Rubem Ariano fundou a Filóo Saúde, que oferece acesso a preços populares e com desconto a consultas, exames e medicamentos
Por Monica Gugliano — Para o Valor, de São Paulo
04/11/2022 05h03 Atualizado
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Não haviam faltado emoções e realizações a Rubem Ariano, 49 anos, formado em administração na Faap, filho mais velho de um corretor de café e de uma terapeuta ocupacional – ambos já mortos – e um bem-sucedido investidor no mercado financeiro durante 18 anos, quando ele viu que um par de óculos poderia mudar a vida de uma criança. “Comecei a chorar naquele momento. Ali caiu a minha ficha do que estávamos fazendo”, conta.
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Era o projeto Horas da Vida, que ele criara com um grupo de amigos médicos, uma instituição sem fins lucrativos que oferece acesso à saúde primária a pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Ariano recorda que eles estavam fazendo um dos primeiros mutirões de oftalmologia quando atenderam um menino que chegara com um pedido de consulta no neurologista ou psiquiatra. A criança tinha 9 anos de idade e era considerada autista, sofria bullying e repetia de ano na escola. Apesar do suposto diagnóstico, os médicos o indicaram também para a consulta oftalmológica. Descobriu-se que tinha nove graus de miopia em ambos os olhos, o que comprometia bastante sua visão. “Na verdade, me dei conta que quem não enxergava nada era eu”, admite Ariano, emocionado, ao contar uma das histórias mais marcantes que viveu desde a criação da instituição.2 de 4 “Me dei conta que quem não enxergava nada era eu”, diz Ariano sobre momento em que percebeu como suas ações no Horas da Vida podiam mudar a vida de alguém — Foto: Silvia Zamboni/Valor
“Me dei conta que quem não enxergava nada era eu”, diz Ariano sobre momento em que percebeu como suas ações no Horas da Vida podiam mudar a vida de alguém — Foto: Silvia Zamboni/Valor
Depois do Horas da Vida, que continua ativo, Ariano resolveu dar um novo passo e fundou a Filóo Saúde. Segundo ele, é a primeira plataforma gratuita de acesso à saúde criada no Brasil, oferecendo consultas, exames e medicamentos a preços populares e com desconto. O nome, uma criação coletiva dos sócios, é uma junção de sílabas que partiu de uma homenagem a Florence Nightingale, tida como a criadora da enfermagem moderna.
É uma quarta-feira, e o La Pasta Gialla, restaurante escolhido por Ariano para este “À Mesa com o Valor”, está bem cheio. No bairro paulistano do Itaim, muitos dos escritórios que estavam fechados na pandemia retomaram uma rotina, que varia entre o home office, o modelo híbrido e o presencial. Ariano também trabalha nas redondezas. De segunda a sexta-feira, o restaurante do chef Sergio Arno, parte de uma rede de franquias, oferece um menu executivo com três opções diferentes de entrada, prato principal e sobremesa, além do cardápio permanente. Optamos pelo executivo. Ariano pede a quiche com gorgonzola de entrada, o espaguete à carbonara e abacaxi de sobremesa. A repórter opta pelo picadinho, em vez do espaguete. Para beber, água e refrigerante.
“Não deveria comer pasta porque sempre sujo a roupa. Mas não resisto a um carbonara, meu sangue italiano fala mais alto”, brinca ele. Ariano conta que é de ascendência metade espanhola, metade italiana, por parte de mãe e pai. Mas o sobrenome é de origem espanhola.
Eu queria atuar no dia a dia. Depois de um tempo, minha família (…) viu que estávamos causando bastante impacto na vida das pessoas, e isso não tem preço”
Ariano compartilha o nome com avô e pai. É a eles, Rubem Ariano Crespo e Rubem Ariano Júnior, corretor de café na Praça de Santos – como era chamada antigamente a cidade com o maior porto do país -, que Ariano deve seu interesse pelo mercado financeiro.
O avô, conta Ariano, era da cidade de Lins, município na região centro-oeste de São Paulo a 430 km da capital, e chegou a ter uma das grandes exportadoras de café do Brasil. “Você conhece aquele ditado que diz pai rico, filho nobre, neto pobre?”, pergunta, ele mesmo respondendo: “Esse sou eu”. Corrijo a afirmação, apontando que já não é mais o caso dele “neto pobre”. Um comentário que ele recebe com bom humor, comendo sem reclamar a quiche, que chegou fria à mesa, enquanto aguarda ansiosamente pelo espaguete.
