O mercantilismo chinês e os monopólios das empresas ocidentais representam o mesmo desafio do excesso de poder em poucas mãos
Por Rana Foroohar — Financial Times
09/05/2023 05h04 Atualizado há 6 horas
Em recente discurso o assessor de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, perguntou: “Como o comércio se encaixa em nossa política econômica internacional e que problemas ele busca solucionar?”. Deveríamos começar tentando solucionar o problema da concentração e da concorrência.
Sem entrar na questão se Pequim invadirá Taiwan (um enorme “se”), muitas das atuais preocupações americanas e europeias em relação à China se referem à forma como sistema estatal do país encoraja a concentração econômica e de como essa concentração é usada de modo mercantilista.
Mercantilismo chinês e os monopólios das empresas são o mesmo desafio
Há anos, a China tem conseguido inundar os mercados mundiais com quase todo tipo de produto, desde aço barato e equipamentos de proteção individual (EPIs) subfaturados até produtos de ponta, graças a sua capacidade de reduzir artificialmente os salários e de ignorar tanto as preocupações ambientais, quanto (com muita frequência) as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Graças à sua economia de escala, a China ruma para se tornar a maior exportadora mundial de veículos elétricos, o que levará a uma série de novas disputas comerciais.
A China também tem poder monopolista em muitas cadeias de suprimento cruciais, como as de insumos farmacêuticos e de terras-raras. Uma análise feita em 2022 pela Comissão Econômica e de Segurança EUA-China, 41,6% das importações americanas de penicilina vêm do país, que também tem 76% da capacidade produtiva mundial de células de bateria e 73,6% da de imãs permanentes (um componente crucial dos veículos elétricos). Entre 2017 e 2020, a China forneceu 78% das importações americanas de componentes produzidos com terras-raras. Os EUA têm disponibilidade própria de alguns minerais, mas em razão dos subsídios chineses, algumas empresas americanas encerraram a produção.
Esse tipo de poder monopolista representa tanto uma ameaça à garantia de suprimento quanto à competitividade. A China emitiu diversos comunicados sobre seu desejo de proteger algumas cadeias de suprimentos globais cruciais e de passar a depender menos de países estrangeiros em outras. Nenhum país quer se preocupar com o risco de ter o fornecimento de medicamentos ou commodities cruciais cortado.
Sejamos claros, Pequim não apareceu e “roubou” a produção, investimentos e empregos de outros lugares. Em vez disso, por décadas, os governos locais e federal da China se valeram de subsídios, oferecendo terras com desconto e grandes isenções tributárias a produtores, de forma a atrair investimentos para a produção local. As empresas ocidentais, naturalmente, seguiram esse caminho, tendo em vista que o capitalismo exige que os executivos priorizem a alta das ações e a queda nos preços ao consumidor (sem precisar prestar contas sobre as resultantes externalidades negativas para a mão de obra, clima ou segurança).
Mas o poder monopolista não é de forma alguma um problema só da China – nem, na verdade, unicamente um internacional. A desregulamentação e a aplicação mais branda das leis antitruste nos EUA desde os anos 80 resultaram numa concentração extrema no mundo empresarial. O Walmart vende mais da metade dos mantimentos em certas regiões dos EUA, a Amazon domina o comércio eletrônico, poucas empresas controlam o suprimento de alimentos, uma única empresa ferroviária (a BNSF) transporta 47% de todos os grãos.
As gigantes existentes ficam cada vez maiores e mais poderosas. O JPMorgan comprou outro banco falido. A inflação dos alimentos está em alta e a firma de seguros Allianz calcula que cerca de 10% da alta na Europa se deve à busca por lucros maiores. Isso é possível porque partes fundamentais da cadeia de suprimentos do setor de alimentos são dominadas por apenas umas poucas empresas.
O mercantismo chinês, a manipulação de preços das empresas europeias e americanas e as gigantes tecnológicas e os bancos “grandes demais para falir” americanos são, de fato, partes diferentes de um mesmo problema: concentração de poder em um só local. Isso leva à fragilidade do mercado, a menos inovação (que costuma surgir das empresas pequenas e de uma maior, não menor, concorrência), a preocupações com a garantia de suprimento e a um defensivismo por parte de países receosos em ter o fornecimento de bens cruciais cortado.
A China, é claro, foi alvo de proibições de exportações dos EUA e está apreensiva quanto a isso. Embora seja legítimo para qualquer país limitar a exportação de tecnologia que possa ser usada para fins militares por um adversário, também é verdade que identificar tecnologias de uso duplo é uma tarefa complicada. Ninguém deseja uma separação total entre Ocidente e China. Como resolver o dilema?
Barry Lynn, do centro de estudos Open Markets Institute, em Washington, que se dedica a combater monopólios, defende um novo princípio de mercado que foi chamado de “regra de quatro”. Em áreas cruciais, de alimentos e combustíveis à farmacêuticos, bens de consumo eletrônicos e minerais importantes, nenhum país ou empresa individual deveria ter mais de 25% do mercado. Além disso, os países deveriam aplicar essa regra tanto local quanto mundial.
Seria uma forma de os países apoiarem o livre comércio e, ao mesmo tempo, desenvolver cadeias de suprimento fortes e opções para substituí-las. Isso conteria a nociva corrida na qual o capital barato está sempre fluindo para os lugares com os piores padrões ambientais e a mão de obra mais barata. Isso exigiria, é claro, uma remodelação total da OMC. Não é a solução perfeita. Mas é uma forma de começar a reorientar o foco, tirando-o das guerras comerciais, guerras frias e de classe e apontando-o para o principal culpado em todas elas: muito poder em poucas mãos.
Fonte: Valor Econômico