Os mercados financeiros se preparam para o início do ciclo de cortes tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, mas o conjunto de informações correntes ainda não autoriza o início dos cortes ou um ciclo mais longo, como muitos esperam. Enquanto lá fora, dúvidas sobre a real desaceleração do mercado de trabalho e indícios iniciais de pressões sobre a inflação advindos das tarifas adotadas pelo presidente Donald Trump lançam dúvidas sobre como o Federal Reserve vai proceder, no Brasil as projeções de inflação para o horizonte relevante do Banco Central permanecem acima do centro da meta.
Na edição de agosto, o Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) chama atenção para um certo otimismo exagerado de participantes do mercado sobre o tema. Nos EUA, as mudanças promovidas por Trump estão mudando a economia de formas pouco usuais, de maneira que suas repercussões podem estar passando batido, alerta o economista José Júlio Senna.
Em sua avaliação, enquanto um corte de juros em setembro é algo que vai na direção indicada pelo presidente do Fed, Jerome Powell, e demais diretores, a questão é que se outros cortes se seguirão a este, como está precificado atualmente.
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“Acredito que podem promover um corte e puxar o freio de mão, desacompanhado de sinalização de outras quedas se seguem”, diz o ex-diretor do BC. “Mesmo em seu discurso em Jackson Hole, Powell continuou batendo na tecla do “curioso” equilíbrio do mercado de trabalho, em que a oferta de mão de obra tem caído com a mesma intensidade que a demanda, de modo que o desemprego se manteve inalterado em 4,2%.
A questão é até que ponto essas forças continuarão se equilibrando, ressalta. Isso porque, se por um lado, a incerteza criada pelo tarifaço Trump tem promovido uma desaceleração da economia – as vendas finais para compradores domésticos privados nos EUA desaceleraram de 2,9% no último trimestre de 2024 para 1,2% no segundo trimestre deste ano -, de outro, a repressão à imigração também provocou uma forte contração da oferta de mão de obra.
Nos EUA, os estrangeiros representam pouco mais de 57% do incremento da força de trabalho. Nas contas do Fed de San Francisco, a entrada de trabalhadores imigrantes, deve tombar de 3,5 milhões em 2023 para 1 milhão de pessoas em 2025. Apenas entre maio e julho, a força de trabalho americana foi reduzida em 800 mil pessoas.
Dessa forma, olhar apenas para o payroll ou número de vagas criadas na economia não é mais suficiente, explica Senna. “O que importa daqui para frente é o que vai cair mais: a demanda ou a oferta por mão de obra. Se a política de imigração for significativa o suficiente para dominar as pressões baixistas de demanda de trabalho, a pressão de salários pode continuar alta e dificultar a queda da inflação”, exemplifica.
Em um momento em que Trump tem feito abertamente campanha sobre os dirigentes do Fed por cortes de juros, alguns economistas têm sugerido que que, diante da pressão exercida pela Casa Branca, o BC americano possa dar maior peso ao máximo emprego em detrimento da estabilidade de preços. Senna aponta, no entanto, que muitos têm olhado a desaceleração em curso e concluído que isso será suficiente para mover a autoridade monetária na direção dos cortes.
Ocorre que mercado de trabalho e ritmo de atividade costumam andar de mãos dadas, mas nem sempre é o caso, lembra. Justamente porque a oferta de mão de obra também está mudando, resultados negativos no payroll não necessariamente levarão a uma taxa de desemprego menor.
Some-se a isso indícios crescentes que o tarifaço promovido por Trump finalmente pode estar aparecendo nos preços. Em julho, o índice de preços ao produtor (PPI) marcou alta de 3,3% no acumulado em 12 meses, muito acima dos 2,5% esperados. Já a inflação ao consumidor americanos subiu como esperado no mês passado, mas o núcleo de serviços que excluem aluguéis veio mais salgado que o esperado.
No Brasil, os investidores se animam com dados começando a mostrar uma desaceleração da economia, ao mesmo tempo em que as últimas leituras de inflação têm vindo melhores que o esperado. No entanto, mesmo diante desse quadro, o mercado de trabalho segue dinâmico, a inflação de serviços continua a rodar em patamares altos e, por fim, os próprios modelos do BC indicam uma inflação acima do centro da meta no horizonte relevante, em 3,4%.
“Em 2023, o BC teimosamente reduziu os juros mesmo quando seus modelos mostravam que a inflação estava acima da meta no horizonte relevante. Desta vez, acredito que não fará o mesmo”, diz Senna, acrescentando que boa parte da melhora da inflação corrente se dá pela apreciação cambial, um vetor sobretudo global.
Em seu último relatório de política monetária, o órgão mostrou projeções de que a inflação não cai a 3% nem no final de 2027 – ou seja, para além de seu horizonte relevante, atualmente centrado no segundo trimestre daquele ano. “Ou seja, o Copom está dizendo de maneira explícita que o orçamento de cortes que o mercado tem é inconsistente com o cumprimento da meta”, acrescenta Lívio Ribeiro, pesquisador associado do Ibre e sócio da BRCG Consultoria.