Ariano também nasceu em Lins. Mas a família se mudou para Santos na década de 1970, quando o avô, um empreendedor que de caminhoneiro se tornara um milionário, tomador de risco e dono de fazendas no estado, quebrou, e o pai, recorda ele, dava duro para sustentar a família. “Meu pai não me recomendava atuar no mercado de café. Mas dizia que eu deveria falar inglês muito bem e trabalhar no mercado financeiro internacional”, diz.3 de 4 “Minha agilidade é para ser trader, buscar oportunidades”, diz Ariano sobre o mercado financeiro — Foto: Silvia Zamboni/Valor
“Minha agilidade é para ser trader, buscar oportunidades”, diz Ariano sobre o mercado financeiro — Foto: Silvia Zamboni/Valor
Foi assim que ele começou no mercado financeiro. “Entrei numa corretora de valores que tinha uma mesa de operações para o mercado agrícola, exatamente como meu pai dizia”, observa. Dali em diante, foi uma “reinvenção” atrás da outra durante 18 anos. Foi para a área de pesquisa, onde percebeu que aquela não era sua praia. Constatou que não tinha perfil profissional para ser um técnico. “Não sou um cara de passar o dia estudando e dizer vamos fazer isto ou aquilo. Minha agilidade é para ser trader nos mercados internacionais, buscar oportunidades de negócios, inventar coisas”, explica, gesticulando com entusiasmo.
Nesse período ele começou a fazer operações no mercado internacional. E foi quando, também, surgiu em sua vida Luis Stuhlberger, que viria a ser um dos grandes mitos do mercado financeiro no Brasil. “Quando ele estava montando sua equipe, era tudo muito pequeno, tinha três operadores, eu era um deles. Fiquei atuando com o mercado internacional e foi mais ou menos na época da criação do Fundo Verde, e fiquei com Luis até o final”, conta Ariano.
Nessas reinvenções, Ariano conta que começou a fazer algumas operações no mercado internacional, e foi nessa época que Stuhlberger estava começando os investimentos dele dentro da Hedging-Griffo, respeitada corretora e gestora de patrimônio depois vendida para o Credit Suisse. “Todo mundo lá, nessa pequena equipe, começou como corretor, estava começando a área dos fundos de investimento”, diz.
Hoje o sucesso para mim são duas coisas combinadas: o impacto social (sentir que eu estou fazendo diferença na vida das pessoas) e conseguir ter paz interior”
“E o que foi o Fundo Verde? Eram algumas operações que Luis fazia para clientes, mais ou menos no início desse mercado de fundos de investimentos no Brasil. E nós organizamos um fundo de maneira que outras pessoas pudessem entrar de forma organizada e profissional”, conta.
Ariano relata que o Fundo Verde teve sua primeira cota em 2 de janeiro de 1997. Segundo ele, ainda era uma estrutura bastante modesta, e tinha um patrimônio de R$ 1 milhão, sendo R$ 500 mil de um programa de incentivos da então BM&F (hoje incorporada à B3) para dez corretoras, com o restante de amigos e familiares. Desde então, o Verde já se valorizou 20.574%. Quem investiu R$ 10 mil há 25 anos hoje teria mais de R$ 2 milhões.
Ariano recorda os dez anos que trabalhou ao lado de Stuhlberger como um dos períodos mais intensos de sua vida. “Foi um privilégio ter trabalhado com Luis. Ele é brilhante tecnicamente. É brilhante em todos os sentidos. É muito bom naquilo que faz e, por isso, exige muito esforço de todos”, afirma.
Esse esforço significava para Ariano e seus colegas horas e dias intermináveis de trabalho sob o comando de “um chefe duro como deveria ser”, contido e discreto, mas ao mesmo tempo amável e preocupado com os que trabalham com ele. “Não fosse assim, não haveria como performar nos níveis que alcançamos”, diz Ariano.
