia ajudar no ajuste?
Mendes: Os economistas do PT e alguns líderes do governo pensam que o gasto público não gera efeito negativo, só gera crescimento. Que o governo é que precisa puxar economia e não o aumento de produtividade e maior eficiência do setor privado. Não dá para esperar muito vindo de um governo que acha que gastar mais vale a pena. Um novo arcabouço fiscal teria por objetivo impedir a dívida pública de crescer fortemente. Houve um discurso fortíssimo contra o teto de gastos, mas no fundo o arcabouço fiscal é uma forma de limitar gastos. Como eles se colocaram contra, farão teto de gastos com a cara deles, de quem não gosta de limitar gastos. Então deverá vir uma regra frouxa, com excesso de cláusulas de escape. Alguma coisa do tipo: se o PIB cair, pode gastar mais para recuperar a economia. Se o PIB subir, se gasta mais porque entrou mais dinheiro.
Valor: E a reforma tributária? Há riscos de ficarmos com mudanças pontuais para elevar arrecadação?
Mendes: A reforma tributária sobre consumo é o grande ativo e a grande oportunidade desse governo, é nisso que precisa se investir agora. Deve ser priorizada a reforma do consumo porque, como Appy [Bernard Appy, secretário especial de reforma tributária] tem falado, é uma discussão que está mais madura. Há resistências pontuais que precisarão ser levadas ao Congresso, mas é uma tramitação que pode ser mais fluida. É uma reforma que pode melhorar a produtividade, o potencial de crescimento da economia em 10, 15, 20 anos. Mas ela precisa tramitar e ser aprovada logo porque no segundo semestre a situação fiscal tende a se agravar. E aí para fechar aquele déficit de 1% do PIB, o governo pode ter que tentar aumentar tributos. E aí uma reforma estrutural, como a tributária, sai da prioridade legislativa e entram remendos tributários do regime atual.
Valor: Mas é factível apresentar e aprovar no primeiro semestre?
Mendes: Esta é a expectativa que foi apresentada na semana passada, em evento, pelo secretário Appy. Espero que dê certo.
Valor: E a pressão para se discutir reforma na tributação da renda?
Mendes: Há uma discussão de por que não tramitar junto a reforma no IR. Um problema é que há, obviamente, resistências à reforma do consumo, já bem mapeadas. Mas há resistências maiores ainda em relação à reforma da tributação da renda, porque ainda não foi muito discutida e aplainada. Se as duas reformas tramitarem juntos, o que pode acontecer é a união daqueles que são contra uma com aqueles que são contra a outra.
Valor: E o embate de Lula com o Banco Central pode ser superado?
Mendes: Quando Haddad anunciou o pacote fiscal, me impressionaram as afirmações muito duras em relação ao BC. O primeiro a levantar a voz contra o BC não foi Lula, foi Haddad. Talvez o ministro esteja refluindo agora, mas isso precisa ficar registrado. O governo está gastando energia com a coisa errada, com toda essa briga com o BC e esse discurso contra a estabilidade fiscal. Há uma avenida aberta para o governo gerar boas notícias. Por exemplo na área ambiental. O presidente tem uma aceitação internacional enorme. O governo devia estar fazendo força-tarefa para encontrar formas diferentes de financiamento estrangeiro para preservação ambiental no Brasil. Seja por doação, seja por bônus com custo mais baixo. E ao mesmo tempo regulamentar novas formas de geração de energia, como eólica, solar, de hidrogênio, melhorar o marco legal da energia, que é uma teia de subsídios. Somos um país rico em fatores de geração de energia e temos energia cara porque há vários setores subsidiados. É preciso mostrar progressos claros na melhoria do ensino básico. Essas coisas já fariam um grande governo. São temas sobretudo que ajudam a unificar o país. Quando as baterias vão para o lugar errado, perde-se o senso de prioridade, de urgência onde há oportunidade para avançar.
Fonte: Valor Econômico

