Persiste a incerteza sobre o anúncio político esta semana da conclusão do acordo União Europeia-Mercosul, na repetição de uma novela que já dura 25 anos.
Indagado se a presença da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já estava confirmada para a reunião nessa sexta-feira com os líderes do Mercosul, em Montevideu, uma importante fonte europeia respondeu: ‘Não, de forma alguma. Conforme indicado, os contatos técnicos continuam’.
Diferentes fontes insistiam que não dava para responder sim ou não, ainda, sobre a presença de von der Leyen na cúpula do Mercosul. Ela continuava fazendo suas ‘costuras’’ entre os países sobre a importância de fechar o acordo. E isso tudo em meio a turbulências políticas especialmente na França. O governo do primeiro-ministro Michel Barnier pode cair nessa quarta-feira por voto de rejeição no Parlamento.
Enquanto isso, detalhes começam a surgir sobre a negociação final, como no caso de pacote sobre compras públicas. Esse era um dos temas mais sensíveis para o lado brasileiro. Um dos argumentos do governo Lula para reabrir as negociações com a UE foi que o pacote anterior anunciado em 2019 com a Europa limitava as políticas de desenvolvimento industrial.
Agora, se a conclusão do acordo com a UE for confirmado, nas compras públicas o entendimento é mais flexível. Setores do governo Lula consideram que o país recupera capacidade de manter margem de preferência para empresas nacionais, usar conteúdo local e regional, realizar encomendas tecnológicas e aplicar compensações (offset).
A expectativa é que tanto o acordo com a UE como outros, como com Singapura e Chile, aumente a eficiência das licitações, reduza preços e traga mais concorrência no mercado de compras públicas que no Brasil é estimado em US$ 157 bilhões por ano.
Compras governamentais representam parcela crescente dos fluxos de comércio mundial. Acordo nessa área é normalmente chamado de ‘acordos anticorrupção’. Prevê compromissos de transparência e igualdade de tratamento para fornecedores estrangeiros entre os países. Mas há clausulas de exceções.
O Brasil obteve ‘ajustes’, que os europeus aceitaram para ganhar em outros capítulos da negociação birregional. Na prática, fica consolidada uma situação que já está em vigor no Brasil, mas que, por vários motivos, os europeus viam dificuldades e suas empresas não entravam nas licitações. A expectativa é de que agora, uma vez formalizado o acordo, empresas europeias entrem mais no mercado brasileiro de compras públicas.
A coluna apurou que os principais pontos do pacote em compras públicas incluem:
EXCEÇÃO DO SUS
Fica excluído todo o setor da saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS), em todos os níveis, está fora do acordo e pode continuar comprando de fornecedores internacionais quando necessário, mas mantendo a opção de favorecer a indústria nacional em situações estratégicas.
As licitações do SUS envolvem uma grande proporção das compras públicas brasileiras. A oferta anterior excluía basicamente as licitações relativas a parcerias público-privadas envolvendo produtos ou insumos estratégicos da lista do SUS.
A exclusão geral do SUS é resultado da percepção de vulnerabilidade do Brasil na pandemia de covid-19. Nada menos de 40% das importações de insumos vem da Europa e a abertura oferecida na negociação no passado incomodou o governo atual.
A avaliação é de que, para garantir sustentabilidade de longo prazo do SUS, isso passa pela capacidade de utilizar o poder de compra para fazer encomenda tecnológica.
Pela antiga oferta, o Brasil precisaria comunicar que tipo de encomenda tecnológica faria. Isso acabou, segundo fontes.
Também estão excluídas da cobertura do acordo compras públicas de bens e serviços adquiridos por programas de segurança alimentar e nutricional e de alimentação escolar que apoiam agricultura familiar.
PATAMAR PARA PARTICIPAÇÃO
Os patamares mínimos para participação europeia em licitações no Brasil serão: 216 mil DES (Direitos Especiais de Saque, a moeda do FMI, ou cerca de R$ 1,750 milhão) para bens e serviços, e 8 milhões DES ou cerca de R$ 63 milhões no cambio atual para obras de construção. Abaixo desses valores, as licitações não precisam ser abertas para empresas europeias.
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MARGEM DE PREFERENCIA
As margens de preferência permitem que a Administração Pública dê preferência para a aquisição de produtos e serviços nacionais, via licitação, desde que a diferença em relação à oferta estrangeira mais barata não seja superior a determinado percentual.
No acordo com a UE, foi ampliada a margem de preferência nas compras do governo brasileiro, passando de 10% para 20% como já existe na lei nacional. O ajuste é apara o Brasil assegurar até 20% de margem de preferência para as empresas brasileiras que estejam na linha de frente e sejam as mais inovadoras na transição verde.
A CICS (Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável) já adotou margens de preferência para a indústria nacional em vários setores (painéis solares, ônibus, linha amarela, etc.). Na negociação do pacote anterior com a UE, a vantagem era só para pequena e média empresa.
Agora, portanto, a margem pode chegar até 20% se o produto for resultante de desenvolvimento e inovação tecnológica nacional. As mesmas vantagens podem ser concedidas a produtos feitos com materiais reciclados, recicláveis ou biodegradáveis.
COMPENSAÇÕES
Outro ajuste foi para manter a política de ‘offset’, que diz respeito a compensação tecnológica. Na antiga oferta para a UE, offset era permitido por apenas oito anos de modo geral, e por 15 anos no caso de offset de transferência de tecnologia. Depois disso, ficaria proibido. Pelo pacote agora negociado, fica preservada a possibilidade de offset tanto comercial quanto industrial e tecnológico, como instrumento para nova política industrial direcionada para a transição verde.
ESTADOS
As companhias europeias poderão entrar também nas licitações públicas nos estados. A concessão brasileira deve cobrir estados que representam o equivalente a 65% do Produto Interno Bruto (PIB).
Numa oferta feita na Organização Mundial de Comércio (OMC), depois retirada pelo governo Lula, o Brasil oferecia acesso a contratos públicos de 20 Estados mais o Distrito Federal (incluindo São Paulo e Rio de Janeiros, de especialmente interesse dos parceiros).
Fonte: Valor Econômico