Mas, apesar de as realizações financeiras e pessoais compensarem as infindáveis jornadas, Ariano, que trabalhava nos mercados internacionais, trocava o dia pela noite porque boa parte dos negócios que fazia eram na Ásia ou na Europa. “Minha vida pessoal também acabou ficando assim, seguindo o ritmo da profissional. Na verdade, acho que eu já não tinha mais vida pessoal”, diz.
Ele já estava havia 18 anos no mercado financeiro quando a euforia pelos grandes negócios começou a ser substituída por uma sensação de dever cumprido, de ciclo terminado. E aí foi uma hora bastante difícil para ele. Primeiro porque a família e muitos amigos acharam que, aos 36 anos, ele tinha ficado maluco, segundo pelo salto no abismo do desconhecido que teria que dar se, como ele mesmo diz, quisesse encontrar algo que naquele momento de sua vida fizesse mais sentido. “Eu não sabia muito bem como, mas algo me dizia que era chegada a hora de devolver tudo que a vida havia me dado até aquele momento.”
Galeria
1 de 4 Com os pais, corretor de café e terapeuta ocupacional, e as irmãs – Foto: Arquivo pessoal2 de 4 Com a família, que primeiro achou loucura ele sair do mercado financeiro – Foto: Arquivo pessoal
4 fotos3 de 4 Ariano na Mongólia. Ele sempre gostou das histórias de Gengis Khan – Foto: Arquivo pessoal4 de 4 Com a equipe do projeto Horas da Vida, que abriu os olhos de Ariano – Foto: Arquivo pessoal
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Passou o ano de 2009 refletindo o que faria e como. Chegou a conversar com Stuhlberger várias vezes, até que em 19 de dezembro de 2009 sentiu que chegara a hora de partir. “Sentamos para conversar e eu lhe falei aquilo que ele já sabia. Seria nossa última reunião. Eu estava muito emocionado. Creio que ele, do seu jeito comedido, também. Lembramos do começo e lá pelas tantas ele me disse que éramos ‘cachorros vira-lata’ quando eu pegava os cartões da empresa, ia para Nova York e apresentava nossos clientes. E falou: ‘Hoje temos pedigree. Serei eternamente grato a você por isso’.”
O garçom surge de repente perguntando se podia recolher os pratos que já havia um tempo estavam vazios. Pergunta também se queremos a sobremesa que fazia parte do menu executivo. Ariano pede o abacaxi e a repórter, o pudim. Precavidos, antes que ele se retirasse novamente, resolvemos antecipar o pedido do cafezinho.
Sem o emprego de quase 20 anos, Ariano revela o choque que levou quando acordou e, como se diz brincando, não precisava mais ir até “a firma”. Ele acreditava que não sabia fazer mais nada além de trabalhar no mercado financeiro. Mas tinha um acordo estabelecendo que não poderia trabalhar em outra empresa do setor pelos meses seguintes. “E, naquele momento, eu não sabia muito bem que rumo tomar”, diz.
Pensou, então, que deveria se distanciar da rotina, do país e de tudo que lhe era familiar. Decidiu tirar um ano sabático e aí surgiu outra dúvida: para onde ir que fosse bastante longe e com uma cultura bem diferente? Cogitou vários lugares, comprou uma passagem para Londres – que poderia funcionar como um hub na Europa de onde poderia se dirigir a qualquer parte da Ásia ou da África – e, chegando lá, resolveria o que fazer.
Chega o cafezinho, mas a conversa está ainda longe de terminar. Ariano volta ao assunto do início desta entrevista, quando ele lembrava do período que esteve no exterior e da escolha por passar um mês na Mongólia. Contratou um guia e embarcou para Ulan Bator, a capital de um dos países mais frios, extensos e menos habitados do mundo.
Por que Mongólia?, pergunto-lhe. Ele me diz que sempre gostou das histórias de Gengis Khan, o guerreiro – tido por muitos como um dos mais sanguinários da história – que fundou o Império Mongol, matando milhões de pessoas, devastando imensas áreas e conquistando um território que ia do Mar da China ao Cáucaso. “Eu era fascinado pelas histórias daquelas pessoas nômades, que vivem nessas tribos, enfrentando aquelas temperaturas tão extremas, mas vivendo felizes com sua cultura e tradição”, diz.4 de 4
Ele passou um tempo nas planícies quando resolveu encarar as montanhas. Conta que decidiu fazer a viagem no lombo de um cavalo mongol (pequeno se comparado aos de outras regiões), na última janela de tempo bom, antes que o outono avançasse e a proximidade do inverno tornasse intransitável o caminho pelos desfiladeiros.