Em seus cálculos, o início de um processo de afrouxamento monetário poderia ocorrer apenas a partir de junho de 2026, quando os modelos do BC indicarão uma inflação em 3% no fim de 2027. Senna vai mais além. Não vê espaço para uma sinalização de corte dada a atual conjuntura. “Vejo a comunicação recente dos membros do Copom fazendo de tudo para tirar essa ideia da cabeça do mercado”, acrescenta.
Também pesquisador do Ibre, Samuel Pessôa tem opinião divergente. Em sua avaliação, até janeiro existirão três fatores novos que deixarão os membros do Copom mais confortáveis em iniciar o ciclo de cortes. “Primeiro, os modelos de inflação do BC mostrarão a inflação convergindo para perto da meta no horizonte relevante. Segundo, a desaceleração da economia estará muito mais clara. Por último, as expectativas também se aproximarão da meta, em ao redor de 3,3% ou 3,4%. Neste caso, eu acredito que a enorme incerteza fiscal dificilmente fará com que as expectativas do boletim Focus caiam para 3%. Portanto, algo ao redor de 3% já é suficiente”, diz ele, que é pesquisador do BTG Pactual.
Pessôa cita que já existem sinais claros de desaceleração da atividade no Brasil. Além do ritmo de novas concessões ter caído, a inadimplência da pessoa física excluindo o crédito rotativo já superou o pior momento da crise de 2016. Ao mesmo tempo, o crescimento do “PIB cíclico”, que olha os setores mais sensíveis às flutuações do ciclo económico, deve rodar perto de 1,5% neste ano, contra 4,4% em 2024.
De fato, os dados de junho mostraram uma atividade perdendo ritmo de forma mais forte que o inicialmente antecipado. O Ibre cortou sua projeção de alta do PIB no trimestre pela metade, para 0,2%, mas manteve a projeção anual em 2%. Pelo lado da oferta, a projeção de alta da indústria caiu de 1,2% para 0,9%, ao passo que os serviços passaram de 0,3% para 0,4%. Do lado da demanda, o consumo das famílias foi revisado: de 0,4% para 0,2%. Já o consumo do governo subiu de -0,2% para 0,7%, e o investimento, -4,1% para -2,9%.
“A desaceleração de atividades cíclicas está em curso, ainda que não de forma homogênea. Os setores cíclicos, que contribuíram com 3,1 pontos percentuais da alta do PIB de 3,4% em 2024, devem diminuir sua representação este ano para algo perto da metade do crescimento de 2%”, diz Silvia Matos, coordenadora do boletim.
Apesar disso, o mercado de trabalho aquecido, e este parece ser um quadro mais duradouro do que se imaginava antes. Isso porque, assim como nos EUA, a oferta de trabalho parece ter mudado em meio ao envelhecimento da população, o novo patamar dos programas de transferência de renda, entre outras questões que levaram a taxa de participação a não recuperar os níveis pré-pandemia.
“Quando fazemos a decomposição de crescimento no país, notamos que ele foi muito intensivo sobre aumento de emprego, não em produtividade. Isso sugere que a manutenção de uma baixa taxa de desemprego vai dificultar trabalho do BC, principalmente sobre a inflação de serviços”, diz Silvia.
Um último fator que complica todo esse processo, tanto aqui como nos EUA, é a perspectiva de pressões políticas acabarem influenciando as decisões dos dirigentes. Nos EUA, está claro como o dia o “massacre” sofrido por Powell e outros dirigentes do Fed por parte de Trump, afirma Senna.
Ele, no entanto, diz ver espaço para o BC americano reagir às ameaças de Trump. “Não me surpreenderia se houver reação muito forte, uma espécie de espírito de corpo, Mesmo Michelle Bowman e Christopher Waller [governadores do Fed indicados por Trump] poderiam voltar atrás em seus votos e indicar maior cautela diante dos próximos dados. Seria uma forma de preservar o presidente da instituição e a sua liberdade.”
No Brasil, por outro lado, o que tem sobressaído é justamente a postura cautelosa dos dirigentes do BC, apontam os pesquisadores. Por outro lado, uma nova mudança na composição da diretoria, com saída de Diogo Guillen em dezembro, pode abrir um potencial flanco na credibilidade do BC. No atual governo, momentos anteriores de troca de membros sempre trouxeram à baila a especulação sobre uma indicação que possa tornar o colegiado mais “dove” (condescendente com a inflação).
“O BC já pagou um preço muito alto por problemas de credibilidade, é algo que dificulta muito o seu trabalho. Então, no fim do ano, se não houver condições técnicas para iniciar um ciclo de aperto, acredito que não comprariam esse risco”, diz Silvia. “Seria permitir uma zona cinzenta em que várias intepretações podem ser criadas. Só de abrir espaço para esse tipo de debate, já seria um resultado ruim.”
Fonte: Valor Econômico