“Foram vários e vários dias, sofrendo com os ventos cortantes, o frio intenso e o medo de despencar das montanhas porque a trilha por onde seguíamos era muito estreita. Bastava o cavalo tropeçar, perder o equilíbrio para cairmos no abismo”, lembra.
Nos dez dias em que esteve na montanha, Ariano só tinha o guia que o acompanhava para trocar algumas palavras. A solidão, a exuberância daquela natureza selvagem, o receio de perder algum dos poucos objetos imprescindíveis que carregava na mínima bagagem, diz ele, mudaram completamente suas prioridades. “Chorei muito, ali sozinho. Ao mesmo tempo, senti muita gratidão por ter nascido na minha família, por ter tido as oportunidades que tive. Da Mongólia fui para Berlim, viajei mais um pouco na Europa e voltei ao Brasil. Aí eu já tinha uma ideia do que queria fazer.”
Ariano diz que sempre se interessou pela área de saúde. Desde que trabalhava com gestão de fundos de investimento, ele conta que via a atividade como uma das que tinham capacidade de causar maior impacto na vida das pessoas.
Em 2011, ele começou a estudar as possibilidades de atuação nesse mercado e se associou a um amigo médico para criarem uma startup de agendamento de consultas. “Naquele momento pensamos: será que esses profissionais de saúde que estão em nossa empresa não concordariam em doar parte de suas horas para atender a quem não pode pagar?” Resolveram dirigir a pergunta aos amigos médicos e, logo, logo, haviam conseguido transformar a ideia em um grupo que conectava quem precisava de atendimento com quem tinha tempo para doar e ajudar.
Nasceu, assim, o Horas da Vida, que, em nove anos de atuação, já atendeu quase 1 milhão e meio de pessoas, nas mais diversas especialidades, e que realiza mutirões como o da oftalmologia que ajudou uma pequena criança a enxergar.
O programa oferece teleconsultas e faz um intenso trabalho de prevenção com os pacientes. Ariano ressalta que não necessariamente é preciso montar uma organização não governamental ou uma empresa para poder ajudar quem mais precisa e diz que até poderia ter continuado no mercado financeiro, dedicando parte do seu tempo às pessoas que mais precisam. “Mas eu queria atuar no dia a dia. E, depois de um tempo, minha família, que achava que eu tinha enlouquecido, viu que estávamos causando bastante impacto na vida das pessoas, e isso não tem preço.”
O Horas da Vida se tornou o precursor da Filóo Saúde, um serviço que funciona dentro do conceito de marketplace. Os clientes se cadastram sem pagar nada e passam a ter descontos em consultas médicas, exames e medicamentos. A partir do cadastro, terão acesso a vários profissionais dispostos a prestar esse atendimento com preços diversos. Eles escolhem e marcam a consulta, que custará a partir de R$ 45. Assinaturas a partir de R$ 7,90 por mês dão acesso a serviços adicionais, como pacote de seguros e assistência ou telemedicina por vídeo a qualquer hora do dia. “É atendimento de qualidade que cabe no bolso.”
Ariano conta que no começo não foi fácil. Mas que contou com a ajuda de muitos amigos do mercado financeiro que já apoiavam o Horas da Vida quando resolveu montar o Filóo. A empresa, desde sua fundação, cresceu dez vezes sua base de clientes e já prepara outros lançamentos para 2023.
Pedimos mais uma rodada de café e água para terminar a conversa, quando Ariano faz quase que um balanço do seu menos de meio século de vida. Diz que quando era estudante da Faap, o sinônimo de sucesso estava representado por um bom emprego no mercado financeiro. Depois, o sucesso seria trabalhar no mercado internacional. Conseguiu tudo que desejou. “Hoje o sucesso para mim são duas coisas combinadas: o impacto social (sentir que eu estou fazendo diferença na vida das pessoas) e conseguir ter paz interior.” Tomamos o café, pagamos a conta e depois de três horas de conversa deixamos o restaurante, a essa altura, já completamente vazio e com o garçom esperando na porta para nos mandar embora.
Fonte: Valor Econômico